São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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Escravos do amanhã

Média de um terço de mulheres entre os cativos africanos incentivou a reprodução natural e amenizou os efeitos da mortalidade

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

A andar por Minas Gerais em 1818, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) topou com um africano cujo destino já não admitia ilusões. Havia muito no Brasil, o escravo queria casar, pois, como explicou, "quando se fica assim, sempre só, o coração não vive satisfeito". Mas não com uma brasileira: "As crioulas desprezam os negros da costa; vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua". Suas palavras evocam a cisão entre os crioulos e os escravos nascidos na África. Aludem igualmente ao estímulo enviesado do tráfico para o fim da solidão de nosso africano -a dinâmica do comércio negreiro era mais intrincada do que se imagina.
Convenhamos: a média histórica de um terço de mulheres entre os adultos africanos era um incentivo razoável à reprodução natural dos cativos nas fazendas brasileiras. Por encorajar encontros de possíveis parceiros, bem entendido; nunca por ensejar a formação de criatórios de escravos, sandice jamais comprovada. Minoravam-se assim os efeitos da mortalidade e da tensão implícita ao predomínio masculino entre os infelizes.
A natureza deliberada dessa estratégia se reafirma ao sabermos que a preponderância de homens nos navios negreiros derivava, sobretudo, da retenção de mulheres adultas por uma África ávida por seu trabalho e por suas capacidades genésicas. É o que se infere dos perfis assumidos pela escravaria das grandes fazendas do Rio de Janeiro ante as pressões britânicas para o fim do tráfico.

Abolicionismo inglês
Duas décadas antes da chegada de dom João (1808), as mulheres representavam metade dos africanos das "plantations", onde praticamente não se viam crianças nascidas na África. Buscavam obter mais nascimentos pela via do comércio negreiro? Por que não?


Antes de 1808, as mulheres representavam metade dos africanos das "plantations"; tudo mudou com a corte no Brasil

Sabe-se que em Minas Gerais, por exemplo, os escravos conheciam índices positivos de crescimento vegetativo desde a segunda metade do século 18. Tudo mudou com a corte no Brasil. A euforia econômica dos primeiros anos deu lugar ao aumento das importações de africanos, dos quais apenas 25% eram mulheres. De 1815 em diante, entretanto, os fazendeiros fluminenses passaram a utilizar o próprio tráfico para enfrentar o vitorioso abolicionismo inglês que emergiu do Congresso de Viena.
De início, intensificaram a compra de mulheres adultas, que logo alcançaram um terço dos desembarcados. Era o máximo que a África podia oferecer. Apostaram depois no potencial produtivo e reprodutivo dos meninos e das meninas que adquiriam em números crescentes em Angola e Moçambique. Os resultados não tardaram: as crianças somavam 6% de seus africanos em fins da década de 1810, das quais 20% eram meninas.

Tráfico incerto
A Independência tornou incerto o destino do comércio negreiro. Embora a nova nação pudesse continuar a traficar, obter o imprescindível reconhecimento britânico fragilizava os partidários do tráfico. Os temores resultantes logo se traduziram na importação de mais crianças ainda -de 1820 a 1822, elas eram 12% do total de africanos das grandes fazendas, e as meninas, quase metade de todos os infantes nascidos na África.
A extinção do tráfico foi por fim acertada em 1826. Três anos após a ratificação do acordo por Londres -ocorrida em 13 de março do ano seguinte-, o comércio negreiro passaria à condição de pirataria. Resultado: entre 1830 e 1850, segundo o historiador David Eltis, os africanos menores de 15 anos alcançaram 60% ou mais dos contingentes transportados pelos navios negreiros.
Embora o contrabando de africanos tenha perdurado até 1850, a sociedade imperial não tinha dúvidas quanto ao seu fim. E se preparou para isso. Chega a ser pueril imaginar que daí pela frente, como num passe de mágica, o cativeiro tenha retirado seu imenso fôlego apenas da transferência de escravos do Nordeste para o Sudeste. Havia muito a escravidão se nutria da enorme plasticidade demográfica da "plantation", atestada na acumulação de trabalho e procriação potenciais encarnados nas crianças que comprava.
Entre 1850 e 1888, a contínua aquisição de mulheres férteis a pequenos e médios escravocratas do próprio Sudeste pode ter sido mais importante para a sua perenidade do que as compras de escravos nordestinos.
A verdade é que muitos se esmeram em desenhar uma "plantation" devoradora de adultos masculinos e nada mais. Não se toma em justa conta autores como Stuart Schwartz e John Monteiro, que mostram terem as primeiras plantações da Bahia e de São Paulo prescindido da África e de homens -nelas predominavam mulheres indígenas.

A lógica senhorial
Joaquim Nabuco (1849-1910) é culpado de muitas coisas: de ter sido bonito -Quincas, o belo, era como o chamavam-, de não haver levado a sério a paixão por Eufrásia Teixeira Leite (1870-1930), de ser dono de uma prosa por vezes bela e seca como a de João Cabral de Mello Neto. Foi igualmente um dos primeiros a disseminar essa perspectiva inacabada sobre a grande propriedade escravista.
A pena abolicionista de Nabuco elidiu a lógica da reprodução natural. Não sem razão: posturas municipais proibiam o enterro de cativos ainda vivos, pois seus gritos incomodavam os vizinhos. No entanto daí a imaginar que todo senhor de escravos possuísse tão somente dois neurônios vai uma distância enorme.
Da lógica senhorial fundada em saldos entre nascimentos e mortes falam os números que expus. De sua eficiência são testemunhas os milhares de africanos a viver no Brasil mais de meio século após o término do tráfico atlântico. Disse um deles a João do Rio, em 1904: "Por um negro cabinda é que se compreende que o africano foi escravo de branco. Cabinda é burro e sem-vergonha!".
Nada que surpreenda. Afinal, o italiano Primo Levi (1919-1987) demonstrou, tristemente, que nem os campos de extermínio nazistas conseguiam dissolver indivíduos em um todo solidário.


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


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