São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Cultura

Sonho de metal

Trajetória artística de Richard Serra mostra evolução do relacionamento entre arte e indústria

NELSON BRISSAC
ESPECIAL PARA A FOLHA

A retrospectiva de Richard Serra no MoMA, que termina amanhã em Nova York, foi calibrada para estabelecer em definitivo o artista como o mais importante escultor da atualidade.
Um enorme catálogo e uma intensa divulgação midiática respaldam a empreitada de reconhecimento, pelo establishment cultural, daquele que já teve uma obra -"Tilted Arc" (1981)- destruída na própria cidade de Nova York, depois de controverso processo público.
A exposição, anunciada como cobrindo os 40 anos de atividades do artista, tem evidentes limitações: apresenta obras do período inicial e as monumentais peças recentes. São omitidos por completo os trabalhos para espaços públicos, os arcos, as obras em elevação e os grandes cubos. Os 20 anos intermediários, que nos ajudariam a entender de onde vieram as imensas elipses e espirais que intrigam e desnorteiam o público.
Pois o que interessa é o itinerário de Serra. Robert Morris, outro importante criador nessa área, tem considerações cruciais sobre as relações dos artistas minimalistas com o processo de produção industrial, em particular o siderúrgico.
Elas se caracterizavam pela subordinação dos métodos artísticos à lógica da fabricação.

Potenciais do aço
A operação artística não era capaz de interferir no dispositivo industrial -lidava apenas com materiais fabricados, segundo padrões de formatação e manipulação predeterminados. O modo de produção condiciona o trabalho artístico, induzindo ao planar e ao linear.
A percepção desse problema seria essencial para os artistas pós-minimalistas desenvolverem outras estratégias de ação no interior do sistema industrial. Para Serra, tratou-se de lastrear seu trabalho no conhecimento dos processos de laminação e forjamento, de novas geometrias e de logística complexa. Isso implicou uma crescente capacidade de negociar seus projetos e condições de produção.
A obra de Serra se define, desde o início, pela exploração dos potenciais do aço. Os primeiros trabalhos são baseados nos princípios básicos da estruturação: a gravidade e o equilíbrio. Operações de suspensão e sustentação, relação entre carga e suporte, peso e medida.
A segunda fase inicia-se com uma mudança de escala. Grandes obras para espaços urbanos e a paisagem colocam a questão da percepção, que exige o deslocamento do observador, e da especificidade do lugar. Há a introdução da geometria -ainda euclidiana (plano, linha, círculo) e própria do repertório industrial.
No início dos anos 1990, os trabalhos ganham maior complexidade geométrica e grandes escalas. As obras feitas com chapas e blocos forjados de grandes dimensões passam a ser produzidas apenas em aciarias especializadas e antigos estaleiros. O trabalho recente é voltado para a produção de novas formas -elipses, espirais e toros. Resultado de intensa investigação em geometria não-euclidiana: as espirais são logarítmicas, não-concêntricas, variando na medida em que se expandem.
Serra introduz o tempo como questão estrutural: as relações mecânicas entre massas dão lugar a um continuum espacial. A resultante são obras que proporcionam uma sensação ao mesmo tempo labiríntica e vertiginosa.
Serra tira proveito das novas tecnologias de fabricação de aço, de lingotamento contínuo e laminação, ampliando o vocabulário de formas e topologias. Os parâmetros máximos de calandragem do aço permitiram obter raios muito mais fechados, inclinando as curvas.
A torção das chapas, nos graus de envergadura e ondulação requeridos, implicou design técnico -como a aplicação do programa Catia, usado na indústria aeroespacial.
O artista conseguiu, inclusive, desenvolver uma forma, o toro, não constante na linha de produção. Com essas obras, o trabalho de Serra deixou de ser uma manipulação de peças brutas de aço para tornar-se, efetivamente, uma operação siderúrgica.

Complexidade crescente
Esse itinerário coloca várias questões sobre o desenvolvimento futuro de um repertório estético a partir de bases industriais. Por um lado, a crescente complexidade da geografia da produção industrial -o deslocamento dos centros de decisão e de fases da produção para diversas regiões do mundo- torna mais complexo para o artista desenvolver um know-how para operar na indústria.
Um exemplo: a siderúrgica americana com que Serra trabalha, a Sparrows Point, foi recentemente vendida para um consórcio de que faz parte a Companhia Vale do Rio Doce.
Também a recepção deste tipo de criação artística tende a parecer remota ou anacrônica, pertencendo a um passado industrial. Para o público norte-americano, cada vez mais distanciado da cultura fabril, as obras de Serra tornaram-se, do ponto de vista da feitura, indecifráveis: não se consegue mais imaginar como foram feitas.
Estranho paradoxo para quem toma suas obras como verdadeiros monumentos à cultura industrial.
Essa situação é paradigmática da condição do artista contemporâneo. Pode levar a uma reversão: de volta para uma submissão à lógica da produção industrial. Esse é o maior dilema da arte atual em relação às suas condições de produção. A obra de Serra situa-se no centro de gravidade dessa encruzilhada.


NELSON BRISSAC é professor da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital da Pontifícia Universidade Católica - SP. Organiza o projeto Arte/Cidade (www.artecidade.org.br).

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