|
Texto Anterior | Índice
Cultura
Sonho de metal
Trajetória artística de Richard Serra mostra evolução
do relacionamento entre arte e indústria
NELSON BRISSAC
ESPECIAL PARA A FOLHA
A retrospectiva de Richard Serra no MoMA, que termina
amanhã em Nova
York, foi calibrada
para estabelecer em definitivo
o artista como o mais importante escultor da atualidade.
Um enorme catálogo e uma intensa divulgação midiática respaldam a empreitada de reconhecimento, pelo establishment cultural, daquele que já
teve uma obra -"Tilted Arc"
(1981)- destruída na própria
cidade de Nova York, depois de
controverso processo público.
A exposição, anunciada como cobrindo os 40 anos de atividades do artista, tem evidentes limitações: apresenta obras
do período inicial e as monumentais peças recentes. São
omitidos por completo os trabalhos para espaços públicos,
os arcos, as obras em elevação e
os grandes cubos. Os 20 anos
intermediários, que nos ajudariam a entender de onde vieram as imensas elipses e espirais que intrigam e desnorteiam o público.
Pois o que interessa é o itinerário de Serra. Robert Morris,
outro importante criador nessa
área, tem considerações cruciais sobre as relações dos artistas minimalistas com o processo de produção industrial,
em particular o siderúrgico.
Elas se caracterizavam pela subordinação dos métodos artísticos à lógica da fabricação.
Potenciais do aço
A operação artística não era
capaz de interferir no dispositivo industrial -lidava apenas
com materiais fabricados, segundo padrões de formatação e
manipulação predeterminados. O modo de produção condiciona o trabalho artístico, induzindo ao planar e ao linear.
A percepção desse problema
seria essencial para os artistas
pós-minimalistas desenvolverem outras estratégias de ação
no interior do sistema industrial. Para Serra, tratou-se de
lastrear seu trabalho no conhecimento dos processos de laminação e forjamento, de novas
geometrias e de logística complexa. Isso implicou uma crescente capacidade de negociar
seus projetos e condições de
produção.
A obra de Serra se define,
desde o início, pela exploração
dos potenciais do aço. Os primeiros trabalhos são baseados
nos princípios básicos da estruturação: a gravidade e o equilíbrio. Operações de suspensão e
sustentação, relação entre carga e suporte, peso e medida.
A segunda fase inicia-se com
uma mudança de escala. Grandes obras para espaços urbanos
e a paisagem colocam a questão
da percepção, que exige o deslocamento do observador, e da
especificidade do lugar. Há a introdução da geometria -ainda
euclidiana (plano, linha, círculo) e própria do repertório industrial.
No início dos anos 1990, os
trabalhos ganham maior complexidade geométrica e grandes
escalas. As obras feitas com
chapas e blocos forjados de
grandes dimensões passam a
ser produzidas apenas em aciarias especializadas e antigos estaleiros. O trabalho recente é
voltado para a produção de novas formas -elipses, espirais e
toros. Resultado de intensa investigação em geometria não-euclidiana: as espirais são logarítmicas, não-concêntricas, variando na medida em que se expandem.
Serra introduz o tempo como
questão estrutural: as relações
mecânicas entre massas dão lugar a um continuum espacial. A
resultante são obras que proporcionam uma sensação ao
mesmo tempo labiríntica e vertiginosa.
Serra tira proveito das novas
tecnologias de fabricação de
aço, de lingotamento contínuo
e laminação, ampliando o vocabulário de formas e topologias.
Os parâmetros máximos de calandragem do aço permitiram
obter raios muito mais fechados, inclinando as curvas.
A torção das chapas, nos
graus de envergadura e ondulação requeridos, implicou design técnico -como a aplicação
do programa Catia, usado na
indústria aeroespacial.
O artista conseguiu, inclusive, desenvolver uma forma, o
toro, não constante na linha de
produção. Com essas obras, o
trabalho de Serra deixou de ser
uma manipulação de peças
brutas de aço para tornar-se,
efetivamente, uma operação siderúrgica.
Complexidade crescente
Esse itinerário coloca várias
questões sobre o desenvolvimento futuro de um repertório
estético a partir de bases industriais. Por um lado, a crescente
complexidade da geografia da
produção industrial -o deslocamento dos centros de decisão
e de fases da produção para diversas regiões do mundo- torna mais complexo para o artista
desenvolver um know-how para operar na indústria.
Um exemplo: a siderúrgica
americana com que Serra trabalha, a Sparrows Point, foi recentemente vendida para um
consórcio de que faz parte a
Companhia Vale do Rio Doce.
Também a recepção deste tipo de criação artística tende a
parecer remota ou anacrônica,
pertencendo a um passado industrial. Para o público norte-americano, cada vez mais distanciado da cultura fabril, as
obras de Serra tornaram-se, do
ponto de vista da feitura, indecifráveis: não se consegue mais
imaginar como foram feitas.
Estranho paradoxo para quem
toma suas obras como verdadeiros monumentos à cultura
industrial.
Essa situação é paradigmática da condição do artista contemporâneo. Pode levar a uma
reversão: de volta para uma
submissão à lógica da produção
industrial. Esse é o maior dilema da arte atual em relação às
suas condições de produção. A
obra de Serra situa-se no centro de gravidade dessa encruzilhada.
NELSON BRISSAC é professor da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital da Pontifícia Universidade Católica - SP. Organiza o projeto Arte/Cidade (www.artecidade.org.br).
Texto Anterior: + Lançamentos Índice
|