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+ memória
A CONSCIÊNCIA DA HISTÓRIA
Aluno de Heidegger, o alemão Hans-Georg Gadamer, morto no último dia 14 aos
102 anos, deu novos rumos à filosofia ao apontar os limites da metafísica
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Ernildo Stein
especial para a Folha
O filósofo Hans-Georg Gadamer,
que ficou conhecido como o
autor de "Verdade e Método
-Esboços de uma Hermenêutica Filosófica", morreu aos 102 anos de
idade, no dia 14 de março, 42 anos após a
publicação de sua obra-prima. O subtítulo do livro não agradou ao editor por
ser pouco inspirado, teria que ser precedido pelo título propriamente dito:
"Compreender e Acontecer". Depois se
encontrou o título que faria fortuna,
"Verdade e Método" (publicado no Brasil pela editora Vozes).
Durante décadas, a obra concentraria a
discussão filosófica na Alemanha. Ela
primeiramente foi recebida como uma
contraposição às ciências do espírito que
interpretaram mal a palavra "compreender" como método. O livro tinha por objetivo apresentar o compreender do intérprete como fazendo parte de um
acontecer que decorre do próprio texto
que precisa de interpretação.
O que estava em jogo era o fato de que
as ciências históricas do espírito tinham
estremecido a confiança da filosofia numa razão que perpassa a história. Gadamer tinha compreendido a nova tematização do "tempo" em "Ser e Tempo"
(1927), de Heidegger: se o tempo é o horizonte de toda compreensão, todas as
teorias devem converter-se inelutavelmente em formações históricas, e isso
afetara o núcleo da razão.
Gadamer percebera, pelo seu estudo
dos gregos, da filosofia clássica alemã e
da fenomenologia, que a tradição não
podia mais se apoiar, num sentido filosófico relevante, nas interpretações metafísicas da razão. O diagnóstico da perda da possibilidade de um compromisso
possível de nossas orientações fundamentais para a vida numa tal tradição leva Gadamer a introduzir a perspectiva
hermenêutica.
Temos assim, segundo o filósofo, para
substituir nosso apoio na metafísica, a
perspectiva de os próprios participantes
se empenharem na apropriação viva de
tradições que os determinam. O ser humano esclarecido só tinha, como participante da tradição, uma interpretação das
próprias condições históricas que, vindas da tradição, o determinam.
É assim que Gadamer se volta para o
trabalho de encontrar o caminho para a
consciência histórica, numa apropriação
da tradição que preserve para esta a força
do compromisso. Esse caminho a hermenêutica filosófica explora na crítica da
falsa autocompreensão metodológica
das ciências do espírito. O filósofo pretende salvar a substância da tradição por
meio de uma apropriação hermenêutica.
É assim que a filosofia hermenêutica de
Gadamer encontra na força civilizatória
da tradição a autoridade de uma razão
diluída do ponto de vista da história efetual. Gadamer, portanto, não traz de volta a metafísica nem mesmo uma ontologia salvadora; o que lhe importa é mostrar como a razão deve ser recuperada na
historicidade do sentido, e essa tarefa se
constitui na autocompreensão que o ser
humano alcança como participante e intérprete da tradição histórica. Se nós formos limitar a indicação dos motivos determinantes que estão presentes num tal
estilo de pensamento, poderíamos encontrar as seguintes etapas: o diálogo e a
dialética em Platão, a hermenêutica e o
diálogo, a arte como paradigma da experiência hermenêutica, o estabelecimento
das tarefas de uma hermenêutica filosófica e a universalidade da experiência
hermenêutica e, por fim, a aplicação como momento do compreender, a hermenêutica como filosofia prática.
Gadamer afirma, na introdução de seu
livro, o seguinte: "As análises que seguem começam (por isso) como uma
crítica da experiência estética, para defender a experiência de verdade que nos
é dada pela obra de arte, contra a teoria
estética que se deixa estreitar pelo conceito de verdade da ciência. As análises,
entretanto, não param na justificação da
verdade da arte. Elas procuram antes desenvolver, desde esse ponto de partida,
um conceito de conhecimento e de verdade que corresponde ao todo de nossa
experiência hermenêutica. Assim como
temos que nos haver, na experiência da
arte, com verdades que ultrapassam basicamente a esfera do conhecimento metódico, do mesmo modo algo semelhante vale para o todo das ciências do espírito, nas quais nossa tradição histórica é
transformada também em objeto da pesquisa, em todas as suas formas, mas ao
mesmo tempo ela mesma passa a falar
em sua verdade. A experiência da tradição histórica ultrapassa fundamentalmente aquilo que nela é pesquisável. Ela
não apenas é verdadeira e não-verdadeira, no sentido sobre o qual decide a crítica histórica -ela medeia constantemente a verdade na qual importa tomar parte".
Portanto "Verdade e Método" fala-nos
de um acontecer da verdade no qual já
sempre estamos embarcados pela tradição. Gadamer vê a possibilidade de explicitar fenomenologicamente esse
acontecer em três esferas da tradição: o
acontecer na obra de arte, o acontecer na
história e o acontecer na linguagem. A
hermenêutica que cuida dessa verdade
não se submete a regras metódicas das
ciências humanas, por isso ela é chamada de hermenêutica filosófica. É desse
modo que Gadamer inaugura um lugar
para a atividade da razão, fora das disciplinas da filosofia clássica e num contexto em que a metafísica foi superada.
Mas, apesar de a hermenêutica filosófica desenvolver-se numa perspectiva crítica da metafísica, ela apresenta uma
pretensão de universalidade. Porém tal
universalidade assume uma forma não
dogmática, restando-lhe, portanto, uma
universalidade que se move muito próxima da universalidade da crítica. Jürgen
Habermas foi um dos primeiros a serem
tocados pela pretensão de universalidade da hermenêutica.
Ele reconhece-lhe assim algumas características importantes: a) a hermenêutica é capaz de descrever as estruturas da reconstituição da comunicação
perturbada; b) a hermenêutica está necessariamente referida à práxis; c) a hermenêutica destrói a auto-suficiência das
ciências do espírito assim como em geral
elas se apresentam; d) a hermenêutica
tem importância para as ciências sociais,
na medida em que demonstra que o domínio objetivo delas está pré-estruturado pela tradição e que elas mesmas, bem
como o sujeito que compreende, têm
seu lugar histórico determinado; e) a
consciência hermenêutica atinge, fere e
revela os limites da auto-suficiência das
ciências naturais, ainda que não possa
questionar a metodologia de que elas fazem uso; f) finalmente, hoje uma esfera
de interpretação alcançou atualidade social e exige, como nenhuma outra, a
consciência hermenêutica, a saber, a tradução de informações científicas relevantes para a linguagem do mundo da
vida social.
Ainda que as observações de Habermas reconheçam aspectos da universalidade da hermenêutica filosófica, ele o
faz, em contraste, com a pretensão de
universalidade da crítica com a qual ele
pretende atingir campos onde a hermenêutica filosófica não saberia trabalhar.
Não é só por parte de Habermas que se
ouvem essas críticas à hermenêutica filosófica, ela também é objeto de crítica da
filosofia analítica. Esta vê na historicidade da linguagem e na pré-compreensão
como condição de todo discurso uma
falta de recursos para examinar pretensões de validade dos textos que são interpretados ("Tugendhat").
Na medida em que a hermenêutica filosófica trabalha com o sentido, a analítica reduz a linguagem à unidade mínima que é o significado. Mas espíritos
mais conciliadores se contentam em
afirmar que a hermenêutica sem a filosofia analítica é cega e a filosofia analítica sem a hermenêutica é vazia.
Virada hermenêutica
Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e definitiva: uma coisa
é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como princípio, e outra coisa
bem diferente é inserir a interpretação
num contexto -ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da tradição na história do ser- em
que interpretar permite ser compreendido progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta. E, de
outro lado, a hermenêutica filosófica nos
ensina que o ser não pode ser compreendido em sua totalidade, não podendo, assim, haver uma pretensão de totalidade
da interpretação.
O filósofo produziu realmente um virada hermenêutica do texto para a autocompreensão do intérprete que como tal
autocompreensão somente se forma na
interpretação, não sendo, portanto, possível descrever o interpretar como produção de um sujeito soberano.
Para encerrar essas considerações,
convém ouvir o filósofo falando de sua
talvez mais surpreendente afirmação:
"Ser que pode ser compreendido é linguagem".
"É assim que sempre me esforcei, de
minha parte, para guardar para o espírito o limite imposto a toda experiência
hermenêutica do sentido. Quando eu escrevia: "O ser acessível à compreensão é
linguagem", importava ver, nessa fórmula, que o que é não pode jamais ser compreendido em sua totalidade. Em tudo o
que uma linguagem desencadeia consigo
mesma, ela remete sempre para além do
enunciado como tal."
Ernildo Stein é professor de filosofia na Pontifícia
Universidade Católica (PUC-RS) e autor de "Compreensão e Finitude" e "Epistemologia e Crítica da Modernidade" (ed. Unijuí), entre outros.
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