São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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A cozinha dos sentidos

Sexo no fio da navalha

Libido caminha hoje sobre a linha divisória entre a domesticação neurótica e a transgressão compulsiva

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

M ichel Foucault, em 1981, afirmou que Peter Brown -historiador da mentalidade cristã na Antigüidade latina e na alta Idade Média- chamou sua atenção para o fato de a sexualidade ter se tornado o sismógrafo da subjetividade ocidental. Foucault, ao citar Brown, queria mostrar como o sexo veio a se transformar no substrato de nossa vida moral.
Segundo ele, um enorme dispositivo de interpretação e regulação de práticas e aspirações sexuais criou, no Ocidente, o mito do "sexo-rei". A sexualidade, de Cícero a santo Agostinho, passando pelo medievo filosófico-teológico, pelo cientificismo médico-psiquiátrico e pela própria psicanálise, tornou-se o árbitro da danação ou salvação das almas.
Em suma, uma verdadeira mitologia foi construída, pois a palavra sexo se tornou a fórmula encantatória que tornava imediatamente inteligíveis e coerentes os desvios e incongruências da fantasiada normalidade moral do sujeito moderno. Em 1998, Slavoj Zizek analisou, de forma original e provocante, uma peça de publicidade. Ela parodiava o conto de fadas no qual uma jovem encontra um sapo, beija-o e o vê metamorfoseado em príncipe.
Na versão publicitária, o conto não pára aí. O sapo que virou príncipe seduz a jovem, beija-a e alcança seu propósito, qual seja, convertê-la em uma lata de cerveja. A intenção de Zizek é explícita: o sexo, sem a montagem fantasiosa que freia sua desmedida, perde a aura do sexo-rei para revelar-se como algo bizarro, desnorteante, repulsivo, ameaçador etc.
Duas lições podem ser retiradas das histórias foucaultiana e zizekiana. A primeira é a canônica. Freud, diz-se, estava certo; Marcuse estava errado. O sexo não é um efeito adventício do modo como a sociedade oculta e acomoda suas reais inconsistências sociais, econômicas, científicas ou religiosas. Ou seja, não é o mito que cria o sexo adequado à sua função de suturar as falhas da razão com um suplemento de credulidade afetiva que dispensa argumentos. É o sexo que nos leva a criar mitos defensivos contra os excessos inerentes à libido.
No mito de Édipo, por exemplo, a tragédia do incesto e do parricídio é uma forma culturalmente controlada de dar vazão e impor limites à violência do desejo sexual que, sem essa barreira, poderia vir a tornar-se assassina. O sexo sem mito, portanto, não assume o semblante suave e mágico do erotismo anti-repressivo sonhado por Marcuse; assume a figura de sapos sedentos e de donzelas espumantes, prontas para serem descartadas depois de consumidas.

Dilemas morais
Conclusão: ou temos um sexo domesticado pelo mito, mas neuroticamente inibido ou compulsivamente transgressor, ou nos liberamos do equipamento civilizatório, mas ao preço de excluirmos a moralidade das relações humanas. A segunda lição vai contra essa conclusão e diz que é sempre bom desconfiar dos dilemas morais que se apresentam na forma do "ou... ou", como lembra a psicanalista Maria Rita Kehl. Onde esse impasse está, a neurose ou as ideologias estiveram ou estão por vir.
Perguntemos, então, na chave pragmática: será mesmo verdade que estamos condenados à repressão sexual ou ao mundo de sapos e donzelas enlatadas em cervejarias?
A moral é, de fato, bipolar, ou seja, oscila entre o recalque neurótico e a perversão cínica, indiferente aos sentimentos do outro? Penso que não. Em meu entender, faz sentido dizer que não há sexualidade sem engrenagem mitológica. A narrativa mítica é o que ordena, de modo afetivamente plausível, o que sobra da explicação racional do mundo.
Mas renovar o repertório mitológico não significa, necessariamente, trocar a moralidade neurotizante pela desumanização do gozo sexual entre coisas, e não pessoas. Pode significar, simplesmente, eleger outros objetos e objetivos das morais sexuais. É certamente asqueroso, cômico ou ridículo pensar em sexo como um vínculo de gozo entre sapos e latas de cerveja. Mas também foi humilhante e vergonhoso conviver com os preconceitos sexuais que mantivemos até hoje.

Bem e mal
Mitologizar novas descrições da experiência sexual pode ser menos danoso à moralidade do que mistificar velhos cacoetes sobre a malignidade natural do sexo.
Se, como acredito, pudermos continuar a distinguir entre o bem e o mal, estaremos habilitados a moralizar, re-moralizar ou des-moralizar novas e antigas práticas sexuais, sem lesar o respeito pelo valor da vida, da justiça, da solidariedade e da auto-realização emocional. Uma vez asseguradas essas prerrogativas, a ética sexual virá por acréscimo.


JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da Psiquiatria no Brasil" (Garamond), entre outros.


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