São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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CAINDO NA REAL
O Brasil é a cobaia de um novo modelo de dolarização que subordina o país a decisões externas e reduz ao mínimo a vida democrática
A ilusão do desenvolvimento

Sérgio Lima/Folha Imagem
O presidente Fernando Henrique Cardoso durante comemoração dos quatro anos do real, em julho de 1998


JOSÉ LUÍS FIORI
especial para a Folha

De repente, neste final do século 20 e depois de 25 anos relegado ao esquecimento, o velho tema da riqueza das nações ou do "desenvolvimento" volta a ocupar lugar de destaque na agenda político-econômica mundial. Em setembro de 1998, o presidente Bill Clinton apelou aos governantes mundiais para que transformassem o desenvolvimento econômico na sua prioridade número um, única maneira de enfrentar a "pior crise financeira dos últimos 50 anos", evitando que "uma geração inteira fosse jogada na miséria".
Numa linha mais radical, dois meses depois, Oskar Lafontaine, ministro das Finanças do novo governo social-democrata alemão, surpreendeu a Europa com a sua proposta de repolitizar a discussão das políticas monetárias e com sua defesa da necessidade de repor o objetivo nacional da produção e do emprego no mesmo nível de importância que o da estabilidade monetária.
Por trás destas novas posições políticas -que entram em choque direto com as idéias hegemônicas deste último quarto de século-, o que existe não é obviamente um debate ou divergência teórica, mas o reconhecimento da gravidade da crise que se alastrou a partir do Leste asiático e da impotência das políticas ortodoxas para enfrentar os efeitos da convulsão financeira que projeta sobre o próximo milênio um horizonte de incertezas com relação aos países centrais e de pessimismo com relação aos países da periferia capitalista.
As estatísticas de todos os organismos multilaterais confirmam que, nestes últimos 25 anos, desde o fim do Sistema de Bretton Woods, independentemente de variações cíclicas e pontuais, e com a exceção do Leste asiático, da Índia e da China, a tendência econômica mundial foi de declínio constante das taxas de investimento, crescimento e emprego. E, ao começar o ano de 1999, mesmo que o mundo escape de uma recessão global, as perspectivas imediatas são de que a Europa e os Estados Unidos desacelerem seu crescimento, o Leste asiático atravesse uma recessão prolongada e a Rússia entre numa regressão gigantesca.
Na outra ponta, ninguém mais tem duvidas de que a América Latina enfrentará um novo período de estagnação, enquanto o Brasil completará no ano 2000 mais uma década perdida. A crise, como se sabe, já atingiu a economia latino-americana e hoje desorganiza completamente o seu cenário ideológico, no qual a "utopia globalitária" ocupou, nesta última década, de forma absoluta, o lugar que tivera o "desenvolvimentismo" depois da Segunda Guerra.
No caso brasileiro, por exemplo, em que as perspectivas imediatas são de profunda recessão, não é difícil quantificar o problema que se coloca. Como seu crescimento demográfico é de 1,4% ao ano, mas sua população economicamente ativa (PEA) segue crescendo a uma taxa de 2,7%, o país precisaria criar 1,5 milhão de novos empregos por ano, o que suporia um crescimento continuado do PIB a uma taxa média anual de 7%, só para absorver a nova população que bate a cada ano às portas do mercado de trabalho.
Posto diante desse desafio e sem poder apelar mais para a ilusão do "renascimento global", o governo criou um Ministério do Desenvolvimento. O que é completamente irrelevante, não importa quem seja seu titular.
Em primeiro lugar, porque sua coalizão de poder e sua estratégia econômica foram construídos com base no projeto explícito de "virar a página" ideológica e econômica do desenvolvimentismo; em segundo lugar, porque depois de dez anos de destruição o Estado já não dispõe dos instrumentos indispensáveis a uma retomada desenvolvimentista; e, em terceiro lugar, porque o Brasil acabou de assinar uma "carta de intenções" e um "acordo falimentar" com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco de Compensações Internacionais (BIS) que o compromete por vários anos com a mais recente e radical versão da mesma política econômica que o conduziu à crise atual.
Uma nova realidade, que resultou de escolhas e decisões políticas absolutamente conscientes e ideológicas, e não de necessidades materiais impostas ao país. Sobretudo porque, como se sabe, o Brasil foi o único país latino-americano que durante a sua "era desenvolvimentista" (1950-1980) foi capaz de ocupar economicamente o seu território, construindo uma infra-estrutura relativamente complexa e integrada de transportes, energia e comunicações, além de se industrializar e manter durante 30 anos a segunda taxa média anual mais alta de crescimento econômico do mundo.
Por tudo isso, este é um bom momento para retornar a um velho debate que foi sistematicamente esquecido ou negado, nos últimos anos, pela arrogância ou ignorância dos novos liberais. Como se sabe, o núcleo central da primeira agenda desenvolvimentista desenhada nos anos 50 propunha um crescimento econômico acelerado com base na integração e interiorização do mercado interno organizado a partir da expansão da infra-estrutura, da indústria e do agrobusiness. Além disso, apostou na compatibilidade política entre uma aliança nacional-popular e a sustentação democrática, na eficácia econômica do mecanismo indutor da "substituição de importações" e no caráter derivado e obrigatório da melhoria na distribuição da renda.
Esse modelo enfrentou sua primeira crise séria na entrada dos anos 60, quando a oposição de esquerda se distanciou do projeto inicial e sustentou na sua crítica ao "modelo de substituição de exportações", o que se transformou na primeira tentativa de reforma social e democratizante do desenvolvimentismo juscelinista. Seu programa propunha retomar o crescimento interrompido, conter a inflação e levar à frente programas universalizantes de saúde e educação e de reforma dos sistemas de propriedades urbana e agrária (proposta sintetizada, em 1963, no Plano Trienal do ministro Celso Furtado).
Este projeto reformista de forte cunho popular foi bloqueado e derrotado pela coalizão de poder conservadora que sustentou o golpe de 64 e todo o período do regime militar. Foi essa nova coalizão de poder que deu a marca autoritária e anti-social do desenvolvimentismo dos anos 60/80. Foi ela que promoveu uma gigantesca concentração e polarização da renda, e foi uma resultante dessa coalizão a forma "selvagem" como o capitalismo brasileiro viveu o seu "milagre econômico".
Desde a segunda metade da década de 70, pelo menos, que a oposição ao regime militar, ao lado de sua crítica do autoritarismo, veio denunciando as fragilidades, contradições e limites deste desenvolvimentismo conservador: seu padrão de financiamento "externalizado"; seu protecionismo muitas vezes sem critérios estratégicos de escolha de grupos econômicos e setores produtivos; sua incapacidade ou impotência para conglomerar e articular estrategicamente o setor produtivo e financeiro estatal; sua distribuição regressiva da renda; sua defesa intransigente do monopólio da terra e dos espaços urbanos; seus sistemas mal financiados de proteção da força de trabalho e da população "marginal"; sua complacência diante do processo de privatização do Estado autoritário e de seus processos decisórios; sua fragilidade diante dos interesses privados internacionalizados etc.
Uma crítica veemente do autoritarismo, mas que soube identificar nas "taras" do seu desenvolvimentismo o poder, a vontade e as decisões conservadoras e muitas vezes reacionárias da coalizão de interesses privados nacionais e internacionais que sustentaram o regime político, mas também a estratégia de "fuga para frente" na condução do processo do desenvolvimento. Fuga sempre pelos caminhos de menor resistência, abertos pela conjuntura econômica internacional e capazes de compatibilizar -ainda que transitoriamente- os interesses heterogêneos e antipopulares de nossas elites políticas.
Em grande medida, foi esse pensamento crítico que orientou o novo programa de reformas esboçado na primeira metade dos anos 80. E foi com base nele que as forças progressistas tentaram revolucionar o desenvolvimentismo conservador, na primeira hora da transição democrática, entre 1985 e 1988. Mas a experiência dos anos 60 já havia ensinado e, por isso, nesta segunda oportunidade, a convicção comum era de que as reformas e o enfrentamento conjunto da crise da dívida externa e do novo contexto econômico internacional requeriam uma mudança radical das bases do poder e a construção de uma nova coalizão capaz de redesenhar o desenvolvimento nacional com base noutro conjunto de valores hierarquizados, a partir de um objetivo central: o bem-estar econômico e social da população brasileira. O mesmo objetivo que foi consagrado e detalhado pela Constituição de 1988.
Como se sabe, essa segunda tentativa de reforma progressista do desenvolvimentismo brasileiro também foi derrotada e destruída pelas mesmas forças de centro-direita que haviam sustentado o desenvolvimentismo conservador dos militares.
Em muito pouco tempo, já no processo constituinte, ocorreu a reaglutinação dessas forças recém-derrotadas pelo movimento democrático. Mas elas só puderam vetar o pacto social e federativo da "Constituição Cidadã" mais tarde, quando encontraram apoio, legitimidade e liderança intelectual num segmento expressivo da antiga "frente democrática", que abandonou o projeto de reformas progressistas e aderiu, de forma preguiçosa, à crítica neoliberal de uma abstração: o "desenvolvimentismo" em geral.
Na entrada dos anos 80, o Brasil fora submetido a um choque gigantesco produzido simultaneamente pela alta da taxa de juros internacional e dos preços do petróleo e pela queda do preço de suas exportações, seguida pelo afastamento do país do sistema financeiro internacional.
Mas, segundo essa crítica, sustentada na repetição superficial da vulgata neoclássica, a nossa crise dos anos 80 havia sido causada pelo "populismo macroeconômico" dos militares -que, ninguém sabe como, ficaram subitamente populistas- e pelo comportamento predatório de empresários "rent seeking", que sempre estiveram onde estiveram, mas que decidiram de maneira também surpreendente matar a própria galinha dos ovos de ouro. Um pastiche das idéias que eram difundidas, na década de 80, pela equipe do Banco Mundial, mas que se tornaram entre nós a argamassa ideológica que ajudou a "recolar" a velha coalizão de poder autoritária e anti-social, conectando-a com as idéias e o poder articulados mundialmente em torno do Consenso de Washington.
Foi essa crítica liberal que legitimou o descumprimento por parte dos conservadores dos compromissos sociais e federativos que haviam assinado junto com a Constituição de 1988. E foi esse diagnóstico -quase ridículo- da crise que orientou o desmonte e depois a destruição, na década de 90, do Estado brasileiro e dos seus instrumentos de intervenção, de uma parte expressiva de suas cadeias industriais e de boa parte da infra-estrutura construída nos 30 anos desenvolvimentistas. Por fim, ainda, foi a força declinante destas idéias que conseguiu imobilizar a reação das classes dominantes diante da decisão política do governo de assinar o acordo com o FMI e o BIS, definindo de maneira rigorosa e trimestral os objetivos e a forma como o país deverá ser governado durante os próximos anos, independentemente de quem o esteja administrando.
As autoridades brasileiras têm razão quando afirmam tratar-se de um "acordo original". É de fato uma versão corrigida pelos fracassos do FMI no Leste asiático e nesse sentido mais genérica e preventiva, mas mais sofisticada e irreversível. Não compromete de antemão -como em outros casos- "ativos públicos" em pagamento direto às instituições multilaterais de crédito. Promete US$ 25 bilhões de privatizações, que deverão ser repassados aos credores privados, enquanto aumenta em mais de US$ 40 bilhões a dívida externa pública a descoberto.
Mas o que é mais essencial é que, como garantia pelo empréstimo internacional que lhe concederam, o governo ofereceu uma transferência de "capacidade de decisão", o que transforma o Brasil na primeira cobaia internacional de um experimento que combina, num "mercado emergente", a aceitação contratual e compulsiva das regras e prescrições do Acordo Multilateral de Investimentos (o AMI, que ainda não foi assinado pelos países desenvolvidos) com as regras já aceitas pelo Brasil da Organização Mundial do Comércio e mais uma fórmula nova e não constitucionalizada de dolarização da economia.
Com isto o governo proíbe-se, automaticamente, o uso de qualquer tipo de controle do movimento de capitais, investimentos e remessas de lucros e dividendos e, obviamente, de qualquer tipo de política industrial ou comercial. Compromete-se, além disso, com a automática elevação da taxa interna de juros em caso de perda de reservas, delegando ao FMI o controle "informal" e mensal de sua política monetária e trimestral da sua política fiscal.
Por fim, aceita repassar ao FED, o Banco Central norte-americano, o controle de suas reservas, caso elas caiam até a casa dos US$ 20 bilhões, como forma de evitar que o Brasil repita o caminho seguido pela moratória russa. O país fica dispensado de fazer ou controlar sua política monetária, fiscal, comercial e industrial. E seria uma ingenuidade, nessas circunstâncias, querer que o país tivesse, nessas condições, uma política externa autônoma. A opção que o governo fez, como se pode ver, foi absolutamente radical e dispensa a partir de agora qualquer preocupação "boba" e "anacrônica" com assuntos do tipo "soberania nacional". Em troca de quê? E com que possibilidade de sucesso em termos de desenvolvimento?
Na forma como estão definidas e estabelecidas as novas regras do "bom comportamento macroeconômico" brasileiro, rolem-se ou não as dívidas, e volte ou não a boa vontade dos mercados, o país será empurrado de forma apenas mais ou menos rápida, mas inapelável, em direção a um sistema cambial que os economistas chamam de "currency board".
Uma vez dentro desse sistema -que já está funcionando inconstitucionalmente-, o volume do crédito interno e, automaticamente, a variação das taxas de juros ficam condicionados pelo volume ou escassez dos recursos externos que entrarem no país. Um simulacro do padrão ouro aplicado neste final de século apenas àqueles países sem condições de participar do sistema de taxas flutuantes que impera entre as potências econômicas. Este sistema só foi experimentado pelos Dominions ingleses e mantido com êxito relativo, neste século, em lugares que se converteram em praças financeiras internacionais, como Cingapura e Hong Kong (e está agora em experiência na Argentina).
O desenvolvimento dos países periféricos subordinados a este novo modelo fica totalmente dependente das flutuações internacionais dos capitais e completamente indefeso diante de suas crises financeiras periódicas. Nesse sentido, no caso de uma nova crise, como as de 1997 ou de 1998, sua única resposta serão as renovadas "desconstruções" do seu sistema produtivo, a serem induzidas por recessões cada vez mais fortes, para que possam reduzir a produção e o emprego internos até o nível requerido pela manutenção do equilíbrio externo, dada a oferta de capitais do momento.
Não é necessário dizer que o funcionamento desse "modelo de desenvolvimento" requer o isolamento dos seus administradores com relação a qualquer tipo de demanda ou reivindicação interna, o que supõe a despolitização radical das relações econômicas, o enfraquecimento dos sindicatos, a fragilização dos partidos políticos e dos parlamentos e, finalmente, a redução ao mínimo indispensável da vida democrática.
Se o economista americano Barry Eichengreen tiver razão quando diz que "ou se limita a mobilidade dos capitais ou se limita a democracia", o atual governo brasileiro já fez a sua opção: e aqui, como no caso da produção e do emprego, a governabilidade democrática e federativa é que deverá ir sendo reduzida e se adequando às exigências impostas pelo equilíbrio das contas externas ou pela disponibilidade de capitais do momento. Mas, mesmo assim, dentro desta camisa-de-força, o Brasil está condenado, na melhor das hipóteses, a ter ciclos muito curtos de baixo crescimento e apenas durante os períodos de disponibilidade abundante e barata de capitais e créditos internacionais.
Querer manter esse modelo e alcançar a um só tempo altas taxas de crescimento é o mesmo que o círculo quadrado a que se propôs José Bonifácio ao querer construir uma nação independente e liberal aliada com os ingleses e os senhores de escravos. Deu no que deu.


José Luís Fiori é doutor em ciência política pela USP, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e autor, entre outros, de "Os Moedeiros Falsos" (Ed. Vozes).



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