São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009

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O CLONE BIZARRO

INSPIRADA EM SHIRLEY TEMPLE, A ESTRELA MIRIM DA HOLLYWOOD DOS ANOS 1930, APRESENTADORA MAISA PARECE NÃO ENTERNECER SEU PATRÃO MIDIÁTICO

Arquivo Michael Ochs/Getty Images
Shirley Temple, uma das mais populares celebridades mirins da história de Hollywood


SÉRGIO ALPENDRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dia, o comunicador Silvio Santos colocou fotos da princesinha Shirley Temple no camarim de Maisa e reforçou uma semelhança que poucos notariam, sem os cachinhos e os vestidos alegres impostos à menina.
Maisa não é tão parecida fisicamente com Shirley Temple. O programa Silvio Santos não tem nada a ver com as sofisticadas produções hollywoodianas da década de 1930. Assim como 2009 está muito distante de 1934, ano em que Temple despontou para o estrelato.
Tudo isso é bem óbvio. Neste caso, por que o experiente e astuto apresentador tentaria evocar, com sucesso, a representação da prodigiosa garota californiana se não fosse por uma tacanha exploração do espírito infantil? O que interessa é a tentativa de retomar o que já havia dado certo em outros tempos.
Silvio Santos se apropria de um ícone infantil para saciar o desejo do público por algo diferente, sem se preocupar com os efeitos dessa apropriação na personalidade e no desenvolvimento de Maisa. O que importa é o faturamento, o barulho que as travessuras da menina causam na mídia, suas aparições no [programa de TV] CQC e outros medidores do baixo nível da televisão brasileira. Contudo, a assimilação proposta por Silvio Santos não vai tão longe quanto o esperado: como Maisa, Shirley Temple tinha o rostinho de anjo, que tornava cada atitude de adulta ainda mais surpreendente.
Sua esperteza e charme incomuns eram destacados em cena, e sua fragilidade era escancarada em momentos estratégicos, para lembrar que era uma criança que estava à nossa frente.
Porém, Maisa tem a direção espalhafatosa de seu companheiro de palco, Silvio Santos, enquanto Shirley Temple, apesar de ter feito vários filmes com cineastas de araque, foi dirigida, ainda criança, por artesãos talentosos.

O rígido John Ford
Foi gente como Henry Hathaway ("Agora e Sempre", de 1934), David Butler ("Olhos Encantados", de 1934; "A Mascote do Regimento" e "A Pequena Rebelde", ambos de 1935; "O Anjo do Farol", de 1936), William Seiter ("Princesinha das Ruas", de 1936) e Irving Cummings (A "Pequena Órfã", de 1935; "Miss Broadway", de 1938), além de mestres como Allan Dwan (em "Heidi", de 1937; "Sonho de Moça", de 1938; "Mocidade", de 1940) e, principalmente, John Ford, um daqueles artistas que transcendem os limites da arte com um domínio sem igual da linguagem ("A Queridinha do Vovô", de 1937).
Suas lembranças do trabalho com Ford são curiosas e instrutivas. Em sua autobiografia ["Child Star", Criança Estrela], ela se queixou de que o diretor, num primeiro momento, não pusesse fé no poder de atuação da pequena atriz e lhe desse instruções detalhadas.
Enquanto para todos os outros [integrantes] do elenco apenas indicava um caminho, deixando que seguissem e acrescentassem sutilezas à atuação.
Mais adiante, percebendo a inteligência e o profissionalismo da garotinha, baixou a guarda e se enterneceu como um espectador comum diante de uma estrela.
O mesmo aconteceu com o ator Victor McLaglen, que inicialmente hostilizava a menina, para depois ser conquistado por sua doçura e carisma. Anos depois, Temple destacou que "A Queridinha do Vovô" foi o melhor filme de sua carreira.
A atriz que teve boa parte de sua infância perdida para o cinema elege justamente o filme que não a trata como uma estrela, mas que foi construído em torno das possibilidades da história.
Era a narrativa a principal atração [baseada numa história do escritor Rudyard Kipling, narra as aventuras de uma menina na Índia, onde o avô é oficial do Exército britânico]. Reveladora escolha de uma atriz acostumada a ser o centro das atenções nos filmes, em detrimento de qualquer outro aspecto cinematográfico. Se existia exploração na década de 1930 (e fica claro que havia), o que ocorre em 2009 se aproxima da crueldade pura e simples. E as diferenças de intenções e contextos são gritantes. Shirley Temple era capaz de interpretar uma criança mimada, mas havia espaço para que ela demonstrasse charme e inteligência.

Sem inocência
Conquistava todos ao seu redor e arrebatava os espectadores pelo coração. Maisa encanta pelas travessuras e pelos diversos momentos em que aparece em cena como "criança fazendo coisas de adulto". No programa não parece existir brechas para que ela seja mostrada como algo mais do que um clone bizarro.
Sua personalidade irrequieta é cutucada o tempo todo, mas existe sobretudo um esvaziamento de conteúdo e inocência, como se da criança só pudessem ser vistas a fragilidade e a inconstância, suscetíveis às manipulações e moldagens do adulto.
E o futuro de Maisa, como será? Que caminhos terá sua carreira sob as asas de um tutor que pode ser o maioral da comunicação, mas que pelo visto não tem condições de pensar no melhor para a garotinha?
E ela, que parece tão esperta, tão viva, teria condições de impor limites às doses cavalares de vulgaridade e manipulação a que é submetida? Assim como Shirley Temple conquistou o coração do rígido John Ford, teria Maisa condições de despertar sentimentos na pedra que o patrão parece ser?


SÉRGIO ALPENDRE é crítico da revista de cinema "Contracampo".


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