São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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Nascimento e morte

Filme de José Padilha representa ao mesmo tempo ruptura e continuidade em relação ao cinema policial brasileiro


Antielitismo rasteiro é um dos principais responsáveis pela grande empatia do filme

RAFAEL DE LUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O principal mérito do longa-metragem "Tropa de Elite", de José Padilha, é o de despertar controvérsias. E elas vão continuar, apesar da unanimidade que se tenta impor justificada pelo enorme sucesso de bilheteria (que salvou do fiasco comercial o cinema brasileiro em 2007), pelos elogios de parcelas da crítica que encontram inegáveis qualidades estéticas na obra (freqüentemente avaliadas como divorciadas da política) e, mais recentemente, por ter ganho o Urso de Ouro no Festival de Berlim, no último dia 16.
A premiação internacional serviria para "calar" aqueles que ainda insistem no debate, sob o risco de estarem investindo contra os interesses do cinema brasileiro ou parecerem ignorantes teimosos que não "compreenderam" o filme. Ainda assim, insisto.
"Tropa de Elite" segue a tese do filme anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus 174", expressa claramente na narração do sociólogo Luiz Eduardo Soares (co-autor do livro "Elite da Tropa"), que acompanhava as imagens finais da tentativa de linchamento do seqüestrador Sandro pela multidão e o trajeto da viatura onde ele foi assassinado (ou "asfixiado") por policiais. Ou seja, uma Polícia Militar assassina é um desejo inconfesso do povo. Ela é fruto da sociedade. Mas os criminosos também o são.
Ao longo de sua história, o cinema brasileiro tomou como personagem privilegiado o marginal, oprimido pela sociedade e que não encontra saídas além de ingressar na vida do crime. Nos anos de 1960 e 1970, em filmes como "Assalto ao Trem Pagador", "Mineirinho Vivo ou Morto" e "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia", entre outros, os personagens bandidos ganhavam alguma legitimidade como vítimas das injustiças sociais, num quadro em que, de alguma maneira, os filmes de cangaceiros também se encaixavam.
Nos últimos anos, com a sensação de um crescimento assustador da violência urbana, especialmente no Rio de Janeiro, o foco parece se deslocar para personagens que, ilesos ou não, buscam de diversas maneiras escapar da pobreza e do crime, como o Buscapé de "Cidade de Deus" ou o protagonista de "Querô".
Em relação a uma linhagem do filme policial brasileiro, "Tropa de Elite" é ao mesmo tempo uma ruptura e uma continuidade. Apesar de se diferenciar por tomar como protagonista um policial, o filme de José Padilha não foge à tradição dos personagens marginalizados, impotentes em um universo que não controlam e em crise pela incompatibilidade entre o ofício e a necessidade de segurança e paz na vida familiar.
Apesar de o Capitão Nascimento e o Bope serem a elite da tropa, eles representam também uma minoria, um grupo marginal dentro do universo muito mais amplo da Polícia Militar e do aparato estatal como um todo.
Mas todas essas contradições são frutos do "sistema", explica a narração do Capitão, desfiando um antielitismo rasteiro que é um dos principais responsáveis pela grande empatia do filme. Policial do Bope não tem carro importado nem casa com piscina. "Faca na caveira e nada na carteira", debocha um PM quando os "homens de preto" aparecem para salvar o dia.
Lógico, afinal de contas, rico não presta, sejam os oficiais e políticos corruptos ou os alienados filhinhos de papai. E os pobres? Quem mandou morar em favela cheia de bandido? Se o favelado é inocente, basta trancar a porta do barraco e se proteger de bala perdida, porque o Bope só tortura quem tem o rabo preso.
Um dado novo apresentado por "Tropa de Elite" é justamente a eficiência. É com um orgulho quase ufanista que louvamos a melhor tropa do mundo. Para matar bandidos em favela, com o brasileiro não há quem possa!
De "Nascido para Matar" a "Até o Limite da Honra", os artifícios do cinema de ação são traduzidos com perfeição para o cenário nacional. Mais do que um Rambo, Wagner Moura cria uma autêntica versão brasileira do policial John McLane de Bruce Willis, que, em meio a crises familiares e profissionais, destila carisma e violência.
Se os americanos sempre salvaram o mundo dos terroristas europeus ou árabes, pelo menos no Rio de Janeiro quem manda é o Capitão Nascimento, como mostraram dezenas de piadas que ainda circulam na internet.
No retrato traçado por "Tropa de Elite", o Bope representa a eficiência absoluta -o drama do Capitão Nascimento é justamente encontrar seu substituto "perfeito"- e também a reserva moral da polícia e, conseqüentemente, do Estado.
Com a autoridade concedida por justificativas econômicas (o pertencimento à classe média responsável e trabalhadora), morais (a honestidade a toda prova) e técnicas (a superioridade indiscutível em seu ofício), a elite da tropa tem todos os motivos para fazer o que acha melhor, inclusive transgredindo as leis de um sistema podre.
Os fins justificam os meios, sobretudo se quem o faz é considerado autorizado para tal. Como o personagem de Charles Bronson da série "Desejo de Matar", torna-se lícito reunir na mesma figura juiz, júri e executor.
Apesar do tiro disparado na nossa cara, o longa-metragem de José Padilha, no final das contas, é um alívio para as aflições da classe média honesta e sofredora.
Após dezenas de filmes insistirem em tirar seu sono, atribuindo-lhe culpa ou preocupação, ela poderá enfim dormir em paz. Se seus privilégios são defendidos ardorosamente por "Meu Nome É Johnny", sua segurança é plenamente garantida por "Tropa de Elite". Fiquemos tranqüilos: enquanto o Capitão Nascimento vai merecidamente aproveitar o "happy end" com a mulher e filhinho, o Capitão Matias vai seguir aniquilando os malfeitores.


RAFAEL DE LUNA FREIRE é professor de preservação, restauração e políticas audiovisuais no curso de cinema da Universidade Federal Fluminense e autor de "Navalha na Tela - Plínio Marcos e o Cinema Brasileiro" (Tela Brasilis).


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