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O CLONE BIZARRO
INSPIRADA EM SHIRLEY TEMPLE, A ESTRELA MIRIM DA HOLLYWOOD DOS ANOS 1930, APRESENTADORA MAISA PARECE NÃO ENTERNECER SEU PATRÃO MIDIÁTICO
Arquivo Michael Ochs/Getty Images
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Shirley Temple, uma das mais populares celebridades mirins da história de Hollywood |
SÉRGIO ALPENDRE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um dia, o comunicador Silvio Santos
colocou fotos da
princesinha Shirley Temple no camarim de Maisa e reforçou
uma semelhança que poucos
notariam, sem os cachinhos e
os vestidos alegres impostos à
menina.
Maisa não é tão parecida fisicamente com Shirley Temple.
O programa Silvio Santos não
tem nada a ver com as sofisticadas produções hollywoodianas da década de 1930. Assim
como 2009 está muito distante
de 1934, ano em que Temple
despontou para o estrelato.
Tudo isso é bem óbvio. Neste
caso, por que o experiente e astuto apresentador tentaria
evocar, com sucesso, a representação da prodigiosa garota
californiana se não fosse por
uma tacanha exploração do espírito infantil?
O que interessa é a tentativa
de retomar o que já havia dado
certo em outros tempos.
Silvio Santos se apropria de
um ícone infantil para saciar o
desejo do público por algo diferente, sem se preocupar com os
efeitos dessa apropriação na
personalidade e no desenvolvimento de Maisa.
O que importa é o faturamento, o barulho que as travessuras da menina causam na mídia, suas aparições no [programa de TV] CQC e outros medidores do baixo nível da televisão brasileira.
Contudo, a assimilação proposta por Silvio Santos não vai
tão longe quanto o esperado:
como Maisa, Shirley Temple tinha o rostinho de anjo, que tornava cada atitude de adulta
ainda mais surpreendente.
Sua esperteza e charme incomuns eram destacados em cena, e sua fragilidade era escancarada em momentos estratégicos, para lembrar que era
uma criança que estava à nossa
frente.
Porém, Maisa tem a direção
espalhafatosa de seu companheiro de palco, Silvio Santos,
enquanto Shirley Temple, apesar de ter feito vários filmes
com cineastas de araque, foi dirigida, ainda criança, por artesãos talentosos.
O rígido John Ford
Foi gente como Henry Hathaway ("Agora e Sempre", de
1934), David Butler ("Olhos
Encantados", de 1934; "A Mascote do Regimento" e "A Pequena Rebelde", ambos de
1935; "O Anjo do Farol", de
1936), William Seiter ("Princesinha das Ruas", de 1936) e Irving Cummings (A "Pequena
Órfã", de 1935; "Miss Broadway", de 1938), além de mestres
como Allan Dwan (em "Heidi",
de 1937; "Sonho de Moça", de
1938; "Mocidade", de 1940) e,
principalmente, John Ford,
um daqueles artistas que transcendem os limites da arte com
um domínio sem igual da linguagem ("A Queridinha do Vovô", de 1937).
Suas lembranças do trabalho
com Ford são curiosas e instrutivas. Em sua autobiografia
["Child Star", Criança Estrela],
ela se queixou de que o diretor,
num primeiro momento, não
pusesse fé no poder de atuação
da pequena atriz e lhe desse
instruções detalhadas.
Enquanto para todos os outros [integrantes] do elenco
apenas indicava um caminho,
deixando que seguissem e
acrescentassem sutilezas à
atuação.
Mais adiante, percebendo a
inteligência e o profissionalismo da garotinha, baixou a guarda e se enterneceu como um espectador comum diante de
uma estrela.
O mesmo aconteceu com o
ator Victor McLaglen, que inicialmente hostilizava a menina, para depois ser conquistado
por sua doçura e carisma.
Anos depois, Temple destacou que "A Queridinha do Vovô" foi o melhor filme de sua
carreira.
A atriz que teve boa parte de
sua infância perdida para o cinema elege justamente o filme
que não a trata como uma estrela, mas que foi construído
em torno das possibilidades da
história.
Era a narrativa a principal
atração [baseada numa história
do escritor Rudyard Kipling,
narra as aventuras de uma menina na Índia, onde o avô é oficial do Exército britânico].
Reveladora escolha de uma
atriz acostumada a ser o centro
das atenções nos filmes, em detrimento de qualquer outro aspecto cinematográfico.
Se existia exploração na década de 1930 (e fica claro que
havia), o que ocorre em 2009 se
aproxima da crueldade pura e
simples. E as diferenças de intenções e contextos são gritantes. Shirley Temple era capaz
de interpretar uma criança mimada, mas havia espaço para
que ela demonstrasse charme e
inteligência.
Sem inocência
Conquistava todos ao seu redor e arrebatava os espectadores pelo coração. Maisa encanta pelas travessuras e pelos diversos momentos em que aparece em cena como "criança fazendo coisas de adulto".
No programa não parece
existir brechas para que ela seja
mostrada como algo mais do
que um clone bizarro.
Sua personalidade irrequieta
é cutucada o tempo todo, mas
existe sobretudo um esvaziamento de conteúdo e inocência, como se da criança só pudessem ser vistas a fragilidade e
a inconstância, suscetíveis às
manipulações e moldagens do
adulto.
E o futuro de Maisa, como será? Que caminhos terá sua carreira sob as asas de um tutor
que pode ser o maioral da comunicação, mas que pelo visto
não tem condições de pensar
no melhor para a garotinha?
E ela, que parece tão esperta,
tão viva, teria condições de impor limites às doses cavalares
de vulgaridade e manipulação a
que é submetida? Assim como
Shirley Temple conquistou o
coração do rígido John Ford,
teria Maisa condições de despertar sentimentos na pedra
que o patrão parece ser?
SÉRGIO ALPENDRE é crítico da revista de cinema "Contracampo".
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