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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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LEIA A SEGUIR ENSAIO DO CRÍTICO ALEMÃO LEO SPITZER SOBRE "TRISTÃO E ISOLDA", QUE FAZ PARTE DE "TRÊS POEMAS SOBRE O ÊXTASE", A SER PUBLICADO NESTA SEMANA PELA COSAC & NAIFY

O EROTISMO MÍSTICO DE WAGNER

Ken Howard - 26.set.2003/Associated Press
Cena da ópera "Tristão e Isolda", de Richard Wagner, em montagem do Metropolitan Opera, em Nova York


Leo Spitzer

Passemos agora a nosso terceiro retrato poético do êxtase, consideremos a cena da morte de amor ("Liebestod") de Isolda ao final de "Tristão e Isolda", "drama musical" de Richard Wagner [1813-83]. A escolha pode parecer surpreendente à primeira vista, uma vez que o texto de Wagner [leia o trecho original e a tradução, feita por Haroldo de Campos, na contracapa do Mais!] parece exigir a associação com a música -arte que por definição transcende as palavras. E é verdade que, nesse caso, o texto da nossa "explication de texte" deverá ser arrancado ao contexto em que deveria sempre imergir. Contudo, como o próprio Wagner sempre incluiu o texto de suas óperas em suas obras completas, dando assim a entender que julgava sua poesia capaz de resistir por mérito próprio, temos boa justificativa para analisá-lo criticamente. E talvez justamente aqui, no caso de um poeta cujos textos costumamos ouvir mesclados ou submersos por uma música inebriante, a sóbria interpretação filológica das palavras possa ser mais necessária. O cenário é uma falésia bretã à beira-mar, onde vemos Isolda junto do corpo morto de Tristão, que encontrou tarde demais. Em seu monólogo, dirigido a Marke, Brangäne e Kurwenal, seguido de sua morte e transfiguração, ocorrem variações sobre os termos da cena de amor do segundo ato; o monólogo é cantado sobre a mesma música, o melodioso motivo da "Liebestod", desenvolvido orgiasticamente pelos instrumentos, como contrapartida à monodia áspera do motivo da nostalgia ("Sehnsucht"). É a Tristão morto que Isolda moribunda vai se unir, num êxtase que marca a separação final entre corpo e alma. Isolda sente o estado transfigurado de Tristão, sente a luz que emana de seu olho ainda aberto ("Immer lichter/ wie er leuchtet"), o perfume que seus lábios ainda exalam ("wie den Lippen/ wonnig mild/ süsser Athem/ sanft entweht"), a música que ressoa de seu peito ainda palpitante ("Höre ich nur/ diese Weise"). Note-se ainda a síntese de sensações característica do êxtase, agora sublinhadas pela insistência programática de um Edgar Allan Poe ou de um Baudelaire. Segundo a ideologia wagneriana do "erotismo santificado", o amante morto é apresentado não apenas como sobrevivente à morte, mas como um santo, cujo corpo, contrariamente aos processos naturais, adquire qualidades miraculosas que fazem dele um deleite para os sentidos. O próprio Wagner percebia que essa filosofia seria de difícil aceitação por parte da platéia, pois Isolda se sente constrangida a pedir a corroboração de seus companheiros ("säh't ihr's nicht?"), exatamente como no poema de Donne.

Melodia sobrenatural
Os versos 7-24, um tanto túrgidos, dão lugar à verdadeira poesia quando Wagner faz Isolda descrever a canção que ela, e ela apenas, ouve do corpo de Tristão ("Höre ich nur/ diese Weise"). O êxtase místico é precipitado, como é característico em Wagner, não pelo olho que depende da luz, mas pelo ouvido que escuta uma melodia sobrenatural -pela música, radiante e dolorosa, forte e serena ao mesmo tempo, que transfixa Isolda como um dardo e a envolve como uma nuvem ("in mich dringt/ [...]/ um mich klingt?/ mich umwallend"). As faculdades de Isolda embotam-se gradualmente, de modo que ela não consegue mais distinguir as fronteiras entre os sentidos: "Sind es Wellen/ sanfter Lüfte?/ Sind es Wogen/ wonniger Düfte?". E, quando ela pergunta "soll ich athmen,/ soll ich lauschen?/ Soll ich schlürfen [...]?", notamos também o recuo gradual da vontade, por mais que a própria interrogação mostre que a razão ainda não se extinguiu.
Mas logo se dará uma curiosa desintegração sintática, que faz eco ao relaxamento da vontade: os infinitivos destacam-se de "soll ich" e acabam por parecer semi-independentes, como se não fossem mais questões impostas pela consciência, mas efusões líricas livres ao mesmo tempo em que soam impessoais, sugerindo um processo sem agente: "Ertrinken/ versinken". Esses infinitivos, parcialmente libertos da tutela de "sollen" e "wollen" (ou seja, da vontade), sugerem suspiros de alívio e de alegria, conforme a alma imerge no mar da auto-aniquilação. Na sequência que começa com a dúvida diante da realidade do milagre ("Höre ich nur/ diese Weise?") e da natureza dos fenômenos milagrosos ("sind es Wellen/ [...]/ Sind es Wogen/ [...]?"), e que conduz às perguntas que revelam a gradual desintegração da vontade ("soll ich [...]?") e aos suspiros de libertação ("ertrinken/ versinken"), Wagner descobriu um recurso inimitável de onomatopéia sintática para exprimir os últimos estágios da união mística.
Entretanto, ainda que haja aqui, como em San Juan de la Cruz, uma atmosfera de "todos los sentidos suspendidos", o êxtase que Wagner quer descrever difere em um ponto essencial. A união ansiada por Isolda não é mais uma união direta com Tristão (que se perde de vista após o verso 32), mas com os elementos em que ele se dissolveu: o perfume, o sopro, os sons excitam em Isolda o desejo de uma mesma dissolução ("mich verhauchen") nesse mesmo meio (note-se como a preposição um sugere um ambiente), figurado aqui pelo mar: "Untertauchen/ [...]/ In des Wonnemeeres/ wogendem Schwall/ [...]/ ertrinken/ versinken". Estamos diante da noção panteísta de fusão no universo de duas almas que se consomem de anseio e nostalgia. Nas palavras de Isolda -que ouvimos em voz de contralto profundo- não há nenhuma menção de movimento ascendente (como na apoteose final de "O Holandês Voador"), mas sim de descida para o oceano da auto-aniquilação. Apenas a parte orquestral, que se une à voz de Isolda na última nota (um "pianíssimo" que acompanha "Lust"), faz pressentir uma apoteose e uma ascensão, como se o cúmulo da liberdade só pudesse ser conquistado com a descida às profundezas. Esse oceano não é aquele vazio descrito por Jacopone e por outros místicos (inclusive San Juan de la Cruz): um vácuo criado pela alma a fim de que Deus venha preenchê-la. Ele surge como uma massa turbulenta de ondas, perfumes, sopro ("In des Wonnemeeres/ wogendem Schall,/ in der Duft-Wellen/ tönendem Schall,/ in des Welt-Athems/ wehendem All"), governada não por um Deus pessoal, mas pelas forças violentas da natureza. No sistema wagneriano, o espírito do mundo, figurado aqui como "sopro do mundo" ("Welt-Athem"), se identifica ao conjunto do universo ("das All"): já não é o espírito de Deus que sopra sobre as águas, mas sim "Deus sive natura" (Deus ou a natureza). Esse "All" da natureza, como aparece no clímax da visão extática, é o verdadeiro noivo de Isolda. Os particípios "wogendem", "tönendem", "wehendem", com seu teor onomatopaico e ritmo dactílico, acrescentam seu impacto à evocação do caos de movimento infinito. Vimos que, no poema espanhol, alcançava-se um efeito poético com termos e expressões populares; Wagner, porém, se vale da natureza da língua alemã e acumula combinações e compostos incomuns ("wogendem Schwall", "Wonnemeer", "Duft-Wellen", para não falar do tremendo hápax "Welt-Athem", que enche os pulmões de qualquer alemão) a fim de espelhar linguisticamente a multidão de formas em mutação incessante. Enquanto San Juan de la Cruz explorava a genuína riqueza vocálica da língua espanhola como convite a nos abandonarmos aos sentimentos serenos do poema, Wagner reforça a natureza consonantal do alemão por meio do recurso medieval da aliteração ("in des Welt-Athems/ wehendem All" -os /a/ oclusivos têm um sabor consonantal), como se quisesse retratar o dinamismo de um universo túrgido e pulsante. Esse efeito de pulsação é reforçado ainda mais pela multiplicação insistente das rimas reverberantes que pontuam a longa oração dos versos 26-50 e que, de certo modo, servem também para fazer eco à intensidade latejante dos sentimentos de Isolda, essa alma que busca a liberdade, martelando contra os muros de sua própria individualidade, além da qual pode ouvir os vagalhões das forças cósmicas que prometem libertação.

Nirvana
O dinamismo da dissolução que encontramos no poema de Wagner, a descrição do esforço apaixonado para perder a própria identidade contrastam fortemente com o controle tranquilo que molda o poema espanhol, no qual a alma pode permanecer individualizada; da mesma forma, devemos distinguir entre a união com as forças impalpáveis do universo e a união com um Deus pessoal -na verdade, ambos os contrastes são interdependentes. Chegamos assim aos dois últimos versos -"unbewusst/ höchste Lust!"-, nos quais encontramos uma equação epigramaticamente isolada (soldada pela rima) de dois termos que formam a base da filosofia wagneriana (que não é a de Descartes ou Kant, mas sim de Schopenhauer): o prazer ("Lust") máximo está na libertação da consciência e da individualidade, isto é, no nirvana. Mas a palavra "Lust", que se ergue inesperadamente sobre as notas graves de "ertrinken/ versinken", traz apenas a expectativa de um prazer. No poema espanhol, todas as expectativas já se realizaram quando chegamos (ou quem sabe antes) ao "olvidado" final, e a voz só pode abaixar-se. Mas aqui, com Wagner, devemos deixar a alma no umbral de novas experiências ou paraísos tímida e hesitantemente entrevistos: "Unendliche Werdelust" ("infinito prazer de devir") que permanece após o final do poema. Notemos ainda que "unbewusst/ höchste Lust!" é uma variação significativa de uma passagem do dueto de amor do segundo ato: "Ein-bewusst/ [...]/ höchste Liebes-Lust!". "Ein-bewusst" ("uni-consciente"), que se diz dos dois amantes, é substituído por "unbewusst" ("inconsciente"), predicado de Isolda apenas; e "höchste Liebes-Lust" ("máximo prazer do amor") se torna apenas "höchste Lust" ("máximo prazer"). Por meio desse paralelismo (reforçado pelo mesmo motivo musical), Wagner insinua que o êxtase da morte representa a consumação do êxtase amoroso: pois o amor, como o segundo ato o apresentava, se associava à noite e à morte (na mesma cena aparece a expressão "Liebestod", morte de amor) e se definia como extinção da individualidade, extinção inalcançável à luz do dia, que contorna com nitidez as individualidades distintas, mas sim durante a noite de amor, que as reúne: "Ewig einig,/ ungetrennt" ("sempre unos,/ indissociados"), "ohne Nennen,/ ohne Trennen" ("sem nome,/ sem separação"). A morte representa apenas um processo mais radical de dissolução da individualidade: a morte é uma noite de amor eterna. Se, em Wagner, a idéia de amor implica o anseio pela morte, assim também a morte tem um teor de êxtase erótico. O uso da mesma música para as duas cenas sugere que, na primeira, a ênfase recai sobre a morte-no-amor e, na segunda, sobre o amor-na-morte -a expressão "Liebestod" é ambivalente. Poderia mesmo ter um terceiro sentido, de "morte do amor", adeus ao amor: pois a Isolda moribunda não está se libertando das cadeias do mortífero instinto sexual? Quem sabe se o Wagner do período de Wesendonk, incapaz de encontrar repouso da obsessão passional, não teria encarregado Isolda, essa valquíria dos sentidos, de morrer uma morte vicária por ele?

Novo misticismo
Já mencionamos várias diferenças de detalhe entre os poemas espanhol e alemão; vemos agora que são diametralmente opostos em seu tratamento do amor. Para glorificar o erotismo, Wagner eleva-o a um novo misticismo; San Juan de la Cruz glorifica (isto é, torna efetiva) a união mística e espiritual ao trazê-la para a carne. O universo de Wagner é panteísta e pan-erótico; o mundo de San Juan de la Cruz é governado pelo amor divino.
Para os "padres" da igreja, o amor erótico era apenas um reflexo vil do amor a Deus, mas para Wagner, freudiano antes de Freud, o erotismo é a fonte de todos os tipos de amor. Contudo não se pode dizer que o panteísmo erótico de Wagner tenha raízes em uma confiança saudável e ingênua nos sentidos, como acontecia entre os gregos, em Goethe ou em Walt Whitman: ele é tingido de melancolia e pessimismo. Wagner inspira-se no desejo de submergir o fardo da vida e da individualidade no amor e na música de amor-morte. Jamais cantaria as folhas da relva. Suas flores são as "fleurs du mal" opiáceas, em contraste com os lírios de San Juan de la Cruz e as violetas de Donne.
Em termos estéticos, deve-se dizer que a forma poética escolhida por Wagner para exprimir sua filosofia é tão convincente quanto a de San Juan de la Cruz (e decerto a música dionisíaca do mestre alemão conquistou mais almas que qualquer artista de qualquer nação). Porém, sob a forma artística da poesia de Wagner (e sob a "melodia infinita" de sua música), se acha a natureza amorfa de sua filosofia. Pois o desejo de escapar à individualidade, seja por meio do amor, da morte ou da música -tendência que levou a resultados trágicos na história alemã dos séculos 19 e 20-, é sempre um desejo essencialmente amorfo e niilista de sucumbir ao caos do universo. Em contrapartida, a filosofia mística que preserva e purifica a personalidade, que só se aniquila diante do criador, representa um triunfo da forma íntima sobre o caos do mundo.
O clímax do desejo é representado em nossos dois poemas pelos dois verbos reflexivos, "mich verhauchen" e "dejéme": é característico que o primeiro se refira ao processo meramente físico de evaporação e, o segundo, a um ato deliberado da vontade de um ser moral.

Tradução de Samuel Titan Jr.



Três Poemas sobre o Êxtase
96 págs., R$ 25
de Leo Spitzer. Tradução de Samuel Titan Jr. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/3218-1444).


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