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A cozinha dos sentidos
Sexo no fio da navalha
Libido caminha hoje sobre a linha divisória entre a domesticação neurótica e a transgressão compulsiva
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
M
ichel Foucault,
em 1981, afirmou que Peter
Brown -historiador da mentalidade cristã na Antigüidade
latina e na alta Idade Média-
chamou sua atenção para o fato
de a sexualidade ter se tornado
o sismógrafo da subjetividade
ocidental. Foucault, ao citar
Brown, queria mostrar como o
sexo veio a se transformar no
substrato de nossa vida moral.
Segundo ele, um enorme dispositivo de interpretação e regulação de práticas e aspirações sexuais criou, no Ocidente, o mito do "sexo-rei". A sexualidade, de Cícero a santo
Agostinho, passando pelo medievo filosófico-teológico, pelo
cientificismo médico-psiquiátrico e pela própria psicanálise,
tornou-se o árbitro da danação
ou salvação das almas.
Em suma, uma verdadeira
mitologia foi construída, pois a
palavra sexo se tornou a fórmula encantatória que tornava
imediatamente inteligíveis e
coerentes os desvios e incongruências da fantasiada normalidade moral do sujeito moderno. Em 1998, Slavoj Zizek
analisou, de forma original e
provocante, uma peça de publicidade. Ela parodiava o conto
de fadas no qual uma jovem encontra um sapo, beija-o e o vê
metamorfoseado em príncipe.
Na versão publicitária, o conto não pára aí.
O sapo que virou príncipe seduz a jovem, beija-a e alcança
seu propósito, qual seja, convertê-la em uma lata de cerveja. A intenção de Zizek é explícita: o sexo, sem a montagem
fantasiosa que freia sua desmedida, perde a aura do sexo-rei
para revelar-se como algo bizarro, desnorteante, repulsivo,
ameaçador etc.
Duas lições podem ser retiradas das histórias foucaultiana e zizekiana. A primeira é a
canônica. Freud, diz-se, estava
certo; Marcuse estava errado.
O sexo não é um efeito adventício do modo como a sociedade
oculta e acomoda suas reais inconsistências sociais, econômicas, científicas ou religiosas.
Ou seja, não é o mito que cria
o sexo adequado à sua função
de suturar as falhas da razão
com um suplemento de credulidade afetiva que dispensa argumentos.
É o sexo que nos leva a criar
mitos defensivos contra os excessos inerentes à libido.
No mito de Édipo, por exemplo, a tragédia do incesto e do
parricídio é uma forma culturalmente controlada de dar vazão e impor limites à violência
do desejo sexual que, sem essa
barreira, poderia vir a tornar-se assassina.
O sexo sem mito, portanto,
não assume o semblante suave
e mágico do erotismo anti-repressivo sonhado por Marcuse;
assume a figura de sapos sedentos e de donzelas espumantes, prontas para serem descartadas depois de consumidas.
Dilemas morais
Conclusão: ou temos um sexo domesticado pelo mito, mas
neuroticamente inibido ou
compulsivamente transgressor, ou nos liberamos do equipamento civilizatório, mas ao
preço de excluirmos a moralidade das relações humanas.
A segunda lição vai contra essa conclusão e diz que é sempre
bom desconfiar dos dilemas
morais que se apresentam na
forma do "ou... ou", como lembra a psicanalista Maria Rita
Kehl. Onde esse impasse está, a
neurose ou as ideologias estiveram ou estão por vir.
Perguntemos, então, na chave pragmática: será mesmo
verdade que estamos condenados à repressão sexual ou ao
mundo de sapos e donzelas
enlatadas em cervejarias?
A moral é, de fato, bipolar, ou
seja, oscila entre o recalque
neurótico e a perversão cínica,
indiferente aos sentimentos do
outro?
Penso que não. Em meu entender, faz sentido dizer que
não há sexualidade sem engrenagem mitológica. A narrativa
mítica é o que ordena, de modo
afetivamente plausível, o que
sobra da explicação racional do
mundo.
Mas renovar o repertório mitológico não significa, necessariamente, trocar a moralidade
neurotizante pela desumanização do gozo sexual entre coisas,
e não pessoas.
Pode significar, simplesmente, eleger outros objetos e objetivos das morais sexuais.
É certamente asqueroso, cômico ou ridículo pensar em sexo como um vínculo de gozo
entre sapos e latas de cerveja.
Mas também foi humilhante e
vergonhoso conviver com os
preconceitos sexuais que mantivemos até hoje.
Bem e mal
Mitologizar novas descrições
da experiência sexual pode ser
menos danoso à moralidade do
que mistificar velhos cacoetes
sobre a malignidade natural do
sexo.
Se, como acredito, pudermos
continuar a distinguir entre o
bem e o mal, estaremos habilitados a moralizar, re-moralizar
ou des-moralizar novas e antigas práticas sexuais, sem lesar o
respeito pelo valor da vida, da
justiça, da solidariedade e da
auto-realização emocional.
Uma vez asseguradas essas
prerrogativas, a ética sexual virá por acréscimo.
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da
Psiquiatria no Brasil" (Garamond), entre outros.
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