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Nascimento e morte
Filme de José Padilha representa
ao mesmo tempo ruptura e continuidade
em relação ao cinema policial brasileiro
Antielitismo rasteiro é um dos principais responsáveis pela grande empatia do filme
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RAFAEL DE LUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O principal mérito
do longa-metragem "Tropa de Elite", de José Padilha, é o de despertar controvérsias.
E elas vão continuar, apesar
da unanimidade que se tenta
impor justificada pelo enorme
sucesso de bilheteria (que salvou do fiasco comercial o cinema brasileiro em 2007), pelos
elogios de parcelas da crítica
que encontram inegáveis qualidades estéticas na obra (freqüentemente avaliadas como
divorciadas da política) e, mais
recentemente, por ter ganho o
Urso de Ouro no Festival de
Berlim, no último dia 16.
A premiação internacional
serviria para "calar" aqueles
que ainda insistem no debate,
sob o risco de estarem investindo contra os interesses do
cinema brasileiro ou parecerem ignorantes teimosos que
não "compreenderam" o filme.
Ainda assim, insisto.
"Tropa de Elite" segue a tese
do filme anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus
174", expressa claramente na
narração do sociólogo Luiz
Eduardo Soares (co-autor do
livro "Elite da Tropa"), que
acompanhava as imagens finais da tentativa de linchamento do seqüestrador Sandro
pela multidão e o trajeto da viatura onde ele foi assassinado
(ou "asfixiado") por policiais.
Ou seja, uma Polícia Militar
assassina é um desejo inconfesso do povo. Ela é fruto da sociedade. Mas os criminosos
também o são.
Ao longo de sua história, o cinema brasileiro tomou como
personagem privilegiado o
marginal, oprimido pela sociedade e que não encontra saídas
além de ingressar na vida do
crime. Nos anos de 1960 e 1970,
em filmes como "Assalto ao
Trem Pagador", "Mineirinho
Vivo ou Morto" e "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia",
entre outros, os personagens
bandidos ganhavam alguma legitimidade como vítimas das
injustiças sociais, num quadro
em que, de alguma maneira, os
filmes de cangaceiros também
se encaixavam.
Nos últimos anos, com a sensação de um crescimento assustador da violência urbana,
especialmente no Rio de Janeiro, o foco parece se deslocar para personagens que, ilesos ou
não, buscam de diversas maneiras escapar da pobreza e do
crime, como o Buscapé de "Cidade de Deus" ou o protagonista de "Querô".
Em relação a uma linhagem
do filme policial brasileiro,
"Tropa de Elite" é ao mesmo
tempo uma ruptura e uma continuidade. Apesar de se diferenciar por tomar como protagonista um policial, o filme de José Padilha não foge à tradição dos personagens marginalizados, impotentes em um
universo que não controlam e
em crise pela incompatibilidade entre o ofício e a necessidade de segurança e paz na vida
familiar.
Apesar de o Capitão Nascimento e o Bope serem a elite da
tropa, eles representam também uma minoria, um grupo
marginal dentro do universo
muito mais amplo da Polícia
Militar e do aparato estatal como um todo.
Mas todas essas contradições são frutos do "sistema",
explica a narração do Capitão,
desfiando um antielitismo rasteiro que é um dos principais
responsáveis pela grande empatia do filme.
Policial do Bope não tem carro importado nem casa com
piscina. "Faca na caveira e nada
na carteira", debocha um PM
quando os "homens de preto"
aparecem para salvar o dia.
Lógico, afinal de contas, rico
não presta, sejam os oficiais e
políticos corruptos ou os alienados filhinhos de papai. E os
pobres? Quem mandou morar
em favela cheia de bandido? Se
o favelado é inocente, basta
trancar a porta do barraco e se
proteger de bala perdida, porque o Bope só tortura quem
tem o rabo preso.
Um dado novo apresentado
por "Tropa de Elite" é justamente a eficiência. É com um
orgulho quase ufanista que
louvamos a melhor tropa do
mundo. Para matar bandidos
em favela, com o brasileiro não
há quem possa!
De "Nascido para Matar" a
"Até o Limite da Honra", os artifícios do cinema de ação são
traduzidos com perfeição para
o cenário nacional. Mais do que
um Rambo, Wagner Moura
cria uma autêntica versão brasileira do policial John McLane de Bruce Willis, que, em
meio a crises familiares e profissionais, destila carisma e
violência.
Se os americanos sempre salvaram o mundo dos terroristas
europeus ou árabes, pelo menos no Rio de Janeiro quem
manda é o Capitão Nascimento, como mostraram dezenas
de piadas que ainda circulam
na internet.
No retrato traçado por "Tropa de Elite", o Bope representa
a eficiência absoluta -o drama
do Capitão Nascimento é justamente encontrar seu substituto "perfeito"- e também a reserva moral da polícia e, conseqüentemente, do Estado.
Com a autoridade concedida
por justificativas econômicas
(o pertencimento à classe média responsável e trabalhadora), morais (a honestidade a toda prova) e técnicas (a superioridade indiscutível em seu ofício), a elite da tropa tem todos
os motivos para fazer o que
acha melhor, inclusive transgredindo as leis de um sistema
podre.
Os fins justificam os meios,
sobretudo se quem o faz é considerado autorizado para tal.
Como o personagem de Charles Bronson da série "Desejo de
Matar", torna-se lícito reunir
na mesma figura juiz, júri e
executor.
Apesar do tiro disparado na
nossa cara, o longa-metragem
de José Padilha, no final das
contas, é um alívio para as aflições da classe média honesta e
sofredora.
Após dezenas de filmes insistirem em tirar seu sono, atribuindo-lhe culpa ou preocupação, ela poderá enfim dormir em paz. Se seus privilégios são
defendidos ardorosamente por
"Meu Nome É Johnny", sua segurança é plenamente garantida por "Tropa de Elite". Fiquemos tranqüilos: enquanto o Capitão Nascimento vai merecidamente aproveitar o "happy
end" com a mulher e filhinho, o
Capitão Matias vai seguir aniquilando os malfeitores.
RAFAEL DE LUNA FREIRE é professor de preservação, restauração e políticas audiovisuais
no curso de cinema da Universidade Federal Fluminense e autor de "Navalha na Tela - Plínio
Marcos e o Cinema Brasileiro" (Tela Brasilis).
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