São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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ponto de fuga

O bom presente

"Piero della Francesca", de Roberto Longhi, é uma obra de referência no campo da história da arte, clássica, definitiva, complexa; algo de muito raro entre as publicações brasileiras

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

N o interior de um círculo de colinas natais, coberto de culturas antigas e quase transformadas em vestígios espontâneos de uma atividade animal, num mês sem guerras nem facções, de modo que as margens do rio que atravessa a região não guardam manchas de sangue, destroços de lanças ou placas de lorigas, mas estão puras e secas, apenas com as marcas castanhas de algumas plantinhas efêmeras, cintila a caiação de uma cidade distante."
A frase é longa, sinuosa. Nela sucedem-se, justos, os substantivos, os adjetivos, os verbos em atmosfera de calma. Sobressai "lorigas", palavra rara, com saborosa sonoridade: o dicionário ensina que ela designa certa couraça medieval. O estilo é de Roberto Longhi [1890-1970], autor que Carlo Ginzburg apresenta sem rodeios como "um dos maiores historiadores da arte do século 20". Longhi renegou, mais tarde, seu primeiro modo de escrever.
Na maturidade, nos tempos em que o gosto pela simplicidade discreta e austera predominava, considerou o fraseado desse texto, que data de 1927, como "empolado demais".
Hoje, porém, os estudos do Longhi mais jovem, com sua elegância preciosa que o põe ao lado de Proust ou de D'Annunzio, podem ser degustados com tanto prazer quanto aqueles escritos mais tardios, em que a elegância era buscada na poda da forma.
Estilo e escrita não são secundários para o historiador da arte. Formam o instrumento primeiro da écfrase, a técnica da descrição, crucial para o estudo das obras. A frase citada no início descreve a paisagem de "O Batismo de Cristo", quadro de Piero della Francesca [cerca de 1415-92]. Ela guia o olhar e introduz, imanentes, modos de compreensão.

A fonte e o alvo
O livro "Piero della Francesca", de Roberto Longhi, acaba de ser publicado no Brasil pela Cosac Naify. Reúne quatro ensaios ou estudos sobre o pintor, escritos entre 1927 e 1963. Obra de referência no campo da história da arte, clássica, definitiva, complexa. Algo de muito raro entre as publicações brasileiras, cujos catálogos são paupérrimos nesse domínio. O livro foi concebido dentro de uma visão editorial elevada.
A tradução de Denise Bottmann é um exemplo de engenho, de sensibilidade e de conhecimento, que nenhum revisor veio estropiar, como ocorre tantas vezes no Brasil, quando editores tomam, para clássicos e modernos, o modelo estilístico contido nos manuais de auto-ajuda ou nos livros de receitas culinárias.

Além
Os editores reuniram imagens de todas as obras citadas por Longhi em reproduções impecáveis: é um prazer seguir os raciocínios, buscando neles as referências detalhadas pelo autor. A trajetória principal é mostrar as origens pictóricas de Piero, a repercussão artística que teve em seu tempo e em seu futuro. Por essa razão, alude, com freqüência, a outros criadores.
Para achá-los, há um excelente site na internet que criou um catálogo de milhares de obras produzidas por artistas maiores e menores do Ocidente: www.wga.hu. Quem quiser descobrir o "São Francisco" de Sassetta ou o de Bartolomeo della Gatta, por exemplo, encontrará o que precisa ali.

Frustração
Carlo Ginzburg, que apresenta o livro, é também o autor de outra obra de grande importância sobre Piero della Francesca, intitulada "Indagações sobre Piero" (ed. Paz e Terra). Os textos de Longhi trazem inúmeros elementos de discussão: mereceriam seminários, debates, mereceriam análises numerosas e longas.


jorgecoli@uol.com.br


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