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+Religião
Sexo à flor da batina
Estudo de Kenneth Serbin desvenda a conduta de padres
e seminaristas no Brasil
do regime militar
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A quem interessa a vida sexual dos padres no Brasil? O
historiador americano Kenneth Serbin interessou-se a tal ponto
pelo tema que escreveu um livro de 448 páginas ["Padres,
Celibato e Conflito Social",
trad. Laura Teixeira Motta,
Cia. das Letras, R$ 65].
Como estudioso voltado à reconstituição histórica da individualidade de fatos carregados
de significação cultural, Serbin
esteve por diversas vezes no
Brasil, entre 1986 e 2002, para
compor sua longa narrativa
historiográfica sobre a conduta
de padres e seminaristas no
Brasil dos anos de chumbo.
Visitou dezenas de seminários e institutos de teologia, coletando de Norte a Sul documentos pertinentes: impressos, fonográficos, manuscritos,
iconográficos.
Entrevistou um grande número de bispos, padres, ex-padres, ex-seminaristas, freiras,
leigos de ambos os sexos.
Ao lado de seus testemunhos
de autor a respeito das pessoas
que conheceu e dos casos mais
significativos que presenciou
como observador, Serbin provocou duas centenas de depoimentos (retrospectivos, na
maior parte, que é como os faz
vir à tona o historiador), alguns
simplesmente esplêndidos, sobre a ignota vida sexual de padres e seminaristas nos conturbados anos de 1960 e 70.
Crise institucional
O cerne do relato é fornecido
pelo agravamento, no país, da
crise institucional pela qual naqueles anos passava a igreja católica no mundo.
Agravamento provocado
aqui pela "publicização" de
uma crise interna à instituição,
decorrente da crescente insolência com que padres e seminaristas rebeldes passavam a
recusar, não só na teoria como
na prática, a obrigatoriedade do
celibato sacerdotal.
Sexo à flor da pele, ousadias
na ponta da língua, essa foi uma
das crises mais delicadas dentre as tantas por que passou o
catolicismo romano no decorrer da segunda metade do século 20. Talvez a mais difícil de investigar objetivamente "sin
perder la ternura", como Serbin consegue fazer.
Documenta com grande veracidade e discrição não menor
as descobertas que pôde fazer
nesse terreno pouco iluminado
da vida clerical, que ele chamou
de "carências do coração".
"Needs of the Heart" [Necessidades do Coração] é o título
original do livro. Locução como
essa, tão condolente, Serbin foi
pescá-la em obra do historiador
da psicanálise Peter Gay, que
por sua vez a apanhara do grande historiador Jacques le Goff,
este, portanto, o verdadeiro autor do belo título que Serbin
deu a seu livro.
Só que a tradução brasileira,
por inexplicável capricho, o
descartou. Pena. O delicioso título em inglês, que remete a corações humanos aos quais faz
falta o necessário, virou em
português esta coisa gélida e
mal acabada -"Padres, Celibato e Conflito Social"- que está
mais para subtítulo de tese que
para título de livro.
Estudo inesperadamente sedutor, cujo conteúdo cresce em
interesse à medida que o leitor
se dá conta de que, nos relatos a
um só tempo indiscretos e elegantes de ações e atitudes aparentemente imorais dos clérigos no Brasil dos anos 60 e 70, o
que Serbin registrou na verdade foi um momento histórico
raro de aporte de tensão moral
modernizadora à velha cultura
católica "à brasileira".
Ao misturar em pequenas
doses precaução e recato com
admiração sincera e simpatia
-não só pelos personagens
mais ativos dessa história de
mudança religiosa no país, mas
também por suas causas, progressistas em diferentes planos-, o livro consegue devolver merecido destaque não à
causa macrossocial da justiça
social, mas a esta outra, tão vital e libertadora quanto: a causa
microssocial da subjetividade
sexualizada.
Pode desapontar alguns leitores, entre eles eu, o fato de
que, mesmo tentando como
historiador abrir ao máximo as
cortinas desse passado eclesiástico recente, ao se colocar
como um católico progressista
que continua fiel à sua igreja do
coração, Serbin não consiga senão entreabri-las.
Mas só isso já representa
muito, e o resultado, desconcertante em parte, é dos mais
interessantes.
ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI é professor de sociologia na USP e autor de "O Desencantamento
do Mundo" (ed. 34), entre outros livros.
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