São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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Quatro novos estudos lançados no Brasil voltam a colocar em evidência o papel dos pensadores como críticos e formuladores de propostas para a sociedade contemporânea

O contra-ataque DOS INTELECTUAIS

JORGE GRESPAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diante da imensa crise contemporânea, que teima em continuar e em se alastrar para todas as esferas da sociabilidade, está sendo novamente convocado para opinar e intervir um personagem que andava meio esquecido: o intelectual. Mas agora se exigem dele novas habilidades, compatíveis com os novos desafios e problemas a enfrentar. Quais são, exatamente, é justo o tema do debate que se reaviva, passando pelo papel atual da universidade e até pela reforma do ensino superior proposta pelo presente governo.
Nesse contexto, chama a atenção um conjunto de livros recentemente publicados. Embora de caráter muito distinto, com abordagens e opiniões muitas vezes divergentes, eles têm em comum a recusa terminante da morte do intelectual, decretada não faz muito tempo por alguns apressados.
Mas quem poderia hoje ser chamado de "intelectual" e qual é o espaço de sua atuação? Para responder a tais perguntas é preciso interrogar o passado e depois propor um diagnóstico das transformações operadas pelo presente, o que também é feito, em medidas diferentes, por todos os autores considerados.
O primeiro deles é Roberto Barbato Jr., que publica sua tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) -"Missionários de uma Utopia Nacional-Popular". Esta pode muito bem servir de leitura preliminar às demais, porque examina uma situação histórica exemplar, a atuação dos intelectuais modernistas de São Paulo no Departamento de Cultura, entre 1935 e 1938.

Ideal de nação
É nesse momento estratégico que se reuniram grandes figuras da cena cultural paulistana em torno da liderança de Mário de Andrade, buscando fugir do tradicional conceito de cultura das elites, excludente das manifestações populares, e realizar assim o ideal de nação característico do seu modernismo.
Na história narrada e analisada argutamente por Barbato comparecem praticamente todos os elementos clássicos do drama do intelectual, em especial o da tensão insolúvel entre a dimensão política da intervenção cultural e a autonomia crítica diante dos interesses particulares e políticos que define o próprio conceito de intelectual desde pelo menos o final do século 19.
Com algumas variações, esse tema permanece nas considerações que integram o segundo livro em questão -"O Papel do Intelectual Hoje", reunindo as contribuições dos vários participantes de um seminário internacional realizado sobre o assunto no Rio de Janeiro, em 2003. São ao todo 15 ensaios, em geral de muito bom nível e dos quais seria possível destacar o de Augusto Santos Silva e o de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, pela clareza com que expõem as novas condições antepostas à atuação do intelectual.
Há no livro como um todo um viés talvez excessivamente literário, que reduz a reflexão principalmente à figura do escritor. Também predominam questionamentos perpassados por evidente influência do pós-modernismo -crítica aos padrões universais e totalizadores, crítica à unidade homogeneizante dos consensos, crítica à crítica que fez época na universidade brasileira durante as décadas de 80 e 90, mas não dá bem conta de fatos mais recentes.

Retórica prolixa
De qualquer modo, os problemas principais estão lá e instigam novas reflexões.
Outro livro, "A República das Elites", de Agassiz Almeida, tem retórica distinta, errática e prolixa. Para além de afirmações bastante polêmicas que atravessam todo o texto, fica um problema maior, de fundo: a associação rígida feita por ele entre intelectual e elite, se válida do ponto de vista estritamente sociológico, simplifica muito a questão, elimina possíveis alternativas e, o que é bem pior, leva a uma crítica excessiva que beira ao obscurantismo.
Por outro lado, enfim, temos o livro de Joel Rufino dos Santos, "Épuras do Social". O título é estranho, mas o significado de "épura" é definido logo nas primeiras páginas, ganhando sentido ao longo do texto. Trata-se, em primeiro lugar, de um recurso metodológico inspirado na geometria, que rebate em um único plano uma figura tridimensional: no caso do social, busca-se um "plano anterior" ao das manifestações econômicas e políticas, o de um "campo ampliado" da cultura.
Mas, em segundo lugar, é preciso advertir que, para o autor, esse recurso é legítimo por corresponder à realidade social contemporânea, onde as relações mercantis e administrativas teriam adquirido a forma do espetáculo. Marcuse e Debord estão, de fato, entre os autores mais presentes na discussão de Joel Rufino.
De modo maduro e sincero, ele procura assim responder à questão enunciada no subtítulo do livro -"como podem os intelectuais trabalhar para os pobres?". A tarefa implica definir, antes de tudo, os termos dessa questão, e aqui se abre amplo espaço para discussões.
A dificuldade em reencontrar a função do intelectual seria, para Joel Rufino, praticamente insolúvel se se continuar a pensar no marco do conceito estrito de "intelectual orgânico", que deve refletir sobre a situação de uma sociedade de classes e propor olimpicamente saídas para suas contradições. A alternativa só aparece com o abandono desse horizonte, redefinindo o sujeito e o objeto da reflexão intelectual.

Estamento
Em vez de classe social, o autor recorre à categoria de ordem ou estamento para, com ela, determinar o novo objeto, que não seria o proletariado, mas o "pobre".
São bem discutíveis as considerações que tece em torno desses conceitos, associando a "classe" ao período histórico do "capitalismo de livre concorrência", anacrônica então para entender o período mais recente. De qualquer forma, ele consegue assim superar uma certa dicotomia sujeito-objeto, presente nas teorias tradicionais do intelectual como sujeito autônomo, que pensa de fora a situação dos grupos sociais "desclassificados" e como que os conduz a alternativas transformadoras.
É a própria ordem social que se pensa e elabora uma "cultura", reflexo da sua situação e dos padrões de conduta possíveis.
Daí decorre uma redefinição do intelectual e até uma tipologia conforme seus modos de atuação. Os intelectuais "propriamente ditos", definidos pelos critérios tradicionais como "orgânicos", devem "trabalhar", envolver-se, fundir-se com os intelectuais dos próprios pobres, resultando num terceiro tipo, que apenas surge no horizonte atual. É só um tanto decepcionante que isso deva ocorrer, segundo Joel Rufino, pela ação do Estado e seus organismos de cultura, por mais que ele insista em querer "ampliar" também o conceito destes últimos.

Definição imprecisa
Além disso, falta neste como nos demais livros comentados uma definição mais precisa do que seria a função "crítica" do intelectual. A todo momento ela é reivindicada, e é por ela, afinal, que se justifica o próprio retorno desse personagem.
Em algumas passagens de "Épuras do Social" bem como de ensaios de "O Papel do Intelectual Hoje" percebe-se a tentativa de uma tal definição de crítica. Mas nenhum destes textos chega a apresentá-la com o rigor conceitual necessário para que daí se possa chegar a novos desdobramentos. Podemos tomar quase todos estes escritos, portanto, como um bom ponto de partida.
Mas há ainda um bom caminho pela frente na discussão de um tema que, sem dúvida, está de volta com toda a força e urgência.


Jorge Grespan é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Revolução Francesa e Iluminismo" (ed. Contexto).

Missionários de uma Utopia Nacional-Popular
218 págs., R$ 30,00 de Roberto Barbato Jr. Ed. Annablume (r. padre Carvalho, 275, CEP 05427-100, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 212-6764).
O Papel do Intelectual Hoje
244 págs., R$ 35,00 Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes (orgs.). Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, campus Pampulha, CEP 31270-901, Belo Horizonte, MG, tel.0/xx/ 31/ 3499-4650)
A República das Elites
546 págs., R$ 50,00 de Agassiz Almeida. Ed. Bertrand Brasil (r. Argentina, 171, 1º andar, São Cristóvão, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2070).
Épuras do Social
256 págs., R$ 35,00 de Joel Rufino dos Santos. Ed. Global (r.Pirapitingüi, 111, CEP 01508-020, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3277-7999).



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