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Ponto de fuga
Orazio e Artemisia
Jorge Coli
especial para a Folha
Há pouco menos de cem anos, Roberto Longhi, num
estudo, afirmava os Gentileschi, pai e filha, como pintores maiores do século 17. Só agora, porém, uma exposição reúne um conjunto muito amplo de obras dos dois
artistas. Ela foi apresentada primeiro em Roma e hoje se
encontra no Metropolitan Museum de Nova York.
Alguns quadros, conhecidos e admirados, como a
"Tocadora de Alaúde", da National Gallery de Washington, pelo pai, ou a "Judite", do palácio Pitti, em Florença, pela filha, sempre foram testemunhos da mais
elevada arte. O surpreendente, na mostra atual, é que
essa elevação não decai nunca. A sequência das 80 e tantas telas, quase sempre de formato amplo, instauram
um mundo intrincado, de um ponto de vista plástico e
intelectual. Os quadros demonstram enérgica clareza,
que depende, no entanto, de uma pintura delicada e
complexa.
Orazio (1563-1639) encontrou sua verdadeira força
criadora ao descobrir, por volta de 1600, o impacto da
obra de Caravaggio. Por isso, às vezes, ele é apresentado
sumariamente como um "seguidor de Caravaggio". Porém Orazio consegue uma síntese singular, espécie de
quadratura do círculo, onde integra contrários: Caravaggio e Rafael, serenidade e firmeza, presença corpórea e abstração formal, força da imagem e nuanças etéreas. Tudo isso é mergulhado numa luz poética que,
Longhi assinala, preparou a chegada de Vermeer.
Orazio recusa o claro-escuro dramático, inventado
por Caravaggio. Ele o absorve na serenidade de um novo classicismo.
Sexo frágil - Artemisia (1593-1652) foi formada pelo
pai e atingiu uma posição muito alta na história das artes. Um escrito do tempo refere-se a ela como "famosíssima pintora" e "miraculosa na arte da pintura". Há
uma paradoxal dificuldade para compreender Artemisia hoje. Era mulher. Aos 17 anos, foi estuprada por um
auxiliar de seu pai, Agostino Tassi.
Não temeu enfrentar um processo, que condenou
Tassi por seu crime. Trabalhou para as cortes mais ilustres. Foi amiga de Galileu.
Essa vida, única e dramática, torna Artemisia fascinante para o público atual, como ocorre também com
Camille Claudel. Mas Artemisia não deixou uma obra
incipiente e fragmentária. Sua pintura, completa, plena,
vive acima das contingências biográficas. É inegável,
porém, que, nela, os harmoniosos procedimentos picturais, aprendidos com o pai, viram instrumentos de
uma violência brutal. Orazio lhe transmitira a prática,
instaurada por Caravaggio, em trabalhar a partir de
modelos, homens e mulheres, observados muitas vezes
em sua nudez. Isso confere ao quadros uma verdade física que Artemisia emprega para expor uma verdadeira
guerra dos sexos, suja de sangue que escorre e espirra.
Vingança - Artemisia pinta, repetidas vezes, cenas em
que mulheres punem os homens: Judite degola Holofernes, Sisera martela um longo prego na cabeça de Jael.
Representa muitas vítimas femininas do desejo sexual:
o estupro de Lucrécia, Davi e Betsabé, Suzana e os velhos, ninfas e sátiros. Retomou, insistente, o tema da pecadora Madalena. Não são assuntos originais, bem ao
contrário. Mas nunca pincel masculino os tornou tão
frequentes e tão intensos.
Serpente - A exposição "Artemisia e Orazio Gentileschi" não traz somente felicidade para os olhos. Pelos estudos que estimulou, permitiu um avanço considerável
no conhecimento dos dois artistas. Vários pontos ainda
são discutidos. O mais intrigante centra-se em uma tela
representando a morte de Cleópatra, um nu cujo impacto carnal possui algo de assustador. O catálogo traz
dois textos divergentes; os especialistas não se põem de
acordo se o autor seria o pai ou a filha.
Trocadilho - A pintora foi celebrada em escritos que
separavam as sílabas do seu nome: "Arte mi sia". Que a
arte seja minha.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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