São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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+ sociedade

Tela legal

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy rebatem a idéia de individualis-mo extremo ligada às novas mídias

ROBERT SOLÉ

S erá que os irmãos Lumière sabiam o que iriam provocar? A invenção do cinema, nos anos 1890, não apenas deu origem à sétima arte, mas transformou nossa maneira de ver o mundo e, aos poucos, nossa maneira de viver. Pois as imagens animadas, passando para o domínio da eletrônica, causaram uma reviravolta em tudo. Essa "verdadeira revolução copernicana" é analisada pelo filósofo Gilles Lipovetsky e por um especialista em cinema, Jean Serroy, num livro muito rico que nos faz medir o caminho incrível percorrido em alguns decênios ["L'Écran Global", A Tela Global, Seuil, 366 págs., 22, R$ 57].
Eles nos oferecem ao mesmo tempo uma apaixonante história do cinema e um mergulho muito instrutivo na "telosfera". Mas os novos modos de vida que descrevem de maneira concreta e pertinente não ultrapassam de longe o "espírito do cinema"? Entre os filmes de ontem, em tecnicolor, e a eletrônica onipresente de hoje não passamos totalmente para uma outra coisa?
O ponto de partida é, portanto, uma tela muda, que faz sonhar. Ela se tornará o suporte da era de ouro de Hollywood e suas estrelas, até os anos 1950. Em seguida passamos para uma terceira fase, marcada pela nouvelle vague na França, o "free cinema" na Inglaterra, e, nos EUA, inovações radicais que acompanham uma explosão dos tabus. E já ingressamos numa quarta era, com um "hipercinema" marcado pela tecnologia digital e a ambição crescente dos produtores: mais efeitos especiais, mais ritmo, mais ambigüidade, mais violência, mais sexo... mais tudo. "O excesso já deixou de ser realmente sentido como excessivo", destacam.
Nesse meio-tempo, a televisão privatizou a tela. Com ela se concretizou o mundo sem fronteiras, a "aldeia global" de McLuhan [1911-80]. Ao longo dos anos, a torneira de imagens não parou de crescer, e as exigências dos consumidores aumentaram conseqüentemente. Reivindicam-se sempre mais e mais emoções e sensações, sem aceitar o tédio mais mínimo.
Mas a TV, hoje, não é mais que uma tela entre outras: computadores, assistentes pessoais, telefones, GPS... Utilitárias ou lúdicas, as telas nos acompanham em todos os atos da vida e mesmo antes do nascimento: a ecografia pré-natal.

Todos para todos
Vivemos, portanto, a era da "tela global". Ela se converteu num intermediário quase obrigatória de nossa relação com o mundo e com os outros, observam Lipovetsky e Serroy. É evidente que a lógica do espetáculo se leva adiante e até se amplifica, mas ela não tem mais o significado que lhe conferiu Guy Debord [1931-94]. A comunicação em sentido único, o "um em direção a todos", cede cada vez mais espaço à interatividade, a uma comunicação individualizada, ao "todos em direção a todos".
É uma nova relação com a realidade: o prazer de descobrir de outra maneira o que acabamos de ver ou fazer. Mesmo as violências cometidas por outros são filmadas: é preciso, de certo modo, que o ato seja autenticado pela câmera. Para que servem as telas planas penduradas em paredes, como se fossem quadros, em locais de passagem pública? As pessoas nem sequer olham para elas.
Ao fundo sonoro somou-se um fundo visual. "A tela está ali, como garantia da dimensão midiatizada da realidade." Eles ressaltam todos os perigos da "telocracia": quando, por exemplo, jovens internautas passam noites inteiras diante de um videogame, fazendo um sósia deles viver num universo virtual.
Sim, a tela pode ser uma droga pesada, mas nossos dois autores se negam a soar o alarme. Refutam a tese do "confinamento interativo generalizado", proposta por Paul Virilio. "Se é verdade que uma parte importante da vida é passada diante de telas digitalizadas, também o é que uma outra parte, não menos importante, investe a dimensão contrária, carregada de expectativa e de prazeres sensoriais."

Sem catastrofismo
Depender cada vez mais de circuitos eletrônicos e informáticos não impede as pessoas de buscar o bem-estar, de amar a natureza, de querer compartilhar receitas de cozinha, como ilustram cerca de 500 blogs culinários franceses. Numa obra anterior, "A Felicidade Paradoxal" [Cia. das Letras], Gilles Lipovetsky já tinha analisado essas contradições, erguendo-se contra o catastrofismo. A televisão não suscita grandes movimentos de solidariedade com vítimas de catástrofes, doentes ou miseráveis? O "homo telensis" não é necessariamente prisioneiro das telas, nos garante Lipovetsky.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain.


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