São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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A cozinha dos sentidos

Paraísos artificiais do esporte

Eleição de Kaká como melhor jogador do mundo coroa a modernidade capitalista no esporte mais popular do mundo

FLÁVIO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

C hapéu, caneta, bicicleta, chaleira, ponte, drible da vaca. A linguagem gestual do futebol é constituída por signos que, apesar de eventuais coincidências com a linguagem verbal, associam conhecidas imagens a outros conceitos. Trata-se de uma linguagem do corpo individual e coletivo, um sistema de comunicação passível de ser entendido nos mais remotos rincões e até mesmo pelo mais deliberadamente refratário crítico.
Cinqüenta anos após a publicação de "Mitologias", é desafiador buscar sua inspiração para tentar decifrar o futebol, que se tornou, nesse mesmo período, a principal modalidade esportiva mundial. Daí que o tenhamos escolhido para o exercício de generalização do particular, tão característico da semiologia de Barthes.

Forma a decifrar
A questão, nesse sentido, é pensar o futebol como objeto elevado à categoria de mito. Ou seja, um discurso, uma mensagem expressa por signos cuja significação só se esclarece no contexto social, como linguagem segunda, que faz do signo lingüístico forma a ser decifrada por sua função social.
Assim, a compreensão do conjunto semiológico deve transpor a evidência de um sistema de comunicação e ser investigado como engrenagem de valores ligados à dominação burguesa, como ideologia que considera naturais determinados preceitos circunstanciados historicamente.
O futebol, como outros tantos objetos da cultura de massa, deve ser decifrado sob o risco de devorar pelas entranhas o consumidor das verdades burguesas de nosso tempo. Para Barthes, cabia revoltar-se contra o sarcasmo como condição da verdade, contradição que apontava como característica de 1957. Para nós, talvez uma tarefa ainda mais árdua, porque muitas vezes até o sarcasmo nos falta.
Na semana passada, significativamente, Kaká (Milan) foi apontado o melhor jogador de futebol de 2007. Apolíneo, é exemplo de objetividade, disciplina, eficiência e competitividade. Não lhe faltam habilidades técnicas nem criatividade. Porém estas se encontram submetidas a um sentido que tem se afirmado como critério de avaliação do futebol em todos os níveis: produção.
Kaká é considerado um jogador produtivo, que executa bem uma série de funções diante das necessidades coletivas de sua equipe (marcação, arranque, passe, arremate a gol). O drible -a fantasia, o domínio da bola, do tempo e do espaço de modo a iludir o adversário- é utilizado com parcimônia, com moderação calvinista (podemos dizer evangélica) e tem funções utilitárias -seja a de ganhar terreno em direção ao objetivo, à meta planejada, seja a de impor-se em campo, como um jovem, mas seguro administrador diante da concorrência adversária.
Ele consegue transmitir garantias aos seus torcedores/ investidores. Enquanto Kaká é um símbolo dessa modernidade que se difunde ao ritmo frenético da globalização, há jogadores que irritam e impacientam suas respectivas torcidas. Dodô (Botafogo), o artilheiro dos golaços, capaz de executar jogadas exuberantes, é tido como lento, apático, ineficiente, perdulário.
Alex (Fenerbahce, Turquia), apesar dos títulos conquistados, jogadas e gols extraordinários, teve que se acostumar a ouvir semelhantes insultos, além de ser preterido sistematicamente em convocações para a seleção brasileira.

Drible da foca
Recentemente, Kerlon (Cruzeiro) provocou celeumas com seu "drible da foca" que podem ser reduzidas a uma grande questão: ele pode equilibrar a bola com toques sucessivos de cabeça desde que esteja em direção ao gol porque isso é produtivo; do contrário, é um insulto de corpo, que desencadeia reações violentas dos adversários, reprováveis, mas compreendidas... No futebol atual, bola parada próxima à área adversária é sempre um lance considerado perigoso.
Há quase uma suspensão temporária da correria da partida, um instante de reflexão, momento de astúcia individual ou coletiva que envolve ações precisas e calculadas. Há sempre jogadas ensaiadas pelos atacantes, ou seja, planos táticos previamente estabelecidos, treinados e colocados em prática muitas vezes com elevado grau de eficiência.

Rogério e Higuita
Mesmo com certa dose de inversão, quando Rogério Ceni (São Paulo) propõe-se a cobrar faltas, pênaltis e até mesmo "sair jogando" pelo seu campo de defesa, há um esquema defensivo que oferece retaguarda à ousadia calculada do goleiro/ goleador, que ostenta altíssimo índice de aproveitamento.
Bem diversa era a postura do goleiro colombiano René Higuita. Dionisíaco, além de cobrar pênaltis e faltas, arriscava dribles próximo à sua meta e até mesmo fazia defesas malabaristas, como o "golpe do escorpião", quando rebatia a bola com os calcanhares. Uma temeridade duramente criticada pelos defensores de um futebol sério e moderno.
Em torno de uma propalada noção de modernidade, exalta-se hoje a concentração de capital e de parcerias que permitam montar esquadrões e estabelecer a "reposição das peças" (termos escravistas ainda se mantêm em uso no Brasil). Mesmo que isso redunde em notórias ações de lavagem de dinheiro, sonegação e operações financeiras ilegais. Nessa lógica, a justiça da vitória é o coroamento do investimento e do planejamento estratégico. Das categorias de base que (de)formam os garotos que sonhavam em ser goleadores habilidosos e vão se transformar em brucutus de contenção (adestramento que visa a formar empregadinhos do sistema, como se tenta instituir nas universidades).
Da acintosa propaganda nas camisas que, no limite, pode levar ao embate entre uma marca de margarina contra outra de sabonete (situação que já ocorre em outros esportes). Da contratação de um técnico que se apresente visualmente como "manager", ainda que saudado como "professor" pelos jogadores e ovacionado como burro pela torcida.

Casas de espetáculo
Da transformação do estádio em arena multiuso, casa de espetáculos que deve oferecer conforto aos seus clientes ou shoppings centers, esses paraísos artificiais capazes de realizar a felicidade capitalista. As mensagens proferidas por meio do futebol, nesse sentido, reforçam ideologicamente o primado do mercado em detrimento da seara política. A modernidade, nos campos futebolísticos, como em outros mais, é entendida exclusivamente em sua expressão econômica, a despeito das inquietações das torcidas com relação aos desmandos, à concentração de poderes e aos desvios de recursos. Talvez, exatamente no terreno da política, possam se construir outras alternativas, num processo de democratização dos clubes e das entidades ligadas ao futebol. Quem sabe um outro futebol seja possível?


FLÁVIO DE CAMPOS é professor de história na USP.


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