São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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Votos em branco

Série de documentários feitos em dez países, como China, Rússia, Bolívia e EUA, discute se a democracia é desejável no mundo todo e como deve funcionar

Divulgação
O diretor Weijun Chen filma crianças para seu documentário "Por Favor, Vote em Mim", que faz parte do projeto "Por Que Democracia?"


LARS MOVIN

P or Que Democracia?" é certamente um dos mais amplos e ambiciosos projetos internacionais de cinema documental já empreendidos. Abarcando dez filmes de cineastas locais em países tão distantes uns dos outros quanto China, Libéria, Paquistão, Egito, Bolívia, EUA e Dinamarca, exibidos por emissoras em 42 países e contando com o apoio de múltiplos websites, o projeto, lançado em outubro passado, estava previsto para alcançar pelo menos 300 milhões de espectadores e estimular a discussão em torno das perguntas: o que é a democracia? Como ela funciona? Será que é, por definição, a escolha certa para todos?

Marcha em sintonia
Na escola Sempre Verde, em Wuhan, região central da China, as crianças são ensinadas a marchar em sintonia, subordinar o individual ao comunitário e entoar slogans sobre o Estado e o futuro. Essa é a China que conhecemos. Mas anos de política do filho único e liberalização econômica vêm submetendo os valores tradicionais a uma pressão constante.
Se as crianças da nova China não compreenderem por conta própria que precisam ser ambiciosas para ter sucesso numa sociedade cada vez mais competitiva, seus pais certamente os ajudarão a entendê-lo. Então talvez a pergunta seja: o que aconteceria se a sociedade chinesa cortasse seus últimos laços com seu passado e desse livre vazão às forças da democracia?
E se uma classe numa escola fosse autorizada a eleger um representante estudantil seguindo os mesmos princípios usados por adultos no Ocidente para eleger seus representantes -ou seja, indicando candidatos, promovendo campanhas eleitorais e o voto aberto? Foi o que o documentarista chinês Weijun Chen se propôs a explorar quando foi incentivado a desenvolver um trabalho para o projeto "Por Que Democracia?", uma série de documentários de cineastas locais de diversos lugares do mundo, descrevendo visões diferentes da democracia.
Seu filme, "Por Favor, Vote em Mim", é ao mesmo tempo comovente e assustador, documentando o experimento feito por Chen. O cineasta acompanhou três candidatos de oito anos de idade em sua campanha, chegando finalmente à votação dos alunos. É um processo que evolui como uma versão em miniatura do mundo adulto, com todas as suas jogadas sujas, negociatas, troca de votos por favores, cinismo e corrupção.

Local e global
"Por Favor, Vote em Mim" representa de modo eloqüente o espírito do projeto "Por Que Democracia?". Como é feito por um diretor chinês, soma a perspectiva local a um tema globalmente relevante.
"Procuramos evitar as regiões do mundo que são mais explosivas", disse Mette Hoffman Meyer, uma das responsáveis pelo projeto. "Filmes sobre o Afeganistão ou o conflito israelo-palestino provavelmente iriam deslanchar de qualquer maneira", disse. Meyer chefiou o departamento de vendas internacionais da emissora comercial dinamarquesa TV2 durante 18 anos, incluindo os últimos anos, em que foi editora de documentários. Em agosto passado, começou em seu novo emprego como editora de documentários e chefe de co-produções na emissora pública DR.
Não surpreendentemente, carregou uma ampla rede de contatos para "Por Que Democracia?", que desenvolveu e conduziu em parceria com dois outros editores experientes, Nick Fraser (BBC), e Iikka Vehkalahti, da finlandesa YLE. Nos últimos três anos, os três co-lançaram uma série de grandes projetos, incluindo "Tempos Interessantes", um punhado de documentários chineses, e, notavelmente, uma série de 38 filmes da África sob a bandeira de "Na Realidade a Vida É uma Coisa Bela", em ambos os casos trabalhando com cineastas locais.

Democracia como slogan
"Quando fizemos o projeto africano, realmente ficou claro para mim como é importante ter cineastas locais dirigindo os filmes, em lugar de simplesmente despachar um repórter ocidental para apresentar a história costumeira mostrando como tudo é deprimente." "É claro que os filmes dos diretores africanos também tinham seus problemas, mas tinham humor e uma alegria em torno de coisas pequenas que facilitaram em muito a identificação dos espectadores africanos com as imagens que lhes eram apresentadas. Desde então, venho usando o mesmo princípio em muitos contextos", disse Meyer.
Segundo ela, "foram colocadas sobre a mesa várias propostas -as nações árabes e outras escolhas evidentes-, mas então se começou a falar de democracia, esse slogan pelo qual vamos à guerra hoje em dia e que tentamos exportar para outras partes do mundo", disse. "A democracia significa algo diferente para cada um. No Japão, a percepção que se tem dela é distinta da que se tem no Ocidente. Na Rússia as pessoas provavelmente não desejariam o tipo de democracia que vemos na Escandinávia como sendo o único tipo correto. E assim por diante."
Uma reunião inicial foi realizada em dezembro de 2004, e desde então a bola de neve vem crescendo. A tal ponto que agora já não soa como mera fantasia quando os lançadores do projeto dizem esperar que tenha início um diálogo global sobre a democracia. "A coisa ganhou dimensões enormes", diz Meyer. "Após termos fechado parceria com cinco ou seis emissoras, começamos a buscar a adesão do Instituto Dinamarquês de Cinema, do Ministério do Exterior finlandês e de diversos fundos pelo mundo afora e acabamos por fechar contrato com 42 emissoras."
"Nem todas as estações de TV envolvidas adquiriram todos os dez filmes, mas todas concordaram em exibir pelo menos dois deles, e a maioria vai transmitir vários ou todos." Como encontraram os cineastas? "Organizamos encontros e fizemos contatos em todo o mundo. Enviamos e-mails aos nomes das listas de mailing de diferentes festivais de cinema e acabamos por receber 480 propostas", disse Meyer.
"Num primeiro momento, as propostas não eram distribuídas geograficamente de maneira tão ampla quanto teríamos gostado, então tivemos que fazer um esforço adicional em alguns lugares. Essa também tinha sido minha experiência com nosso último projeto na África. Quando você trabalha em países que não têm tradição de produzir documentários nem contam com um ambiente ou rede correspondente, é preciso encontrar outros modos de fazer as coisas. Na China fizemos uma reunião secreta, convidando os documentaristas que conhecíamos, e pedimos que nos enviassem propostas. Na Índia fizemos dois workshops, em Mumbai e Calcutá."

Marketing viral
O grupo responsável pela iniciativa vem procurando pensar a distribuição e o marketing de maneiras não convencionais. Por exemplo, o filme chinês "Por Favor, Vote em Mim" foi postado na íntegra no MySpace. Além disso, o grupo formou uma parceria com o www.joost.com, um novo site de TV na internet lançado por Janus Friis e Niklas Zennström, os fundadores do Skype. Na mídia impressa foi formada uma parceria com o jornal gratuito "MetroXpress", com sucursais em 23 países e, segundo suas contas, 25 milhões de leitores diários, incluindo muitos jovens.
"Também entramos no marketing viral, criando pequenos comerciais de 30 segundos que esperamos que sejam suficientemente divertidos, grosseiros ou grotescos para que as pessoas queiram dividi-los com seus amigos e que divulgamos via celulares, Facebook [site de relacionamentos] e semelhantes, esperando que ganhem vida própria", disse Meyer.

Culturas locais
O que mais a agrada no projeto é que os filmes, precisamente por serem criados por diretores locais, também refletem suas respectivas culturas cinematográficas, em graus variados. "É o caso do russo "Patriotas", de Nino Kirtadze. Já o Egito, representado por "Estamos Vigiando Você", de Leila Menjou e Sherief Elkatsha, evidentemente tem um nervo caótico muito mais forte do que os filmes que vemos na Europa." "Um dos desafios do projeto é tentar manter o equilíbrio.
Por um lado, não saímos por aí dizendo aos diretores que deveriam fazer coisas como um filme da BBC. Por outro lado, compreendemos que os filmes são para serem vistos em todo o mundo e têm que ser compreensíveis para todo o mundo. Acho que tivemos sorte por conseguir lançar dez filmes tão fortes e comoventes. Mostrei o liberiano "As Damas de Ferro da Libéria", de Daniel Junge e Siatta Scott Johnson, a uma colega da DR."
O filme acompanha Ellen Johnson Sirleaf, a primeira presidente democraticamente eleita na Libéria após 14 anos de guerra civil e a primeira mulher a ser chefe de um Estado africano, desde sua posse em janeiro de 2006.
"Minha colega ficou muito comovida e me disse que foi a primeira vez em que chorou ao assistir a um documentário político africano. É isso o que os documentários fazem. Quando as ferramentas documentais são utilizadas corretamente, os espectadores conseguem identificar-se muito melhor com seus temas e, ao mesmo tempo, compreendem melhor os projetos envolvidos."


A íntegra deste texto foi publicada na revista dinamarquesa "Film". Tradução de Clara Allain.


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