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NA CASA DO PATRÃO
APRESENTADORA QUE ALAVANCA A AUDIÊNCIA DO PROGRAMA DE SILVIO SANTOS AO FUNDIR ESPONTANEIDADE E
HUMILHAÇÃO, A MENINA MAISA REVELA A DUPLA FACE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
CYRUS AFSHAR
DA REDAÇÃO
Ela acaba de completar
sete anos, mas já tem
mais de três anos de
experiência profissional, e seu trabalho já é
conhecido em todo o país.
Maisa comanda um programa no SBT e, aos domingos, é
protagonista de um quadro em
que conversa longamente com
ninguém menos que seu patrão, Silvio Santos, e ajuda a
alavancar a audiência do restante da programação.
Mas, nas duas últimas semanas, o quadro dominical foi palco de cenas ao vivo de gritos e
choros da criança.
"A questão é saber quando
acaba o lúdico e o adorável e
começa a perversão e a monstruosidade dessa situação-mídia", provoca Ivana Bentes,
professora do programa de
pós-graduação da Escola de
Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Na entrevista concedida à
Folha, por e-mail, Bentes explica alguns dos mecanismos
de funcionamento da apropriação da imagem de novas celebridades, o comportamento do
público e a importância da internet para o processo de espetacularização.
PERGUNTA - O que está acontecendo com a menina Maisa é um caso
de exploração midiática?
IVANA BENTES - "Exploração midiática" é quase uma redundância. A expropriação/apropriação é base de funcionamento do próprio regime midiático em que nós, telespectadores, somos a matéria-prima
em diferentes sentidos.
Na busca de criar fatos midiáticos incessantemente, capturar nossa atenção e comprar
nosso tempo, a televisão convoca, explora e mobiliza nossos
afetos, nossa atenção.
O espectador é o primeiro
"explorado" pela publicidade,
pela ficção, pelas "atrações".
Somos nós que emprestamos
nosso tempo, nossa subjetividade e nosso imaginário para
criar valor na TV.
Ou seja, o que a mídia vende/explora não é a publicidade
-somos nós mesmos.
E, para isso, precisa minimamente que essa audiência se conecte, se deixe afetar por um
personagem, uma situação, que
crie hábitos e possa voltar
-criando um sentimento de
pertencimento a uma "comunidade imaginada".
Aí se chega a Maisa, a menina-prodígio do SBT, a "menina-monstro" como definiu ironicamente, mas com precisão, o
"Pânico na TV".
A garota é realmente adorável e "monstruosa" ao mesmo
tempo. Tem a dupla face da mídia atual, que incorpora e utiliza o mais "espontâneo", o íntimo, a gafe, o erro, o choro e todo
tipo de assujeitamento e humilhação como matéria altamente valorizada.
Isso sem abandonar a celebração do visível, da formalidade e da encenação.
Não é à toa que os vídeos de
Maisa estão no YouTube anunciem "pérolas de Maisa", gafes
de Maisa, micos de Maisa, choro de Maisa, tropeços etc.
A questão é saber onde acaba
o lúdico e o adorável e começa a
perversão e a monstruosidade
dessa situação-mídia.
Não se trata de julgar nem de
moralizar "este" caso, num momento em que o valor de "exposição" da vida, da intimidade,
da subjetividade na TV, na internet ou em qualquer outra
mídia é um valor em si.
A visibilidade é um bem altamente valorizado e disputado
-"naturalizado". É preciso justamente desnaturalizar esse
novo regime midiático que não
para de testar os limites do tolerável e do aceitável.
PERGUNTA - Nesse contexto (de exploração midiática), qual é o papel
da mãe? E o do apresentador?
BENTES - Não é difícil entender
o seu nível de satisfação/excitação do pai e da mãe da menina
(satisfação simbólica e real,
com sua galinha dos ovos de ouro mirim).
E o apresentador/dono da
emissora cumpre o mesmo papel de outros homens de negócio de TVs abertas que vendem
"produtos" tão ou mais discutíveis e monstruosos: homofobia, intolerância religiosa, espetáculos de descarrego e expulsão de demônios dos corpos,
preconceito racial, condenações morais, denuncismo, criminalização da pobreza e dos
pobres e toda uma pauta conservadora e moralista.
A questão que importa é saber qual o papel da "comunidade" de telespectadores e da sociedade diante desse quadro.
PERGUNTA - Como tem sido e como
deveria ser o tratamento dado pela
mídia neste caso?
BENTES - A televisão não tem
programa de debate e de discussão do seu próprio conteúdo. A TV não dá direito de resposta, o que é escandaloso.
Confunde audiência com legitimidade social e qualidade.
Daí que não vi na mídia (com
raras exceções, como a coluna
de Bia Abramo do dia 17/5, na
Folha) nenhuma discussão sobre os limites e constrangimentos de colocar uma criança de
seis anos no horário nobre de
domingo falando de "pum", gases, bunda, meleca.
E, ao mesmo tempo, tendo
que responder sobre assuntos
extremamente complexos, como outras celebridades televisivas, profissões, afetos, casamento, Deus e infidelidade.
E sempre constrangida por
Silvio Santos até o limite do
embaraço, do choro ou da mudez com reprimendas, ameaças, provocações.
PERGUNTA - Pessoas antes quase
desconhecidas são alçadas rapidamente à condição de celebridades
por conta dos milhões de acessos,
casos da escocesa Susan Boyle, de
Cris Nicolotti e de Maisa. Qual a importância hoje da internet no processo de criação das celebridades?
BENTES - "Celebridade" talvez
seja um nome antigo (coisa do
século passado, de mídias "modernas", como cinema e TV)
para descrever os processos da
visibilidade contemporânea.
A internet e o YouTube criaram um novo público, pós-televisivo, um consumidor-produtor superativo, que clica tudo e
que vê tudo -sem dúvida é uma
nova força.
O YouTube é genial porque é
o esgoto público das imagens,
onde é possível experimentar o
que há de mais potente e monstruoso (no sentido positivo e
negativo dos excessos e das exceções) na multidão de usuários, sem mediação. Sem o "patrão", como Silvio Santos se
apresenta para a menina Maisa
no SBT, num dos quadros.
PERGUNTA - Quando procuramos
vídeos da artista mirim no YouTube,
o site remete a entradas como "Maisa chorando", "Maisa chora" e
"Maisa peidando", a partir das buscas mais realizadas. Os fãs sentem
prazer em ver celebridades em situações constrangedoras?
BENTES - Trata-se de um fenômeno bem mais amplo e disseminado de midiatizacão, comercialização da intimidade e
da "visibilidade".
A partir do momento em que
ruiu a barreira entre intimidade e publicidade, em que se esgarçou o limite entre público e
privado, o que poderia ser constrangedor?
Maisa chorando, Daniela
Ciccarelli transando na praia, a
cabeça de Saddam Hussein rolando, os exames de saúde da
ministra da Casa Civil, Dilma
Rousseff, em jornais assistidos
por milhares de pessoas?
Exibir a intimidade vem deixando de ser um constrangimento para se tornar um "valor". A intimidade na era da sua
visibilidade máxima e as tecnologias de exibição de si são
uma característica geral e uma
exigência do capitalismo contemporâneo.
PERGUNTA - O caso da construção
da ex-atriz Shirley Temple é paradigmático para entender a situação atual deste caso?
BENTES - Bem, o visual da
apresentadora mirim do SBT
parece inspirado nos vestidinhos de babados e cabelos cacheados da mais famosa menina-prodígio de Hollywood.
Mas é preciso lembrar que
Shirley Temple é um produto
da máquina fordista hollywoodiana, dos anos 1930 e 1940, de
um capitalismo disciplinar e
disciplinador em que a ideia de
"infância" e "criança" ainda estava bem delimitada e definida.
Hoje, quando foram desenvolvidos produtos midiáticos
para crianças de zero a um ano
-como os Teletubbies, que
aceleram os processos cognitivos enquanto ensinam a criança a desejar e a consumir-, a
comparação com Shirley Temple talvez não seja apropriada.
Pois o capitalismo contemporâneo tem necessidade de incluir e modular todos, desde o
ano zero e mesmo antes do nascimento.
O aprendizado se faz pela mídia -com o fim dos tempos
"mortos" da infância, de ócio e
lazer, em nome de uma hiperprodutividade infantil- e por
adestramento precoce, cujo
modelo visível Maisa encarna.
O assustador é que a subjetividade-Maisa é o modelo de
criança e de infância em via de
se universalizar.
São muitos os indícios: o assédio e crescimento da publicidade infantil, sem controle no
Brasil; a invasão de bichinhos e
desenhos animados em anúncios de cerveja, carros, criando
uma sensibilidade precoce e
formando consumidores futuros, a erotização do universo
infantil dissociada, mais tarde,
do abuso sexual por adultos e
da violência contra crianças.
Enfim, a garota-prodígio do
SBT aponta para antigas questões e novos limites, em torno
da intimidade, da visibilidade,
da infância.
Nesse sentido é uma menina-modelo, exemplar de uma série
de transformações.
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