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A cozinha dos sentidos
Paraísos artificiais do esporte
Eleição de Kaká como melhor jogador do mundo coroa
a modernidade capitalista
no esporte
mais popular do mundo
FLÁVIO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
C
hapéu, caneta, bicicleta, chaleira, ponte,
drible da vaca. A linguagem gestual do
futebol é constituída
por signos que, apesar de eventuais coincidências com a linguagem verbal, associam conhecidas imagens a outros conceitos. Trata-se de uma linguagem do corpo individual e coletivo, um sistema de comunicação passível de ser entendido
nos mais remotos rincões e até
mesmo pelo mais deliberadamente refratário crítico.
Cinqüenta anos após a publicação de "Mitologias", é desafiador buscar sua inspiração
para tentar decifrar o futebol,
que se tornou, nesse mesmo
período, a principal modalidade esportiva mundial. Daí que o
tenhamos escolhido para o
exercício de generalização do
particular, tão característico da
semiologia de Barthes.
Forma a decifrar
A questão, nesse sentido, é
pensar o futebol como objeto
elevado à categoria de mito.
Ou seja, um discurso, uma
mensagem expressa por signos
cuja significação só se esclarece
no contexto social, como linguagem segunda, que faz do signo lingüístico forma a ser decifrada por sua função social.
Assim, a compreensão do
conjunto semiológico deve
transpor a evidência de um sistema de comunicação e ser investigado como engrenagem de
valores ligados à dominação
burguesa, como ideologia que
considera naturais determinados preceitos circunstanciados
historicamente.
O futebol, como outros tantos objetos da cultura de massa,
deve ser decifrado sob o risco
de devorar pelas entranhas o
consumidor das verdades burguesas de nosso tempo.
Para Barthes, cabia revoltar-se contra o sarcasmo como
condição da verdade, contradição que apontava como característica de 1957. Para nós, talvez uma tarefa ainda mais árdua, porque muitas vezes até o
sarcasmo nos falta.
Na semana passada, significativamente, Kaká (Milan) foi
apontado o melhor jogador de
futebol de 2007. Apolíneo, é
exemplo de objetividade, disciplina, eficiência e competitividade. Não lhe faltam habilidades técnicas nem criatividade.
Porém estas se encontram
submetidas a um sentido que
tem se afirmado como critério
de avaliação do futebol em todos os níveis: produção.
Kaká é considerado um jogador produtivo, que executa
bem uma série de funções diante das necessidades coletivas de
sua equipe (marcação, arranque, passe, arremate a gol).
O drible -a fantasia, o domínio da bola, do tempo e do espaço de modo a iludir o adversário- é utilizado com parcimônia, com moderação calvinista
(podemos dizer evangélica) e
tem funções utilitárias -seja a
de ganhar terreno em direção
ao objetivo, à meta planejada,
seja a de impor-se em campo,
como um jovem, mas seguro
administrador diante da concorrência adversária.
Ele consegue transmitir garantias aos seus torcedores/ investidores.
Enquanto Kaká é um símbolo dessa modernidade que se
difunde ao ritmo frenético da
globalização, há jogadores que
irritam e impacientam suas
respectivas torcidas. Dodô (Botafogo), o artilheiro dos golaços, capaz de executar jogadas
exuberantes, é tido como lento,
apático, ineficiente, perdulário.
Alex (Fenerbahce, Turquia),
apesar dos títulos conquistados, jogadas e gols extraordinários, teve que se acostumar a
ouvir semelhantes insultos,
além de ser preterido sistematicamente em convocações para a seleção brasileira.
Drible da foca
Recentemente, Kerlon (Cruzeiro) provocou celeumas com
seu "drible da foca" que podem
ser reduzidas a uma grande
questão: ele pode equilibrar a
bola com toques sucessivos de
cabeça desde que esteja em direção ao gol porque isso é produtivo; do contrário, é um insulto de corpo, que desencadeia
reações violentas dos adversários, reprováveis, mas compreendidas...
No futebol atual, bola parada
próxima à área adversária é
sempre um lance considerado
perigoso.
Há quase uma suspensão
temporária da correria da partida, um instante de reflexão,
momento de astúcia individual
ou coletiva que envolve ações
precisas e calculadas.
Há sempre jogadas ensaiadas
pelos atacantes, ou seja, planos
táticos previamente estabelecidos, treinados e colocados em
prática muitas vezes com elevado grau de eficiência.
Rogério e Higuita
Mesmo com certa dose de inversão, quando Rogério Ceni
(São Paulo) propõe-se a cobrar
faltas, pênaltis e até mesmo
"sair jogando" pelo seu campo
de defesa, há um esquema defensivo que oferece retaguarda
à ousadia calculada do goleiro/
goleador, que ostenta altíssimo
índice de aproveitamento.
Bem diversa era a postura do
goleiro colombiano René Higuita. Dionisíaco, além de cobrar pênaltis e faltas, arriscava
dribles próximo à sua meta e
até mesmo fazia defesas malabaristas, como o "golpe do escorpião", quando rebatia a bola
com os calcanhares. Uma temeridade duramente criticada
pelos defensores de um futebol
sério e moderno.
Em torno de uma propalada
noção de modernidade, exalta-se hoje a concentração de capital e de parcerias que permitam
montar esquadrões e estabelecer a "reposição das peças"
(termos escravistas ainda se
mantêm em uso no Brasil).
Mesmo que isso redunde em
notórias ações de lavagem de
dinheiro, sonegação e operações financeiras ilegais.
Nessa lógica, a justiça da vitória é o coroamento do investimento e do planejamento estratégico. Das categorias de base que (de)formam os garotos
que sonhavam em ser goleadores habilidosos e vão se transformar em brucutus de contenção (adestramento que visa a
formar empregadinhos do sistema, como se tenta instituir
nas universidades).
Da acintosa propaganda nas
camisas que, no limite, pode levar ao embate entre uma marca
de margarina contra outra de
sabonete (situação que já ocorre em outros esportes).
Da contratação de um técnico que se apresente visualmente como "manager", ainda que
saudado como "professor" pelos jogadores e ovacionado como burro pela torcida.
Casas de espetáculo
Da transformação do estádio
em arena multiuso, casa de espetáculos que deve oferecer
conforto aos seus clientes ou
shoppings centers, esses paraísos artificiais capazes de realizar a felicidade capitalista.
As mensagens proferidas por
meio do futebol, nesse sentido,
reforçam ideologicamente o
primado do mercado em detrimento da seara política. A modernidade, nos campos futebolísticos, como em outros mais, é
entendida exclusivamente em
sua expressão econômica, a
despeito das inquietações das
torcidas com relação aos desmandos, à concentração de poderes e aos desvios de recursos.
Talvez, exatamente no terreno da política, possam se construir outras alternativas, num
processo de democratização
dos clubes e das entidades ligadas ao futebol. Quem sabe um
outro futebol seja possível?
FLÁVIO DE CAMPOS é professor de história na
USP.
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