São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Ponto de Fuga

A boa mestra


Gilda de Mello e Souza ensinava uma ética da obra, que se apóia na atenção, no cuidado, no prazer que degusta e faz brotar a análise fina e verdadeira, verdadeira porque fina

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Durante os meses de agosto e setembro [os eventos se encerram no dia 30], o SESC de Araraquara apresentou um conjunto de atividades centradas em Gilda de Mello e Souza [1919-2005]. Foi bem mais do que apenas uma homenagem prestada pela cidade à filha ilustre.
Os organizadores reuniram conferências, vídeos, testemunhos, concertos, um ciclo de filmes, uma exposição da ceramista Sara Carone, que Gilda de Mello e Souza analisara admiravelmente. Tudo isso fez sobressairem vários aspectos de sua personalidade e de seu pensamento.
Gilda de Mello e Souza publicou relativamente pouco. Todos os seus textos, lições de percepção, de escrita e de inteligência são ainda mais preciosos porque raros. Por isso também oferecem apenas fragmentos de seu modo de ser e de pensar. Em Araraquara, acompanhando o estudo de sua obra, buscou-se, de modo mais amplo, a presença humana e intelectual que está na memória dos que a conheceram, conviveram e aprenderam com ela.
Gilda de Mello e Souza ensinou na USP. Havia nela uma irradiação que a singularizava dentro do meio universitário. Não se trata de um fascínio estratégico que tantos professores sabem empregar para seduzir. Era outra coisa, profundamente sincera e original. Partia da desconfiança nos esquemas interpretativos prévios, da recusa às teorias e aos conceitos capazes de esmagar os objetos que deveriam estudar, do horror às piruetas mentais que se servem das obras como trampolins.
Com suas intuições fulgurantes, mas expostas de maneira tranqüila e clara, ela perturbava os autoritarismos mentais tão seguros de si e tão comuns. Gilda de Mello e Souza ensinava, por seu exemplo, uma ética da obra, que se apóia na atenção, no cuidado delicado, no prazer que degusta e que faz brotar a análise fina e verdadeira, verdadeira porque fina.

Feição
As atividades sobre Gilda de Mello e Souza em Araraquara foram reunidas sob o título: "Gilda - A Paixão pela Forma". A expressão é bela, mas talvez não seja justa. A forma é sempre uma redução mental: uma laranja pode ter a forma de uma esfera, mas a esfera não é uma laranja. O pensamento de Gilda de Mello e Souza não era formalista: ela captava o objeto na sua complexidade de existência, de aparência, de ressonâncias coletivas ou individuais.

Exemplo
Gilda de Mello e Souza, sobre a vestimenta e a festa: "A roupa simples da vida comum, ajeitada às exigências triviais da realidade, é substituída na festa pela forma fantasmal que o narcisismo apõe ao corpo e ao rosto. O universo do sonho é também o reino das transmutações. E uma nova personalidade emerge no momento de exceção, quando à esfera da pessoa se acrescenta uma ambiência fictícia, feita de novas cores com que se enriquece o matiz natural da epiderme, de novas curvas que se adicionam ao corpo [...]. E essa irradiação do corpo feminino atinge os vários sentidos do homem, aprisionando-o em sua atmosfera" ("O Espírito das Roupas - A Moda no Século 19", ed. Cia. das Letras). Como se vê, a "forma fantasmal" é uma aparência que se enriquece de indícios e de significações.

Letras
A fala, ou a escrita, e a inteligência compunham uma coisa só. Gilda de Mello e Souza era clara, precisa, elegante em seus textos perfeitos. Ainda mais porque, no seu caso, o estilo não pode ser separado da idéia. Suas frases heurísticas fazem brotar, ao mesmo tempo, de modo nada abstrato, intuição e análise, percepção e inteligência.

jorgecoli@uol.com.br

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