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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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O CINEASTA RUSSO IEVGUÊNI YUFIT EXPLICA COMO A MORTE SE TORNA METÁFORA DA DECADÊNCIA ESPIRITUAL EM SEUS FILMES

A ESTÉTICA DO NECRO-REALISMO

Carlos Adriano
especial para a Folha

Realismo da morte" e "morte ao realismo socialista": o Necro-Realismo foi autópsia elegíaca de signos proscritos da era soviética e transgressão de seus mitos e tabus (como o tabu da morte do comunismo na perestroika). É um cinema-miasma.
Provocações sobre as imagens ideológicas do regime de uniforme e seu patos heróico-coletivo, os "necrofilmes" seriam "ilustração da "natureza ontológica do filme" (André Bazin)", "manifestação da "implosão total do sentido" (Jean Baudrillard)" e "tradução das idéias existencialistas de Nikolai Fedoróv (filósofo que devotou sua vida aos mortos)".
O criador do Necro-Realismo é Ievguêni Yufit (São Petersburgo, 1961), verdadeira lenda viva do cinema russo. Autor de filmes radicais como "Pai, Papai Noel Está Morto" (versão livre de "Família de Vampiros", de Tolstói) e "Morto por Raio" ("sci-fi" inspirada em "Os Assassinatos da Rua Morgue" de Poe), Yufit teve seus filmes exibidos em Locarno, Roterdã e Toronto e suas pinturas expostas no MoMA de Nova York, Museu Estatal Russo e Stedelijk Museum, de Amsterdã.
A retrospectiva completa da obra de Yufit é uma das atrações do ciclo "Inquietações Subterrâneas - Cinema Russo Experimental e de Animação Contemporâneo", que será apresentado em São Paulo de 9 a 14 de dezembro, pelo Centro Cultural Banco do Brasil e a Associação Cultural Babushka, com a exibição de 76 filmes e vídeos (curtas, médias, longas), produzidos entre 1984 e 2002, inéditos no Brasil.
Nesta entrevista, Yufit fala, entre outros temas, do Necro-Realismo, das condições de produzir filmes na Rússia e da estética no cinema atual.

A Rússia deu ao mundo uma forte contribuição vanguardista nas três primeiras décadas do século 20 (a poesia de Khlébnikov e Maiakóvski, a arte de Malevitch e Rodchenko, o construtivismo). Seu trabalho tem relação com essas rupturas?
É difícil analisar agora quais artistas ou movimentos me influenciaram como cineasta. Mas, com certeza, a vanguarda russa de 1920-1930 é esteticamente mais próxima de mim do que os movimentos mais recentes da arte contemporânea russa. Nos anos de 1980, quando trabalhava como fotógrafo de arte e pintor, vi a exposição do acervo do Museu Russo, em São Petersburgo. Na época, a arte não-conformista era proibida na União Soviética e ficava escondida dos espectadores. Foi a primeira exposição da vanguarda russa durante a perestroika. Ainda me lembro da grande e intensa excitação que senti ao ver as obras de Larionóv e Kandinski.

Quais suas relações com o cinema russo de vanguarda (Eisenstein, Vertóv, Pelechian) e suas referências no cinema em geral?
Dziga Vertóv é o que mais profundamente me toca, entre os autores listados. O espírito de improviso e associação de seus trabalhos é incomparável a quaisquer outros filmes daquele período. Considero "O Homem da Câmera" o melhor filme do cinema russo dos anos 20.
Dos outros movimentos, a "avant-garde" francesa e o expressionismo alemão são os mais interessantes para mim, com o fascínio pelo mundo do sonho, as subconsciências e o irracionalismo da psique humana. "Nosferatu" e "Fausto", de Murnau, são meus favoritos. E, da "avant-garde", meus preferidos são os filmes de Germaine Dullac, Luis Buñuel e Jean Cocteau. A mágica do preto-e-branco silencioso é única.

Em "Serventes de Lobisomem" (1984) surge o estilo, e "Primavera" (1987) é concebido como manifesto. Como o sr. define a estética do Necro-Realismo?
O Necro-Realismo estabeleceu-se como movimento radical na cena artística de Leningrado com vários filmes "paralelos", feitos à margem do sistema do cinema estatal da Goskino. A arte Necro-Realista situa-se na fronteira conceitual entre vida e morte. A realidade da morte é metáfora de manifestações da consciência humana, tais como a estupidez mental, a decadência espiritual e o vazio emocional.
Com seu interesse pela morte e a irracionalidade da mente humana, o Necro-Realismo está intimamente relacionado ao cinema dos anos de 1920, mas, em sua singularidade, não imita as tradições da "era de ouro" do cinema.
O Necro-Realismo sintetiza essas principais contribuições formais com motivações sociais das realidades russa e soviética: o absurdo, o humor negro e o afiado grotesco social. E por isso é autêntico como movimento artístico e não poderia aparecer em nenhum outro lugar, a não ser na Rússia.

O movimento flertou com o cinema estatal?
Em 1989, o Necro-Realismo tentou negociar sua reputação underground para conseguir apoio financeiro do Estúdio Estatal de Cinema. Alexander Sokúrov organizou uma escola ali e cineastas necro-realistas foram admitidos. O grupo ganhou aprovação oficial para filmar em 35 mm. Em seguida à minha graduação, já pude fazer longas-metragens. Essa conexão não alterou a essência do movimento, que permaneceu alternativo, com seu repúdio ao convencional.

Vários filmes seus, como "Morto por Raio" (2002), têm raiz na ficção científica. O Necro-Realismo liga a crítica do homem à ciência?
A abordagem crítica, a relatividade das realizações científicas e a consciência humana são pontos cruciais para todos os meus filmes. Sou muito sarcástico sobre esses tópicos em minha obra. Estou cada vez mais convencido de que mesmo as realizações no cinema, tais como som, cor e o surgimento do vídeo, tornaram essa forma de arte mais primitiva e rasa. Os filmes do período silencioso são mais poderosos e expressivos visualmente que a maioria dos filmes contemporâneos.

Em 1985, o sr. fundou o primeiro estúdio independente na Rússia, o Mzhalala Film. Como era a cena quanto à produção de filmes experimentais?
Nos anos 80, o cinema experimental na Rússia tinha uma base tecnológica vasta e pronta para ser usada. Durante a era soviética, toda grande fábrica era obrigada a ter um clube ou oficina de cinema, onde qualquer um que quisesse aprender a fazer filmes poderia entrar e estudar.
Durante a perestroika, a pressão da ideologia comunista relaxou e todos puderam continuar os experimentos, fazendo tudo o que se queria e contando com tais facilidades tecnológicas. Infelizmente isso não durou muito.
Após o fim da União Soviética, a economia ruiu muito rápido e o cinema russo independente perdeu seu apoio técnico e financeiro. Sua existência quase cessou, com exceção de cineastas individuais, como eu mesmo, Gleb Aleinnikov, Igor Bezrukov e alguns outros. Meu estúdio reuniu um grupo de artistas radicais do underground.

Como cineasta, quais são seus interesses autorais e sua avaliação dos filmes atuais?
Para mim, o cinema é primeiramente uma arte visual. Estou interessado na atmosfera da imagem e em suas associações e interpretações visuais. Não gosto do que está acontecendo no cinema contemporâneo. Com frequência, vou a diferentes festivais e os filmes que tenho oportunidade de ver não são interessantes do ponto de vista artístico e visual.


Carlos Adriano é cineasta e mestre em cinema pela USP.


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