São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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GOL?

Eder Chiodetto


por Nelson de Oliveira

Bateu na trave, era só o que faltava, o pênalti bateu na trave, a onda sentada atrás do gol ergueu-se mas não rugiu, segurou o grito com os dentes, 60 mil cabeças resmungando vociferando, engasgadas com a trave atravessada na garganta, depois a bola subiu mais ou menos cinco metros e desceu nas mãos do goleiro, parece até que vive no mundo da lua presta atenção no que você está fazendo seu animal, escutei o Zagalo gritar pra mim, presta atenção, mundo da lua, o diabo, final do primeiro tempo e tudo ainda zero a zero, quando vi os pontas escapando cada um pra um lado recuei pra dar cobertura, a bola cruzou o meio de campo, ricocheteou na coxa do Amaral, na cabeça do centroavante deles, resvalou dançou rolou rasteira por entre as pernas do Dicão e morreu no meu pé direito, não dei três passos e já estava caído com o tornozelo em frangalhos, a bola lá na frente, o quarto-zagueiro adiantado enchendo o pé e mandando a redonda pra dentro da nossa área, cabeceia daqui cabeceia de lá o sol e o suor nos olhos, a torcida esfregando bandeiras no meu rosto, exigindo que eu ficasse em pé e fizesse alguma coisa, fazer o quê meu Deus se o juiz consultou o relógio e levou o apito à boca do jeito que só podia significar: "Todo mundo pro vestiário"?, na fila indiana pro chuveiro o Amaral encostou em mim e disse, vamos virar essa merda, eu gesticulei que sim, entrei embaixo da água fria e morri por três minutos, quando saí era outro Rodrigo, mais puro, menos desgastado com a torcida que não parava de xingar nossas oito faltas, os 13 passes malfeitos e é claro o pênalti que eu bati na trave, na saída do vestiário os repórteres tentaram me pegar, passei reto, ordens superiores, dez minutos atrás o Zagalo me torrando o saco, fica esperto Rodrigo se não você volta pro banco, não precisava isso, ameaça pra quê?, eu me sentia muito bem, renovado, pronto para recuperar o tempo perdido e a penca de bola fora, a galera ia ver só, mal soou o apito parti pra cima do meia-direita deles, roubei a pelota na manha, dois pra cá dois pra lá, lancei para o Zico que já entrava na grande área, a multidão vibrou com o passe perfeito, o zagueiro travou o Zico por trás e a bola rolou limpa na minha direção, vi o Altair se jogar pra cima do lateral só pra me deixar livre, não titubeei nem pedi pra falar com o gerente, enfiei o pé e o tiro saiu certeiro, no ângulo, o goleirão ainda tentou mas quem disse que viu alguma coisa?, atravessou a rede, sobrevoou a torcida uniformizada, as câmeras de TV, tirou tinta do mastro no topo do estádio e desapareceu do outro lado, não deu nem pra comemorar o gol, o sol bem nas nossas fuças, Zico e Altair protegeram os olhos com a mão e procuraram nos arredores, Tonico já chegou reclamando, cacete que merda, mais de vinte alpendres na rua e foi cair justo no do Onofre, fiquei puto da vida porque o Zagalo ia me comer a alma, andamos desanimados até a esquina, o asfalto derretido fritando a sola dos pés, ninguém se animava a pular a mureta, atravessar o jardim e pegar a bola que tinha caído quase em frente à porta, o Zico sentou embaixo da paineira em flor, o Altair e o Tonico tiraram a camisa porque o calor estava de matar e deitaram na calçada, deitaram bem rente ao muro pra aproveitar a sombra, eu sentei no meio-fio e enfiei a cabeça entre os joelhos, o resto do pessoal foi chegando aos poucos, ninguém estava nem um pouco a fim de tocar a campainha, bater palma, pedir a bola de volta, esse velho é pior que joelhada no saco o Dicão disse, todo mundo estava de acordo que quem chutou a bola na varanda do velho é que tinha que ir até lá buscar, eu não tirei a cabeça do buraco em que havia me escondido, que sinuca, daí a pouco o sino da igreja bateria seis horas e eu é claro que teria que voltar pra casa, pegar a bicicleta e ir esperar minha irmã na saída da escola, a maldita bola tinha que me aprontar essa, Zagalo deu dois tapinhas nas minhas costas e me mandou ir logo buscar a pelota porque ainda tinha muito tempo de jogo pela frente, eu não tive coragem de fazer corpo mole, cocei a barriga e fui, diferente das outras vezes o portão estava aberto, andei o mais quieto possível, peguei a bola que estava embaixo do banco de madeira bem ao lado da porta, quando já estava saindo de mansinho, batata, a porta se abriu e o velhote apareceu, quem é?, que foi?, parei no meio do caminho puto da vida porque toda vez que a bola caía nesse maldito jardim era sempre a mesma história, sou eu seu Onofre, respondi tentando disfarçar o mau humor, Rodrigo, é você?, que foi que houve?, a bola, eu disse mostrando a bola, ah a bola, ele gemeu endireitando os óculos engordurados de tanto que ele os ajeitava segurando as lentes com a ponta dos dedos, a bola, vocês estão jogando?, estamos, mas já está quase no fim, ele escancarou a porta e trouxe seu corpão preto pra perto de mim, é?, e quem tá ganhando?, olhou por cima do meu ombro à procura dos outros moleques, por enquanto tá um a zero pra gente, passou por mim serelepe, um a zero, muito bom, muito bom, gol de quem?, fui no seu encalço, gol meu, seu? que maravilha, passei por ele e pelo portão aberto, a bola embaixo do braço e a cara de "que é que eu posso fazer?" quando o Dicão pôs as mãos na cintura, o velhote no meu encalço, ué cadê as traves? não tô vendo nada aqui onde é que vocês estão jogando?, Zagalo pegou a bola de mim e foi andando em direção à esquina, hein? onde é que vocês estão jogando?, logo ali em frente à farmácia, eu respondi, a turma toda já estava voltando pra lá, eu seguia logo atrás, seu Onofre colado em mim, tentamos recomeçar a partida duas vezes mas houve certa confusão, deu bobeira geral, tinha gente querendo anular meu gol dizendo que o chute tinha sido alto demais, o forrobodó estava armado porque ninguém se lembrava mais do que é que tinha acontecido antes da bola sumir, quando finalmente ficou acertado que o jogo estava um a zero pro nosso time nós recomeçamos, o estádio mais uma vez se encheu de torcedores e as câmeras de TV voltaram a transmitir o clássico pra todo o país, seu Onofre não largou do nosso pé, no início ficou meio de escanteio, do lado da lata de óleo que servia de trave, quando a partida começou a pegar fogo seu Onofre arriscou meter o bico numa bola sem dono que sobrou na sua frente, o Zico fez cara feia mas ninguém disse nada, quem é que ia ser filho da mãe de falar um desaforo que fosse ao seu Onofre?, o tempo escapava por entre as pernas e o time adversário queria mesmo era empatar o jogo e levar a disputa pra prorrogação, o calor estava cada vez pior e seu Onofre andava de lá pra cá, rindo feito criança, entrevado até o último fio de cabelo e louco pra que um passe errado acabasse novamente nos seus pés, a gente tomava cuidado pra não deixar que isso acontecesse mas já sabendo de antemão que era só questão de tempo, logo logo o velhote estaria aí na lateral direita, bufando feito porco, ou lá no meio do campo, passando mal mas feliz por fazer papel de bobo no meio da meninada.

Nelson de Oliveira é escritor, autor de, entre outros, "O Filho do Crucificado" (Ateliê).

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