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ponto de fuga
O bom presente
"Piero della Francesca", de Roberto Longhi, é uma obra de referência no campo da história da arte, clássica, definitiva, complexa; algo de muito raro entre as publicações brasileiras
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
N
o interior de um círculo
de colinas natais, coberto de culturas antigas e quase transformadas em
vestígios espontâneos de uma
atividade animal, num mês
sem guerras nem facções, de
modo que as margens do rio
que atravessa a região não
guardam manchas de sangue,
destroços de lanças ou placas
de lorigas, mas estão puras e
secas, apenas com as marcas
castanhas de algumas plantinhas efêmeras, cintila a caiação
de uma cidade distante."
A frase é longa, sinuosa. Nela
sucedem-se, justos, os substantivos, os adjetivos, os verbos
em atmosfera de calma. Sobressai "lorigas", palavra rara,
com saborosa sonoridade: o dicionário ensina que ela designa
certa couraça medieval. O estilo é de Roberto Longhi [1890-1970], autor que Carlo Ginzburg apresenta sem rodeios como "um dos maiores historiadores da arte do século 20".
Longhi renegou, mais tarde,
seu primeiro modo de escrever.
Na maturidade, nos tempos em
que o gosto pela simplicidade
discreta e austera predominava, considerou o fraseado desse
texto, que data de 1927, como
"empolado demais".
Hoje, porém, os estudos do
Longhi mais jovem, com sua
elegância preciosa que o põe ao
lado de Proust ou de D'Annunzio, podem ser degustados com
tanto prazer quanto aqueles
escritos mais tardios, em que a
elegância era buscada na poda
da forma.
Estilo e escrita não são secundários para o historiador da
arte. Formam o instrumento
primeiro da écfrase, a técnica
da descrição, crucial para o estudo das obras. A frase citada
no início descreve a paisagem
de "O Batismo de Cristo", quadro de Piero della Francesca
[cerca de 1415-92]. Ela guia o
olhar e introduz, imanentes,
modos de compreensão.
A fonte e o alvo
O livro "Piero della Francesca", de Roberto Longhi, acaba
de ser publicado no Brasil pela
Cosac Naify. Reúne quatro ensaios ou estudos sobre o pintor,
escritos entre 1927 e 1963. Obra
de referência no campo da história da arte, clássica, definitiva, complexa. Algo de muito raro entre as publicações brasileiras, cujos catálogos são paupérrimos nesse domínio.
O livro foi concebido dentro
de uma visão editorial elevada.
A tradução de Denise Bottmann é um exemplo de engenho, de sensibilidade e de conhecimento, que nenhum revisor veio estropiar, como ocorre
tantas vezes no Brasil, quando
editores tomam, para clássicos
e modernos, o modelo estilístico contido nos manuais de auto-ajuda ou nos livros de receitas culinárias.
Além
Os editores reuniram imagens de todas as obras citadas
por Longhi em reproduções
impecáveis: é um prazer seguir
os raciocínios, buscando neles
as referências detalhadas pelo
autor. A trajetória principal é
mostrar as origens pictóricas
de Piero, a repercussão artística que teve em seu tempo e em
seu futuro. Por essa razão, alude, com freqüência, a outros
criadores.
Para achá-los, há um excelente site na internet que criou
um catálogo de milhares de
obras produzidas por artistas
maiores e menores do Ocidente: www.wga.hu. Quem quiser
descobrir o "São Francisco" de
Sassetta ou o de Bartolomeo
della Gatta, por exemplo, encontrará o que precisa ali.
Frustração
Carlo Ginzburg, que apresenta o livro, é também o autor
de outra obra de grande importância sobre Piero della Francesca, intitulada "Indagações
sobre Piero" (ed. Paz e Terra).
Os textos de Longhi trazem
inúmeros elementos de discussão: mereceriam seminários,
debates, mereceriam análises
numerosas e longas.
jorgecoli@uol.com.br
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