São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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A SOCIEDADE DA CULPA

EM ENTREVISTA À FOLHA, PAUL FLATTERS, DA FUTURE FOUNDATION, DIZ QUE A ASCENSÃO DO "ESTADO-BABÁ" PODE ATINGIR NÍVEIS DE COERÇÃO INÉDITOS AO LEGITIMAR A ANSIEDADE DEMONSTRADA PELOS INDIVÍDUOS

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A notícia é má para quem gosta de beber, fumar, comer comidas gordurosas, praticar esportes perigosos e até assistir à televisão ou tomar banho de sol: há uma marcha crescente do "puritanismo" e uma tendência cada vez maior de um "ataque ao prazer", proibindo ou regulamentando as atividades que proporcionam satisfação ao indivíduo na sociedade.
Essa é a conclusão de um abrangente estudo cuja versão preliminar acaba de ser publicada no Reino Unido pela Future Foundation, organização que monitora e analisa tendências sociais.


É a intolerância para com pessoas que querem viver um estilo de vida alternativo que pode vir a ser nocivo para sua saúde


Em entrevista à Folha, o diretor-executivo da fundação e ex-chefe de análise e pesquisas da BBC, Paul Flatters, aponta que o "novo puritanismo" não é uma tendência conservadora do ponto de vista sexual, mas um controle público e legal sobre o comportamento social e mercadológico de consumidores, evitando todo tipo de atividade de "risco".
A tendência ao autocontrole e à correção social acaba por influenciar o próprio Estado a impor restrições, levando-o a ser considerado uma "babá" da sociedade -"nanny state", em inglês-, criando um processo de mão dupla.
A Future Foundation, que faz estudos de mercado para empresas como a Eletrolux, a Microsoft, instituições governamentais e ONG ouviu cerca de mil pessoas na Inglaterra e constatou que um percentual muito similar dos entrevistados, cerca de 70%, acha que o governo deve cuidar tanto das finanças da nação quanto da regulamentação do consumo de álcool.
Mais de um terço deles concorda em que se deve pensar duas vezes antes de dar chocolates como presentes, e 45% acham que o governo deveria proibir a colocação de máquinas para a venda de doces em hospitais e escolas.
Do controle do uso de drogas passa-se à regulamentação de velocidade nas ruas e estradas, proibição e restrição do consumo de álcool, cigarro e até mesmo de chocolates. Para Flatters, dentro de cinco anos a influência e o poder de regulamentação do Estado deverá controlar até o consumo de doces, atividades de tiro esportivo, o modo de assistir à TV e a ingestão de sanduíches de bacon.
Na entrevista abaixo, Flatters explica as formas como surgem e como se comportam o que ele chama de "novos puritanos", pessoas que, segundo ele, passam a achar intolerável viver com o risco, a incerteza, e passam a querer tudo controlado.
Pessoalmente, Flatters se diz favorável a muitas das restrições discutidas individualmente, mas se mostra preocupado com a tendência de muitas delas serem aprovadas em conjunto e passarem a controlar quase todos as possibilidades de ação dos indivíduos.
 

Folha - Como surgiu a pesquisa que vocês dizem apontar a existência de um "novo puritanismo"?
Paul Flatters -
Como fazemos com uma certa freqüência, buscamos as idéias baseadas em outros dados de pesquisas. Percebemos que havia essa nova tendência crescente, segundo a qual as pessoas procuram restringir qualquer mercado em que haja elementos relacionados ao prazer.
Estamos numa fase inicial da pesquisa, mas que nos fornece elementos para comprovar que há, sim, essa tendência, que afeta a sociedade e o mercado. A pesquisa ainda deve se estender até o próximo ano para consolidarmos os dados e tirarmos conclusões, mas já conseguimos informações bastante interessantes.

Folha - Quais foram as principais conclusões do estudo?
Flatters -
Nossa descoberta-chave foi a de que muitas coisas que costumávamos tolerar e aceitar como comportamentos completamente normais na sociedade estão começando a sofrer restrições por serem vistos como causadores de riscos para outras pessoas.
Por exemplo, tem sido dada muita atenção à dieta das pessoas, à disponibilidade de fast-foods, comidas gordurosas e outras coisas do tipo, com as quais nunca havíamos nos preocupado antes.
Para completar, obesidade e sobrepeso estão se tornando assuntos de saúde pública. É uma combinação de preocupação pessoal com a saúde e a segurança mas também a vontade de limitar o comportamento alheio, jogando a responsabilidade nas costas do Estado.

Folha - E por que isso acontece?
Flatters -
Por uma série de fatores. Em primeiro lugar, há o fato de que as pessoas estão cada vez mais ansiosas, entre outras coisas, com a saúde. Isso as leva a se comportarem de forma cada vez mais irracional. Acho que também há um apetite crescente por assuntos novos. Aqui na Inglaterra a economia vai muito bem, as pessoas estão mais ricas do que em qualquer outra época da história e, dessa forma, buscam novas preocupações, que não apenas o dinheiro.

Folha - Então é um problema típico de países ricos e desenvolvidos?
Flatters -
Não sei responder, na verdade, já que a pesquisa foi realizada apenas na Inglaterra. Mas, a partir dessa pesquisa, posso afirmar que o interesse por esses temas cresce quando a economia também cresce.

Folha - O sr. diria que há alguma influência da mentalidade norte-americana nesse tipo de comportamento dos ingleses?
Flatters -
Sim, acho que há. Uma das coisas que percebemos é que a Inglaterra está importando dos EUA essa cultura da compensação. Não há mais a idéia de que acidentes não acontecem e de que ninguém é culpado pelas coisas que dão errado; agora, ao contrário, há uma forte tendência em procurar jogar a culpa em alguém sempre que algo não dá certo.
Surgem organizações fora da esfera pública que buscam zerar a possibilidade de as pessoas provocarem danos a si mesmas pelo consumo de determinados produtos. Esses tipos de comportamento e de cultura são muito claros nos EUA e parecem estar chegando com força à Inglaterra.

Folha - Essa tendência à restrição das liberdades tem a ver com aquela imposta nos Estados Unidos depois do 11 de Setembro?
Flatters -
Acho que há um pouco disso, sim. O terrorismo sem dúvida aumentou a preocupação e a paranóia da sociedade, impulsionando a tendência à regulamentação e às restrições à liberdade.
Mas acho que se trata de um problema mais amplo, que era importante nos EUA mesmo antes do 11 de Setembro, como a proibição do fumo em locais públicos e coisas do tipo. Os atentados terroristas provavelmente aceleraram todo o processo, mas não foram sua causa isolada. Esse processo é anterior.

Folha - Podemos comparar esse processo com a febre do "politicamente correto"?
Flatters -
Acho que os dois estão muito ligados, mas não de forma óbvia. Trata-se de um declínio da tolerância em relação ao comportamento de outras pessoas. De certo modo, é o declínio da tolerância para com comportamentos diversos, é a intolerância para com pessoas que querem viver um estilo de vida alternativo, que pode vir a ser nocivo para sua saúde. Aceita-se menos isso.
Até certo ponto, podemos dizer que isso é o oposto do politicamente correto, já que este último, acredito, é a incapacidade de criticar qualquer grupo minoritário.
Esse processo de que falamos é o contrário, pois ataca grupos centrais da sociedade, caso seu comportamento seja considerado pouco saudável, ruim como política pública, ameaçador para outras pessoas.

Folha - Não é difícil realizar um estudo crítico como esse, se considerarmos que as pessoas que querem impor essas restrições públicas na verdade pretendem apenas proteger os indivíduos?
Flatters -
Talvez seja verdade. O ponto que queremos deixar claro é que não é errado ter uma preocupação com o bem-estar da sociedade. Item por item, a opção pelos limites parece bem aceitável. Eu mesmo concordo com muitas das coisas que acontecem. Não sou fumante e concordo, por exemplo, que o fumo deve ser cada vez mais restringido. Sou a favor, mas esse não é o ponto.
O que queremos sublinhar é que, se cada uma dessas novas peças de regulamentação for oficializada, por mais que cada uma delas seja aceitável individualmente, ao reuni-las, estamos gradualmente mudando o mundo. Se todas as restrições e limitações que estão sendo defendidas por grupos específicos forem aprovadas na velocidade em que está ocorrendo, em dez anos não haverá nenhuma parte da legislação intocada. Claro que podemos dizer que as pessoas que defendem essas regulamentações estão apenas tentando proteger a sociedade, mas há uma linha tênue entre as duas coisas. Às vezes podemos proteger pessoas com medidas que acabam tendo efeitos negativos na vida coletiva da sociedade.
Dou um exemplo: é cada vez mais difícil para as escolas inglesas conseguirem seguro para levar as crianças em passeios de férias. É um tema constante no país há mais de 15 anos. Levar as crianças para a natureza, para praticar esportes, esse tipo de coisa, está muito difícil porque as seguradoras não sentem segurança para se responsabilizarem por esse tipo de atividade, e o resultado é que as crianças estão perdendo em diversão e em conhecimento.
Claro que a preocupação é correta e há algum risco nesse tipo de atividade, mas o resultado é que as crianças são simplesmente alijadas desse tipo de experiência. As preocupações com a saúde e a felicidade são positivas, mas algumas das conseqüências das ações de regulamentação acabam funcionando de forma contrária, afetando, desse modo, a qualidade de vida das pessoas.

Folha - Há efeitos econômicos envolvidos nessas restrições?
Flatters -
Claro que, se algumas dessas regulamentações realmente forem aprovadas, muitos setores da economia irão sofrer. O turismo vai perder, os setores associados ao lazer, como um todo.
O próprio McDonalds tem tido reduções nas vendas e nos lucros na Inglaterra a cada ano. Isso cria, do ponto de vista econômico, uma diminuição no bem-estar da sociedade.

Folha - Como podemos distinguir a preocupação com o bem-estar social do "neopuritanismo"?
Flatters -
É muito difícil. O problema é que há indivíduos que escolhem os temas a respeito dos quais são muito tolerantes ou pouco tolerantes. As pessoas são muito interessadas em proteger sua própria liberdade. Se gosto de fumar e beber, quero que esses meus hábitos sejam tão livres quanto possível, mas sou mais duro com outros hábitos que não tenho.
Essa é uma das grandes dificuldades, pois cada indivíduo só quer regular e limitar as atividades daquilo de que não gosta, mas, ao contrário, proteger os próprios hábitos.
A linha é muito difícil de ser traçada, e se trata de um tema ainda muito pouco estudado.

Folha - Quais são as possíveis conseqüências desse cenário de extrema regulamentação e restrição de consumo?
Flatters -
Certamente o "Estado-babá", mas potencialmente algo mais profundo, sério e disseminado pela sociedade, algo mais próximo de um "Grande Irmão", que controla todos os movimentos de cada indivíduo da sociedade.


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