São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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Ponto de fuga

Orazio e Artemisia

Jorge Coli
especial para a Folha

Há pouco menos de cem anos, Roberto Longhi, num estudo, afirmava os Gentileschi, pai e filha, como pintores maiores do século 17. Só agora, porém, uma exposição reúne um conjunto muito amplo de obras dos dois artistas. Ela foi apresentada primeiro em Roma e hoje se encontra no Metropolitan Museum de Nova York.
Alguns quadros, conhecidos e admirados, como a "Tocadora de Alaúde", da National Gallery de Washington, pelo pai, ou a "Judite", do palácio Pitti, em Florença, pela filha, sempre foram testemunhos da mais elevada arte. O surpreendente, na mostra atual, é que essa elevação não decai nunca. A sequência das 80 e tantas telas, quase sempre de formato amplo, instauram um mundo intrincado, de um ponto de vista plástico e intelectual. Os quadros demonstram enérgica clareza, que depende, no entanto, de uma pintura delicada e complexa.
Orazio (1563-1639) encontrou sua verdadeira força criadora ao descobrir, por volta de 1600, o impacto da obra de Caravaggio. Por isso, às vezes, ele é apresentado sumariamente como um "seguidor de Caravaggio". Porém Orazio consegue uma síntese singular, espécie de quadratura do círculo, onde integra contrários: Caravaggio e Rafael, serenidade e firmeza, presença corpórea e abstração formal, força da imagem e nuanças etéreas. Tudo isso é mergulhado numa luz poética que, Longhi assinala, preparou a chegada de Vermeer.
Orazio recusa o claro-escuro dramático, inventado por Caravaggio. Ele o absorve na serenidade de um novo classicismo.
Sexo frágil - Artemisia (1593-1652) foi formada pelo pai e atingiu uma posição muito alta na história das artes. Um escrito do tempo refere-se a ela como "famosíssima pintora" e "miraculosa na arte da pintura". Há uma paradoxal dificuldade para compreender Artemisia hoje. Era mulher. Aos 17 anos, foi estuprada por um auxiliar de seu pai, Agostino Tassi.
Não temeu enfrentar um processo, que condenou Tassi por seu crime. Trabalhou para as cortes mais ilustres. Foi amiga de Galileu.
Essa vida, única e dramática, torna Artemisia fascinante para o público atual, como ocorre também com Camille Claudel. Mas Artemisia não deixou uma obra incipiente e fragmentária. Sua pintura, completa, plena, vive acima das contingências biográficas. É inegável, porém, que, nela, os harmoniosos procedimentos picturais, aprendidos com o pai, viram instrumentos de uma violência brutal. Orazio lhe transmitira a prática, instaurada por Caravaggio, em trabalhar a partir de modelos, homens e mulheres, observados muitas vezes em sua nudez. Isso confere ao quadros uma verdade física que Artemisia emprega para expor uma verdadeira guerra dos sexos, suja de sangue que escorre e espirra.
Vingança - Artemisia pinta, repetidas vezes, cenas em que mulheres punem os homens: Judite degola Holofernes, Sisera martela um longo prego na cabeça de Jael. Representa muitas vítimas femininas do desejo sexual: o estupro de Lucrécia, Davi e Betsabé, Suzana e os velhos, ninfas e sátiros. Retomou, insistente, o tema da pecadora Madalena. Não são assuntos originais, bem ao contrário. Mas nunca pincel masculino os tornou tão frequentes e tão intensos.
Serpente - A exposição "Artemisia e Orazio Gentileschi" não traz somente felicidade para os olhos. Pelos estudos que estimulou, permitiu um avanço considerável no conhecimento dos dois artistas. Vários pontos ainda são discutidos. O mais intrigante centra-se em uma tela representando a morte de Cleópatra, um nu cujo impacto carnal possui algo de assustador. O catálogo traz dois textos divergentes; os especialistas não se põem de acordo se o autor seria o pai ou a filha.
Trocadilho - A pintora foi celebrada em escritos que separavam as sílabas do seu nome: "Arte mi sia". Que a arte seja minha.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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