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Ponto de Fuga
A boa mestra
Gilda de Mello e Souza ensinava uma ética da obra, que se apóia na atenção, no cuidado, no prazer que degusta e faz brotar a análise fina e verdadeira, verdadeira porque fina
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Durante os meses de
agosto e setembro [os
eventos se encerram no
dia 30], o SESC de Araraquara
apresentou um conjunto de
atividades centradas em Gilda
de Mello e Souza [1919-2005].
Foi bem mais do que apenas
uma homenagem prestada pela
cidade à filha ilustre.
Os organizadores reuniram
conferências, vídeos, testemunhos, concertos, um ciclo de
filmes, uma exposição da ceramista Sara Carone, que Gilda
de Mello e Souza analisara admiravelmente. Tudo isso fez
sobressairem vários aspectos
de sua personalidade e de seu
pensamento.
Gilda de Mello e Souza publicou relativamente pouco. Todos os seus textos, lições de
percepção, de escrita e de inteligência são ainda mais preciosos porque raros. Por isso também oferecem apenas fragmentos de seu modo de ser e de
pensar. Em Araraquara, acompanhando o estudo de sua obra,
buscou-se, de modo mais amplo, a presença humana e intelectual que está na memória
dos que a conheceram, conviveram e aprenderam com ela.
Gilda de Mello e Souza ensinou na USP. Havia nela uma irradiação que a singularizava
dentro do meio universitário.
Não se trata de um fascínio estratégico que tantos professores sabem empregar para seduzir. Era outra coisa, profundamente sincera e original. Partia
da desconfiança nos esquemas
interpretativos prévios, da recusa às teorias e aos conceitos
capazes de esmagar os objetos
que deveriam estudar, do horror às piruetas mentais que se
servem das obras como trampolins.
Com suas intuições fulgurantes, mas expostas de maneira tranqüila e clara, ela perturbava os autoritarismos mentais
tão seguros de si e tão comuns.
Gilda de Mello e Souza ensinava, por seu exemplo, uma ética
da obra, que se apóia na atenção, no cuidado delicado, no
prazer que degusta e que faz
brotar a análise fina e verdadeira, verdadeira porque fina.
Feição
As atividades sobre Gilda de
Mello e Souza em Araraquara
foram reunidas sob o título:
"Gilda - A Paixão pela Forma".
A expressão é bela, mas talvez
não seja justa. A forma é sempre uma redução mental: uma
laranja pode ter a forma de uma
esfera, mas a esfera não é uma
laranja. O pensamento de Gilda
de Mello e Souza não era formalista: ela captava o objeto na
sua complexidade de existência, de aparência, de ressonâncias coletivas ou individuais.
Exemplo
Gilda de Mello e Souza, sobre
a vestimenta e a festa: "A roupa
simples da vida comum, ajeitada às exigências triviais da realidade, é substituída na festa
pela forma fantasmal que o
narcisismo apõe ao corpo e ao
rosto. O universo do sonho é
também o reino das transmutações. E uma nova personalidade emerge no momento de
exceção, quando à esfera da
pessoa se acrescenta uma ambiência fictícia, feita de novas
cores com que se enriquece o
matiz natural da epiderme, de
novas curvas que se adicionam
ao corpo [...]. E essa irradiação
do corpo feminino atinge os vários sentidos do homem, aprisionando-o em sua atmosfera"
("O Espírito das Roupas - A
Moda no Século 19", ed. Cia. das
Letras). Como se vê, a "forma
fantasmal" é uma aparência
que se enriquece de indícios e
de significações.
Letras
A fala, ou a escrita, e a inteligência compunham uma coisa
só. Gilda de Mello e Souza era
clara, precisa, elegante em seus
textos perfeitos. Ainda mais
porque, no seu caso, o estilo
não pode ser separado da idéia.
Suas frases heurísticas fazem
brotar, ao mesmo tempo, de
modo nada abstrato, intuição e
análise, percepção e inteligência.
jorgecoli@uol.com.br
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