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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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MOSTRA E DVD TRAZEM FILMES E ENTREVISTAS DE TARKÓVSKI

OCEANO DE ESPECTROS

especial para a Folha

Esculpir o tempo", o título do livro de Andrei Tarkóvski (1932-86), serve de estela para sua obra: é súmula tumular e metáfora estética dos 12 filmes que dirigiu entre 1958 e 1986. "O tempo no cinema se torna a base das bases, tal como o som na música e a cor na pintura", sentenciou o diretor no ensaio "Da Figura Cinematográfica", publicado na revista "Positif" (1981). Dobras naturais para o aluno de música e pintura que, quando jovem, trabalhou com prospecção geológica. O filho do poeta Arseni Tarkóvski, futuro escultor do tempo em filmes, talhou lenta dimensão física em história metafísica. Teorizando sobre "a pressão do tempo no plano", Andrei subjugou o arsenal da gramática do cinema para cantar o adágio: "O tempo num plano deve fluir independentemente e por conta própria". Para Deleuze, o cinema de Tarkóvski se inscreve "na alternativa clássica", optando "pelo plano", em detrimento da montagem. "A montagem está longe de oferecer uma nova qualidade", escreveu o diretor, o que chocaria o compatriota e camarada Eisenstein, célebre artífice do sentido do corte. Dilatando e embaçando a continuidade ontológica de Bazin, a arte de Tarkóvski é alegoria de morte: do tempo coagulado no plano cinematográfico ao tempo que corrói a espécie humana. De uma melancolia pútrida e romântica, construiu um monumento alegórico irregular, mito-prosaico. Seu primeiro longa, "A Infância de Ivan" (1962), foi defendido por Sartre como um exemplo de "surrealismo socialista". A seguir, aprimorou o fluxo do inconsciente. "Andrei Rublev" (1966) partia da vida do pintor de ícones (1360-1430) para refratar em "tableaux" a condição do artista do povo contra o poder. "O Espelho" (1974) partia estilhaços do reflexo em autobiografia própria, por meio das personas da mãe do diretor e de sua mulher, sob poemas do pai e o peso do material de arquivo.

"Novo Dostoiévski"
Condenado por "falta de rigor histórico", "Rublev" ficaria proibido durante cinco anos. E já sinalizava sua sina: enquanto a burocracia lançava-lhe a pecha de incompreensível, críticos e festivais internacionais o entronizavam como "um novo Dostoiévski". O estúdio Mosfilm não economizava recursos para produzir seus filmes nem para posteriormente entravar sua circulação.
Da "imagem-cristal" do espelho íntimo, Tarkóvski projetaria a opacidade líquida de planetas desolados e distópicos. Em "Solaris" (1972), são cientistas que orbitam em um oceano infernal de espectros. Em "Stalker" (1979), é um acidente cósmico que naufraga sobreviventes na agonia de uma cloaca pós-apocalíptica.
O rastreador ("stalker") do regime detectava o diretor no hiato da dissidência. Seria sintomático que a imolação ritual da paisagem (interior e do mundo) assumisse caráter de testamento de exílio. Apoiado em Tonino Guerra, roteirista de Antonioni e Angelopoulos, Tarkóvski segue um poeta russo em peregrinação espiritual pela Itália para conhecer o músico que saiu da Rússia para se suicidar ("Nostalgia", 1983). Em "O Sacrifício" (1986), com o diretor já abatido pelo câncer, a guerra nuclear e o fim anunciado transtorna a festa de aniversário de Alexander, induzindo-o à busca desesperada de salvação para sua família.
Se Paradjanov tripudiou com sua desabusada iconoclastia e foi acusado de "tráfico de ícones", Tarkóvski trancafiou o relicário da imagem em frágeis catedrais ortodoxas de tempo nostálgico. Seu anseio maior era promessa: que "o cinematógrafo consiga fixar o tempo em seus índices perceptíveis pelos sentidos".
(CARLOS ADRIANO)


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