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Ponto de Fuga
Boas e más palavras
Laferrière expõe em suas obras, repetidas vezes, a exploração mais direta exercida pelos países ricos sobre os países pobres: o turismo sexual
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Dany Laferrière é um autor haitiano. Coberto de
prêmios e traduzido em
várias línguas. Perseguido pelo
ditador François Duvalier
[1907-71], o sinistro Papa Doc,
passou a viver no Canadá.
Estava em Porto Príncipe
quando ocorreu o terremoto.
Conta, numa entrevista ao jornal "Le Monde":
"Saí logo para o pátio e me
deitei no chão. Houve 60 segundos intermináveis; tinha a
impressão que aquilo não ia
acabar nunca, mas que o solo
podia se abrir. Enorme. Tem-se o sentimento de que a terra
se tornou uma folha de papel.
Não há mais densidade, não se
sente mais nada, o solo fica
completamente mole."
Laferrière sabe que as piores
cretinices podem brotar dos
cérebros humanos. Insiste então em sublinhar: "É preciso
parar de empregar o termo
"maldição". É uma palavra insultante; subentende que o
Haiti fez alguma coisa de mal e
que está pagando (...)".
"Sofremos ciclones por razões precisas; não houve terremoto de tal magnitude há 200
anos. Se for uma maldição, seria necessário então dizer também que a Califórnia ou o Japão são malditos. Passa ainda
que os tele-evangelistas americanos pretendam que os haitianos assinaram um pacto com o
Diabo; mas não as mídias..."
Firmeza
Laferrière prossegue:
"Seria melhor que elas (as
mídias) falassem dessa energia
incrível que eu vi, desses homens e dessas mulheres que,
com coragem e dignidade, se
entreajudam. Embora a cidade
esteja em parte destruída e o
Estado se encontre decapitado,
as pessoas permanecem, trabalham e vivem."
"Então, por favor, parem de
empregar o termo maldição. O
Haiti nada fez, não está pagando por nada; é uma catástrofe
que poderia ocorrer em qualquer lugar."
"Há outra expressão que seria preciso parar de empregar a
torto e a direito: pilhagem.
Quando as pessoas, com o perigo das próprias vidas, vão buscar nos escombros o que beber
e se alimentar, antes que as máquinas venham arrasar tudo, isso não se aparenta à pilhagem,
mas à sobrevivência."
Tinta
"Como Fazer Amor com um
Negro sem Se Cansar" é o primeiro livro de Laferrière e o
projetou em âmbito internacional. Seus títulos são sempre
sugestivos: "Eroshima", "O
Cheiro do Café", "O Gosto das
Jovens", "Essa Romã na Mão
do Jovem Negro É uma Arma
ou um Fruto?" (em francês, romã se diz "grenade", mesma palavra para a arma explosiva).
Laferrière expõe em suas
obras, repetidas vezes, a exploração mais direta exercida pelos países ricos sobre os países
pobres: o turismo sexual.
Há ali bem mais que denúncia, há fascínio e análise fina na
busca de compreender mecanismos. Acima de tudo, há uma
escrita soberba.
Estrelas
Heloisa Caldeira Alves Moreira traduziu "País sem Chapéu", que inseriu em sua dissertação de mestrado, disponível na internet (buscar em www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp).
Vai aqui um trecho: "A noite
existe neste país. Uma noite
misteriosa. Eu, que acabo de
passar cerca de 20 anos no norte, tinha quase esquecido esse
aspecto da noite. A noite negra.
Noite mística. E só de dia podemos falar do que aconteceu à
noite. Vem ao espírito a famosa
interrogação de Thales. Quem
chega primeiro: a noite ou o
dia? E Thales decide: a noite
está um dia na frente. É como
se dois países caminhassem lado a lado, sem jamais se encontrar. Um povo humilde se debate de dia para sobreviver. E
esse mesmo país, à noite, é habitado somente por deuses,
diabos, homens transformados
em bestas."
jorgecoli@uol.com.br
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