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+ sociedade
Tela legal
Gilles Lipovetsky e Jean Serroy rebatem a idéia de individualis-mo extremo ligada às novas mídias
ROBERT SOLÉ
S
erá que os irmãos Lumière sabiam o que
iriam provocar? A invenção do cinema,
nos anos 1890, não
apenas deu origem à sétima arte, mas transformou nossa maneira de ver o mundo e, aos
poucos, nossa maneira de viver. Pois as imagens animadas,
passando para o domínio da
eletrônica, causaram uma reviravolta em tudo.
Essa "verdadeira revolução
copernicana" é analisada pelo
filósofo Gilles Lipovetsky e por
um especialista em cinema,
Jean Serroy, num livro muito
rico que nos faz medir o caminho incrível percorrido em alguns decênios ["L'Écran Global", A Tela Global, Seuil, 366
págs., 22, R$ 57].
Eles nos oferecem ao mesmo
tempo uma apaixonante história do cinema e um mergulho
muito instrutivo na "telosfera".
Mas os novos modos de vida
que descrevem de maneira
concreta e pertinente não ultrapassam de longe o "espírito
do cinema"? Entre os filmes de
ontem, em tecnicolor, e a eletrônica onipresente de hoje
não passamos totalmente para
uma outra coisa?
O ponto de partida é, portanto, uma tela muda, que faz sonhar. Ela se tornará o suporte
da era de ouro de Hollywood e
suas estrelas, até os anos 1950.
Em seguida passamos para
uma terceira fase, marcada pela nouvelle vague na França, o
"free cinema" na Inglaterra, e,
nos EUA, inovações radicais
que acompanham uma explosão dos tabus.
E já ingressamos numa quarta era, com um "hipercinema"
marcado pela tecnologia digital
e a ambição crescente dos produtores: mais efeitos especiais,
mais ritmo, mais ambigüidade,
mais violência, mais sexo...
mais tudo. "O excesso já deixou
de ser realmente sentido como
excessivo", destacam.
Nesse meio-tempo, a televisão privatizou a tela. Com ela
se concretizou o mundo sem
fronteiras, a "aldeia global" de
McLuhan [1911-80]. Ao longo
dos anos, a torneira de imagens
não parou de crescer, e as exigências dos consumidores aumentaram conseqüentemente.
Reivindicam-se sempre mais e
mais emoções e sensações, sem
aceitar o tédio mais mínimo.
Mas a TV, hoje, não é mais
que uma tela entre outras:
computadores, assistentes pessoais, telefones, GPS... Utilitárias ou lúdicas, as telas nos
acompanham em todos os atos
da vida e mesmo antes do nascimento: a ecografia pré-natal.
Todos para todos
Vivemos, portanto, a era da
"tela global". Ela se converteu
num intermediário quase obrigatória de nossa relação com o
mundo e com os outros, observam Lipovetsky e Serroy.
É evidente que a lógica do espetáculo se leva adiante e até se
amplifica, mas ela não tem
mais o significado que lhe conferiu Guy Debord [1931-94]. A
comunicação em sentido único, o "um em direção a todos",
cede cada vez mais espaço à interatividade, a uma comunicação individualizada, ao "todos
em direção a todos".
É uma nova relação com a
realidade: o prazer de descobrir
de outra maneira o que acabamos de ver ou fazer. Mesmo as
violências cometidas por outros são filmadas: é preciso, de
certo modo, que o ato seja autenticado pela câmera.
Para que servem as telas planas penduradas em paredes,
como se fossem quadros, em locais de passagem pública? As
pessoas nem sequer olham para elas.
Ao fundo sonoro somou-se
um fundo visual. "A tela está ali,
como garantia da dimensão midiatizada da realidade."
Eles ressaltam todos os perigos da "telocracia": quando, por
exemplo, jovens internautas
passam noites inteiras diante
de um videogame, fazendo um
sósia deles viver num universo
virtual.
Sim, a tela pode ser uma droga pesada, mas nossos dois autores se negam a soar o alarme.
Refutam a tese do "confinamento interativo generalizado", proposta por Paul Virilio.
"Se é verdade que uma parte
importante da vida é passada
diante de telas digitalizadas,
também o é que uma outra parte, não menos importante, investe a dimensão contrária,
carregada de expectativa e de
prazeres sensoriais."
Sem catastrofismo
Depender cada vez mais de
circuitos eletrônicos e informáticos não impede as pessoas
de buscar o bem-estar, de amar
a natureza, de querer compartilhar receitas de cozinha, como
ilustram cerca de 500 blogs culinários franceses.
Numa obra anterior, "A Felicidade Paradoxal" [Cia. das Letras], Gilles Lipovetsky já tinha
analisado essas contradições,
erguendo-se contra o catastrofismo. A televisão não suscita
grandes movimentos de solidariedade com vítimas de catástrofes, doentes ou miseráveis?
O "homo telensis" não é necessariamente prisioneiro das
telas, nos garante Lipovetsky.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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