São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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A cozinha dos sentidos

Qual é a música

Definição de música como antídoto à cultura burguesa está em xeque, pois a rebeldia entrou no "mainstream"

LUCIA SANTAELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

S er intelectual e fazer a crítica da ideologia burguesa eram condições inseparáveis quando Roland Barthes escreveu para a revista "Les Lettres Nouvelles", de 1954 a 1956, sob o nome de "Mitologias", sua série mensal de breves ensaios, logo depois publicados em livro.
O conceito de ideologia nunca foi ponto pacífico, muito menos naquela época. Havia um sentido descritivo, sem objetivo crítico, segundo o qual a ideologia é um sistema de normas, valores, crenças ou uma concepção de mundo que dirige as atitudes sociopolíticas e as ações de um grupo, uma classe social ou a sociedade como um todo.

Falsa consciência
No sentido crítico, definido por Marx e Engels, ideologias são representações da falsa consciência de uma classe social dominante que as utiliza de forma imprópria para a legitimação do próprio poder.
As representações são falsas porque disseminam o interesse de uma classe particular enquanto fingem estar a serviço da sociedade como um todo.
Imbuído da proposta saussurriana de desenvolvimento de uma semiologia como ciência da vida dos signos no seio da vida social, Barthes ficou fascinado com a esperança de que decifrar os signos do mundo, tal como essa ciência prometia, forneceria as munições necessárias para a luta contra a pretensa inocência das coisas.


O que Barthes estaria dizendo hoje diante do paradoxo da overdose e do vazio do sentido, da convivência do boom da memória e da amnésia?


Estudar as operações misteriosas pelas quais as mensagens se impregnam de um sentido segundo, difuso, conotado deveria ser a arma mais certeira para o desnudamento das ideologias, para a fina denúncia dos mitos burgueses.
Eis aí a essência do trajeto personalíssimo que Barthes encontrou para exercer a sua tarefa crítica. Naqueles tempos, os meios de comunicação de massa acabavam de explodir, substituindo subrepticiamente o imaginário mítico da tradição pelos mitos dessacralizados da cultura pop, que Barthes entendeu como máscaras sob as quais se ocultam mensagens que buscam permanecer incógnitas para se livrarem da crítica.
Dos saponáceos e detergentes, da exposição de plásticos e do rosto de Garbo ao bife com batatas fritas, é multifocal o elenco de mitos do cotidiano que entraram na "cozinha do sentido" desse grande mestre da leitura semiológica, leitura infinitamente mais sutil do que pode parecer aos olhares não treinados. Curiosamente, as passagens sobre a música, mais que escassas, são raras nas "Mitologias". Qual poderia ser a razão disso? Tenho uma hipótese que me parece plausível.
Em todas as fases de sua trajetória, Barthes permaneceu fiel à sua convicção sobre o poder subversivo da poesia. A subversão da escrita é a negação da literatura como sistema mítico. Por isso, a poesia ocupa a posição inversa do mito. Enquanto o mito visa a ultra-significação, a ampliação de um sistema primeiro, a poesia, pelo contrário, tenta recuperar uma infra-significação, um estado pré-semiológico da linguagem: o seu ideal seria atingir não o sentido das palavras, mas o sentido das próprias coisas. Para Barthes, tanto quanto para muitos outros autores, poesia e música são irmãs siamesas. Ambas são organismos que contêm em si mesmos, escrupulosamente, as suas próprias mensagens.

Verdade sensual
Ao contrário da arte burguesa, que é sempre indiscreta, Barthes dizia, a matéria musical é imediatamente definitiva. Há nela uma verdade sensual que lhe é suficiente e que não suporta o peso incômodo das intenções. Trata-se aí justamente daquilo que a arte burguesa recusa, pois esta teima em considerar ingênuos os seus consumidores, para os quais é preciso mastigar a obra e indicar exageradamente a sua intenção, receando que ela não seja suficientemente compreendida, quando, em verdade, arte é ambigüidade.
Diz e contradiz, rediz e desdiz, insistente na recusa dos sentidos já prontos, recusa que se constitui na essência mesma da música, para a qual não existe nenhum outro compromisso senão o de seu próprio engendramento. Dessa liberdade advém a aspiração de todas as artes à condição da música. Por não representar nada definitivamente, a música é um campo de sugestões em aberto, uma abertura que pulveriza a consistência necessária à preservação dos mitos e das ideologias.
Quase duas décadas depois da publicação de "Mitologias", ao passar em revista a sua aventura semiológica, Roland Barthes confessava que o escopo da semiologia não poderia mais ser, como em meados dos anos 1950, a tranqüilidade da consciência pequeno-burguesa, mas sim o sistema simbólico e semântico de nossa civilização, na sua totalidade, pois, para ele, era muito pouco querer mudar conteúdos, sendo necessário sobretudo visar a fissurar o próprio sistema do sentido: sair do cercado ocidental.
Desde essa afirmação, mais 20 anos se passaram. O que poderia estar Barthes dizendo hoje diante do paradoxo da overdose e do vazio do sentido, da concomitância do boom da memória e da amnésia, do novo "sensorium" da dispersão na perversão generalizada do turbocapitalismo, em que a própria transgressão é solicitada?


LUCIA SANTAELLA é professora da Pontifícia Universidade Católica (SP), autora de "Linguagens Líqüidas na Era da Mobilidade" (Paulus), entre outros livros.


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