São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

Próximo Texto | Índice

O ateu deselegante

O biólogo Richard Dawkins comenta o livro e a turnê anti-religião de Christopher Hitchens, que desembarca no Brasil em novembro para lançar "Deus Não É Grande"

Atta Kenare - 28.abr.2006/France Presse
Mulheres iranianas protestam contra o relaxamento no uso da indumentária islâmica na capital


RICHARD DAWKINS

Há muita agitação na seara tranqüila dos iludidos, e Christopher Hitchens é um dos responsáveis por ela. Outro responsável é o filósofo Anthony Grayling. Recentemente dividi uma plataforma com ambos. Deveríamos debater contra um trio de apologistas religiosos que acabaram se revelando um tanto quanto tíbios ("É claro que não acredito num Deus de longa barba branca, mas...").
Eu não conhecia Hitchens pessoalmente até então, mas tive uma idéia do que esperar dele quando Grayling me enviou um e-mail para discutirmos táticas. Depois de propor alguns argumentos para apresentarmos, ele concluiu: "E Hitch vai pulverizar o inimigo com munição de AK-47, em seu estilo característico".
A caricatura simpática traçada por Grayling deixa de revelar a capacidade de Hitchens de moderar sua beligerância com cortesia à moda antiga. E "pulverizar" sugere uma saraivada de balas enviadas a esmo, o que subestima a precisão mortal de sua mira. Se você é um apologista religioso convidado a debater com Hitchens, fará bem em recusar o convite.
Suas réplicas espirituosas, seu cabedal rapidamente acessível de citações históricas, sua eloqüência livresca e seu fluxo abundante de palavras bem formadas ameaçariam seus argumentos, mesmo que você tivesse bons argumentos para apresentar. Uma seqüência de reverendos e "teólogos" descobriu tudo isso, para seu próprio desprazer, durante a turnê que Hitchens fez pelos EUA para divulgar seu livro.
Com desfaçatez característica, ele levou sua turnê pelos Estados do "cinturão bíblico" -o cérebro reptiliano do sul e do centro dos EUA- em lugar de optar pelos públicos mais favoráveis do córtex cerebral do país, ao norte e ao longo de suas costas. Os aplausos que recebeu foram mais gratificantes por isso. Alguma coisa está se mexendo nesse grande país.

Mais vendidos
Os EUA estão longe de ser a teocracia ignorante que dois mandatos do presidente George W. Bush e várias pesquisas enganosas nos tinham levado a temer. Será que o cinturão bíblico esconde alguns corajosos de fato? Estarão as fileiras dos que pensam saindo do armário e assumindo o que são? Sim, e os colegas ateus de Hitchens na lista dos autores de alguns dos livros de maiores vendas dos EUA têm histórias igualmente animadoras a relatar.
"Deus Não É Grande" [que a Ediouro lança no Brasil em outubro] é um livro controladamente irado, mas contém também alguns trechos que garantem gargalhadas: por exemplo, o relato hilário de Hitchens de como Malcolm Muggeridge [1903-90, jornalista] "lançou a marca "Madre Teresa" em todo o mundo", com sua história de que ela brilhou espontaneamente quando a BBC se esforçou para filmá-la em condições de pouca luz.
Mais tarde o cinegrafista revelou a Hitchens a verdadeira explicação do "milagre" -a ultra-sensibilidade de um novo tipo de filme da Kodak-, mas Muggeridge escreveu nesciamente: "Eu próprio estou absolutamente convencido de que a luz tecnicamente inexplicável é, de fato, a Luz da Bondade à qual o cardeal Newman faz referência em seu conhecido e belíssimo hino".
Hitchens também oferece uma breve e muito divertida história do mormonismo: como foi inventado a partir do nada por Joseph Smith, charlatão do século 19 que escreveu seu livro em inglês do século 16, alegando ter traduzido o texto de tabuletas de ouro -que, convenientemente, ascenderam ao céu antes de ser vistas por qualquer outra pessoa.
Mesmo os estenógrafos aos quais o analfabeto Smith ditou tiveram que ficar sentados atrás de uma cortina, para que não tivessem um vislumbre das tabuletas e morressem atingidos por um raio.
Você conhece alguém que seja tão crédulo assim? Apesar disso, o mormonismo hoje é suficientemente poderoso para apresentar um candidato à Presidência, seus jovens missionários de cabelos curtinhos patrulham o mundo em pares, e o "Livro de Mórmon" está presente em todos os quartos dos hotéis Marriott.
O título do livro de Hitchens alude, é claro, às célebres últimas palavras "Allahu akbar". O subtítulo original americano, "Como a Religião Envenena Tudo", é um slogan excelente que reaparece ao longo do livro e define seu tema central. A edição britânica o substituiu pelo subtítulo ameno e pouco inspirado "O Argumento contra a Religião".
Fiz referência anterior à cortesia à moda antiga de Hitchens, e não foi (inteiramente) brincadeira. É possível ouvi-la em gravações de palestras e debates, e possível vê-la no primeiro capítulo deste livro, "Para Dizê-lo em Tom Ameno".
"Deixo a cargo dos fiéis queimar as igrejas, mesquitas e sinagogas uns dos outros, algo que sempre se pode confiar que façam. Quando eu vou à mesquita, tiro os sapatos. Quando vou à sinagoga, cubro a cabeça."

Autor malandro
O capítulo seguinte, "A Religião Mata", se beneficia da experiência de Hitchens como correspondente de guerra.
Desafiado por um pregador americano a admitir que, se fosse abordado por um bando de homens numa viela escura, ele se sentiria tranqüilizado ao saber que eles acabaram de sair de uma sessão de orações, a saraivada com a qual Hitchens respondeu foi impagável.
"Para me limitar à letra "B", eu já tive essa experiência, de fato, em Belfast, Beirute, Bombaim, Belgrado, Belém e Bagdá. Em cada caso, posso afirmar com certeza absoluta -e apresentar as razões pelas quais o faço- por que eu me sentiria imediatamente ameaçado se achasse que o grupo de homens que se aproximava de mim na escuridão estava saindo de uma cerimônia religiosa."
Ele apresenta suas razões, de fato, e em nenhum dos casos elas são vulneráveis à objeção "mas a disputa em B... é tribal/ política/econômica, não religiosa". É verdade, sem dúvida, que as pessoas em B... estão se matando por razões que vão além das meras divergências litúrgicas. Levam adiante vendetas hereditárias, vingando-se por injustiças econômicas.
São todas coisas do tipo "eles e nós", sim, mas como sabem quem são eles e quem somos nós? Sabem pela religião, a educação religiosa, o apartheid sectário; por décadas de separação baseada na fé, começando pelo jardim de infância, continuando pela escola religiosa e continuando na vida adulta, com o repúdio inculcado aos "casamentos fora da religião", e então, o que é o mais importante, a doutrinação cuidadosamente segregada da geração seguinte.
Uma vez tive um encontro televisionado com um destacado muçulmano "moderado", do tipo que recebe um título de cavaleiro por não ser "extremista". Desafiei esse "moderado" a negar que a pena muçulmana para a apostasia é a morte.
Sem poder fazê-lo (o Alcorão é inequívoco a respeito), ele se contorceu, incomodado, e acabou dizendo que se tratava de "um detalhe pouco importante", já que nunca era aplicado. Diga-se isso a [o escritor anglo-indiano] Salman Rushdie, sobre o qual o "moderado" agraciado com o título de "sir" dissera antes: "A morte talvez seja demasiado fácil para ele".
"A mente literal não compreende a mente irônica, que sempre vê como fonte de perigo. Ademais, Rushdie tinha sido criado como muçulmano e compreendia o Alcorão, o que significava, de fato, que era apóstata. E a "apostasia", segundo o Alcorão, é passível de ser punida com a morte. Não existe o direito de mudar a religião..."
Foi o que disse Christopher Hitchens sobre seu amigo Salman Rushdie, a quem recebeu em sua casa em Washington, sendo mais tarde aconselhado pelo Departamento de Estado "a mudar meu endereço e número de telefone, o que me pareceu uma maneira improvável de prevenir represálias."
"Mas me pôs de sobreaviso em relação a algo que eu já sabia. Não me é possível dizer, "bem, você pode levar adiante seu sonho xiita de um imã oculto, e eu levarei adiante meus estudos de Thomas Paine e George Orwell, e o mundo é grande o suficiente para nós dois". O verdadeiro crente não consegue descansar enquanto o mundo todo não se puser de joelhos. Não é evidente para todos, dizem os piedosos, que a autoridade religiosa é soberana e que os que se negam a reconhecê-la abriram mão de seu direito à existência?"

Charges contra Maomé
Hitchens evoca as charges dinamarquesas para comentar a cumplicidade e a covardia no Ocidente: "Turbas islâmicas estavam violando a imunidade diplomática e lançando ameaças de morte contra civis, mas a resposta de Sua Santidade, o papa, e do arcebispo de Canterbury foi condenar -as charges! Em minha própria categoria profissional, houve uma corrida para ver quem poderia capitalizar primeiro, escrevendo sobre as imagens que eram o foco da questão, sem mostrá-las de fato. E isso num momento em que os meios de comunicação de massa se tornaram quase exclusivamente movidos por imagens."
"Falaram-se eufemismos sobre a necessidade de demonstrar "respeito", mas conheço vários dos editores envolvidos e posso dizer com certeza que o principal motivo da "contenção" foi medo puro e simples. Em outras palavras, um punhado de falastrões e intimidadores religiosos puderam, por assim dizer, derrotar a tradição da liberdade de expressão em sua própria terra natal ocidental".
Embora eu admire a coragem de Hitchens, eu não condenaria esses editores. Há momentos em que a "covardia" não passa de prudência sensata. Mas Hitchens com certeza tem razão em repudiar os líderes de outras religiões, que, embora não sejam alvos de ameaças, fazem questão de manifestar voluntariamente "respeito" e "solidariedade" gratuitos para com os que incitam ao assassinato em nome de Deus.
Retornando ao que Hitchens tem a dizer sobre Rushdie e o fatwa [decreto muçulmano]: "Seria possível imaginar que tal homicídio arrogante, patrocinado pelo Estado, [...] teria suscitado condenação generalizada. Mas não foi o que aconteceu. Em declarações refletidas, o Vaticano, o arcebispo de Canterbury e o rabino sefardita chefe de Israel todos assumiram uma postura solidária com -o aiatolá".
Passando para o Irã atual (e isso pode ajudar, pelo menos até certo ponto, a explicar seu flerte, de outro modo difícil de compreender, com os vilões neoconservadores de Washington), Hitchens observa: "No momento em que escrevo, uma versão da Inquisição está prestes a pôr as mãos sobre uma arma nuclear". Trata-se de uma ameaça inesperada.
A teocracia, obviamente, não nutre a espécie de progresso cultural e educacional que acompanha a inventividade científica moderna. Hitchens argumenta falando do 11 de Setembro, quando "do Afeganistão foi emitida a ordem santa de anexar duas conquistas famosas do modernismo -o arranha-céu e o avião a jato- e empregá-las para a imolação e o sacrifício humano".

Religião e sociedade
Enquanto minha própria preocupação principal como cientista tem sido com as afirmações da religião em relação ao cosmos e às origens da vida, Hitchens limita esses assuntos a dois capítulos breves. Ele realmente se mostra à vontade quando trata dos males cometidos em nome da religião: "a religião envenena tudo".
A lista que ele traça é bastante abrangente. Há um bom capítulo sobre a religião como abuso infantil; outro sobre a religião como ameaça à saúde, que menciona sacerdotes católicos, incluindo pelo menos dois cardeais e um arcebispo que, em países africanos devastados pela Aids, disseram a seus rebanhos que as camisinhas transmitem o vírus da doença.
Resenhistas já fizeram descrições diversas de Hitchens: como ateu defensor da igualdade de oportunidades, como constrangedor (de todas as religiões) que defende a igualdade de oportunidades, como autor de sermões bombásticos sobre a igualdade de oportunidades e como fanático da igualdade de oportunidades.
Ele certamente não é fanático nem faz sermões bombásticos (presume-se que qualquer crítico da religião faça necessariamente sermões bombásticos). Mas é verdade, como disse outro resenhista, que o livro é "ecumênico no desprezo pela religião". Mesmo o budismo, freqüentemente elogiado como superior às outras religiões, recebe tiros de dois canos.
Não constitui surpresa que o capítulo "O Pesadelo do Antigo Testamento" faça jus a seu título sem nenhum esforço. O capítulo seguinte, apesar de seu título promissor ("O Novo Testamento Excede o Mal do Velho") trata mais da pouca confiabilidade dos textos do que de qualquer mal que se equipare aos padrões reconhecidamente elevados do Pentateuco.
Muitas histórias dos evangelhos foram inventadas para realizar profecias do Antigo Testamento, e a candura desavergonhada com que seus autores o admitem é algo que quase nos conquista: "Tudo isso foi feito para que pudesse ser realizado aquilo que foi dito pelo profeta...".
O verdadeiro mal do Novo Testamento ganha um capítulo próprio: ou seja, a teoria do bode expiatório divino para explicar a crucificação de Jesus como reparação pelo "pecado original" feita em nome dos outros (o pecado passado de Adão, que nunca existiu, e os pecados futuros de pessoas como nós, que ainda não existíamos, mas que, presumiu-se, teríamos toda intenção de pecar quando nossa hora chegasse).
Hitchens se apressa a observar a semelhança do cristianismo com seitas extintas. Jesus se enquadra perfeitamente num catálogo cosmopolita de nascimentos virgens, ao lado de Hórus, Mercúrio, Krishna, Átis, Perseu, Rômulo e, de maneira incongruente, Genghis Khan.
Será que é atavismo junguiano, trabalho de relações públicas ou simples acaso que leva os criadores de seitas, e as religiões nas quais estas se transformam quando amadurecem, a fazer seus deuses surgir de úteros virgens, como se fossem coelhos saídos de cartolas? O caso de Jesus foi auxiliado por um simples erro de tradução do termo hebraico "mulher jovem" para "virgem", em grego.

Ovo e galinha
Um dos temas centrais de Hitchens é que os deuses são criados pelo homem, e não o contrário. Um tema relacionado é o do plágio: "A religião monoteísta é um plágio de um plágio de um boato, de uma ilusão, remetendo à invenção de alguns poucos acontecimentos que não ocorreram".
Dois capítulos exploram "o falso brilho do milagroso" e a falácia largamente aceita de que derivamos nossa moralidade de regras religiosas como os Dez Mandamentos. Como diz Hitchens em tom arrasador, alguém imagina seriamente que, antes de Moisés proclamar a inscrição na tabuleta de que "Não matarás", seu povo achava que matar era boa idéia?
Eu disse que Hitchens se mostra totalmente à vontade quando fala dos males cometidos em nome da religião -e "em nome de" é importante.
Não se pode simplesmente apontar para indivíduos maus -nem tampouco bons- que, por acaso, são religiosos. A tese a ser comprovada é que as pessoas cometem o mal (e o bem) pelo fato de serem religiosas.
Os cruzados e os jihadistas são bons, em sua própria visão. Eles cometem atos maus (na nossa visão) movidos por sua fé. Os 19 assassinos do 11 de Setembro se banharam, perfumaram e depilaram cuidadosamente, preparando-se para passar para o paraíso dos mártires, quando embarcaram numa missão que eles sinceramente, verdadeiramente, religiosamente acreditaram ser supremamente justa.
Se alguma vez um homem personificou o mal, esse homem foi Adolf Hitler. Ele nunca renunciou a seu catolicismo e afirmou seu cristianismo por toda a sua vida, mas, à diferença, por exemplo, de Torquemada ou de um cruzado ou conquistador típico, não cometeu seus atos hediondos em nome do cristianismo.
Outro homem profundamente mau, Josef Stálin, provavelmente foi ateu, mas, novamente, não fez o mal por ser ateu, não mais do que ele ou Hitler ou Saddam Hussein cometeram o mal por terem bigodes.
Hitchens é especialmente ótimo quando responde ao desafio idiota "Stálin e Hitler eram ateus -o que você tem a dizer sobre isso?"-, sem dúvida por ter prática. Stálin, Hitler e outros podem não ter sido religiosos, eles próprios, mas compreenderam a religiosidade entranhada de seus súditos e a exploraram gratamente.
Hitchens trata disso apenas brevemente no livro, mas ampliou a discussão em discursos e entrevistas posteriores: "Por centenas de anos, milhões de russos ouviram que o chefe de Estado deveria ser um homem próximo a Deus -o czar, que era chefe da Igreja Ortodoxa Russa, além de déspota absoluto. Se você é Stálin, não deve atuar no ramo da ditadura se não souber explorar o pool de servilismo e docilidade que tem pronto à sua disposição. A tarefa do ateu é elevar as pessoas acima desse nível de servilismo e credulidade."
O argumento se aplica novamente a Kim Jong-il (o Querido Líder) e a seu pai, Kim Il-sung (o Grande Líder), que ainda é o presidente eterno da Coréia do Norte, apesar de ter morrido em 1994. Hitchens tem experiência pessoal na Coréia do Norte, e suas observações sobre o culto moderno de adoração aos antepassados é o tipo de coisa que ele faz melhor.

Excessos
Não tendo conseguido encontrar nada de que me queixar no livro, considerei ser meu dever ler outras resenhas, na esperança de identificar algo negativo. A maior parte das resenhas é positiva, mas Matt Buchanan, em meio a um texto -no mais, entusiasmado- publicado no "Sydney Morning Herald", acertou na mosca:
"De quando em quando ele (Hitchens) é culpado de grosseria. Por exemplo: "No passado muito recente vimos a Igreja de Roma maculada por sua cumplicidade no pecado imperdoável da violação de crianças ou, como poderia ser expresso em forma latina, "no child's behind left" [trocadilho entre "nenhuma criança é deixada para trás" -como é conhecida uma lei de ensino nos EUA- e "o traseiro de nenhuma criança passa incólume"]. Hitchens desperdiça muita da confiança que conquistou com esse lapso de vulgaridade: o leitor de repente tem um vislumbre dele rindo à socapa diante de sua mesa, e isso não é bonito nem engraçado, além de prejudicar sua seriedade em outras partes do texto."
É um lapso inegável, mas não característico. O hábito um pouco esdrúxulo de fazer pouco caso de líderes que atribuem muita importância a eles mesmos, chamando-os de "mamíferos", constitui um erro de tom que poderia ser corrigido numa edição futura do livro.
Peter Hitchens inicia sua resenha negativa no "Daily Mail" bastante bem ("Sou o resenhista de meu irmão?"), mas o teor fundamental de sua queixa parecer ser que Christopher é tão confiante em sua descrença quanto é qualquer fundamentalista em sua crença.
A resposta à acusação já sobejamente conhecida do fundamentalismo ateu é bastante clara. Não cabe ao ateu provar a inexistência de um unicórnio invisível na sala, e não podemos ser acusados de confiança excessiva em nossa descrença.
O fiel devoto que freqüenta a igreja recita o credo niceno semanalmente, enumerando uma lista detalhada e precisa das coisas em que acredita, sem apresentar mais evidências do que as que comprovam a existência do unicórnio. Isso, sim, é excesso de confiança.
Contrastando com isso, o ateu afirma a coisa simples: de todos os milhões de entidades imagináveis, creio apenas naquelas de cuja existência existem provas -trombones, pelicanos e elétrons, por exemplo, mas não unicórnios ou duendes nem Thor com seu martelo nem Ganesha, o deus-elefante, nem o Espírito Santo.

Livro inocente
A segunda queixa mais comum feita pelos resenhistas é que Christopher Hitchens critica a religião ruim. A verdadeira religião (aquela do resenhista) é imune a tais críticas.
Como diz o teólogo Stephen Prothero no "Washington Post": "Interpretar este livro estranhamente inocente como a verdade é acreditar que os católicos comuns se orgulham da Inquisição [...] e que os judeus comuns aplaudem quando um rabino ortodoxo renegado suga o sangue de cima de um pênis que acaba de ser circuncidado".
Também essa queixa é muito conhecida, e a resposta a ela (mesmo quando a questão não é exagerada, como é por Prothero) é evidente. Se todas as religiões fossem tão benevolentes e nuançadas quanto a sua, gentil teólogo, tudo estaria bem, e Hitchens não teria precisado escrever este livro.
Mas desça das nuvens para o mundo real: em Islamabad, por exemplo, em Jerusalém, ou na cidade do próprio Hitchens, Washington, onde o presidente do país mais poderoso do planeta recebe suas ordens diretamente de Deus. Zapeie entre canais de TV em qualquer quarto de hotel americano, choque-se com as quantias imensas de dinheiro doadas para construir megaigrejas, estarreça-se com museus que mostram dinossauros caminhando com homens e compreenda o que quero dizer.
Finalmente, há os críticos que não conseguem resistir ao golpe "ad hominem": "Você não sabe que Christopher Hitchens foi a favor da invasão do Iraque?". Mas e daí? Não estou escrevendo uma crítica de suas posições políticas, mas de seu livro. E que ataque esplêndido, ruidosamente viril é este livro.

A íntegra deste texto saiu no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.


Próximo Texto: Best-seller, Dawkins leva ateísmo à TV
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.