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Reciclando ideias
Imagem da inovação como repentina e individual contrasta com a evolução dos saberes, que é gradual e coletiva
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Muitas pessoas
no mundo hoje,
especialmente
nos domínios
dos negócios e
da ciência, se dedicam à inovação. Pensam, lecionam e escrevem sobre as maneiras pelas
quais se pode estimular, medir
e gerir a inovação.
Como e por que a inovação
acontece, perguntam.
Por que existem lugares e
momentos históricos que parecem mais favoráveis do que outros à inovação?
Florença durante o Renascimento serve como exemplo ou
a Inglaterra nos estágios iniciais da Revolução Industrial
-quando as máquinas têxteis e
locomotivas a vapor e tantas
outras máquinas foram inventadas- ou o Vale do Silício
[EUA] na década de 1970.
Algumas pessoas acreditam
que a inovação possa ser encorajada por meio da criação de
centros de pesquisa, outras
preferem meditação, sessões
de discussão ou até mesmo
softwares que facilitam a geração de ideias.
Mas o que exatamente é inovação? Suspeito que a visão da
era do romantismo sobre a inovação continue a prevalecer
ainda hoje.
De acordo com ela, a inovação é trabalho de um gênio solitário, muitas vezes um professor distraído que carrega
uma ideia brilhante na cabeça
-aquilo que meu tio, um físico
que trabalhava no setor industrial, costumava chamar de
"onda cerebral".
Einstein, por exemplo, ou
Isaac Newton, que supostamente descobriu a gravidade
quando uma maçã caiu em sua
cabeça, ou, no mais famoso dos
exemplos, Arquimedes, que
saiu correndo nu pelas ruas de
Atenas gritando "eureca!".
No entanto existe uma visão
alternativa sobre a inovação, da
qual eu por acaso compartilho.
De acordo com essa segunda
visão, a inovação é gradual em
lugar de súbita e coletiva em
vez de individual.
Não existe uma oposição
acentuada entre tradição e inovação. É possível até mesmo
identificar tradições de inovação, sustentadas ao longo de
décadas, como no caso do Vale
do Silício, ou de séculos, como
nos campos da pintura e da escultura durante a Renascença
florentina.
Novos usos
Por isso, em lugar da metáfora da "onda cerebral", talvez
fosse mais esclarecedor usar
como metáfora a reciclagem, o
reaproveitamento ou o uso improvisado de materiais.
O caso da tecnologia serve
como exemplo.
Na metade do século 15, Johannes Gutenberg inventou as
máquinas de impressão. No entanto, prensas estavam em uso
na produção de vinho havia muito tempo na Renânia natal
de Gutenberg e em muitos outros lugares.
Sua brilhante ideia não surgiu do nada; na verdade, representou uma adaptação da prensa de vinho a uma nova função.
A invenção do telescópio por
Galileu [1564-1642], da mesma
forma, pode ser mais precisamente definida como reinvenção. Ele havia ouvido falar de
que alguém na Holanda teria
inventado um instrumento para fazer com que as estrelas parecessem maiores.
E, assim que obteve essa informação, imediatamente descobriu uma maneira de produzir instrumento semelhante
para seu uso.
A inovação nas ideias, por
exemplo em disciplinas acadêmicas, parece acontecer de maneira semelhante, pela proposição de analogias e adaptação
daquilo que já existe a novos
propósitos. Alguns historiadores falam em "deslocamento de
conceitos" de um campo intelectual a outro.
Por exemplo, a arqueologia
se tornou disciplina científica
no começo do século 19, quando as pessoas compreenderam
que os objetos encontrados em
escavações podiam ser datados
de acordo com sua profundidade na terra com os "estratos"
em que foram encontrados.
A linguística, outra nova disciplina que estava em desenvolvimento no começo do século 19, também precisou de
adaptação criativa.
Quando classificavam idiomas, alguns linguistas se deixaram inspirar pela metodologia
que Carl Linnaeus desenvolveu
para classificar plantas, enquanto outros seguiram o modelo de "anatomia comparativa" proposto pelo zoólogo
Georges Cuvier.
Uma vez mais, na metade do
século 19, Charles Darwin desenvolveu sua ideia de uma luta
pela existência entre as coisas
vivas e da sobrevivência dos
mais aptos depois de ler o trabalho de Thomas Malthus sobre população.
Ele adaptou o que Malthus
tinha a dizer sobre os seres humanos ao mundo dos animais e
das plantas.
No começo do século 20,
quando a antropologia se tornou uma disciplina científica,
ela era definida pelo método de
"trabalho de campo" no seio de
povos "primitivos". Mas a ideia
de trabalho de campo foi inspirada pela história natural, já
que os naturalistas se orgulhavam de observar diretamente
os animais e plantas em seus
habitats naturais.
Tradução
Em todos esses casos, seria
possível utilizar a expressão
"tomado de empréstimo", mas
metáfora melhor seria "tradução", que enfatiza o trabalho
que é preciso realizar quando
ideias se movimentam de um
lugar ou domínio a outro.
As novas disciplinas oferecem oportunidades especiais
para observação ou inovação, já
que os fundadores dessas disciplinas foram treinados em outros campos.
Por exemplo, os primeiros
professores de línguas e literaturas vernáculas foram treinados como estudiosos do grego e
do latim clássicos.
Um dos fundadores da sociologia, Émile Durkheim, estudou filosofia, e outro, Max Weber, era historiador.
Os primeiros antropólogos
foram recrutados de uma variedade de disciplinas, entre as
quais os estudos clássicos (James Frazer), geografia (Franz
Boas), medicina (W.H. Rivers),
biologia, psicologia e até mesmo geologia.
Alguns dos primeiros estudiosos do campo hoje conhecido como biologia molecular haviam estudado física, como
Francis Crick, ou química, como Max Perutz.
A inovação nas disciplinas
mais estabelecidas muitas vezes segue o mesmo caminho.
Um antigo colega meu, o biólogo John Maynard Smith
[1920-2004], estudou engenharia. Quando mudou de ramo, passou a observar o corpo
humano do ponto de vista de
um engenheiro, e isso permitia
que visse coisas que haviam escapado à atenção de biólogos
anteriores.
Analogias e metáforas parecem desempenhar papel essencial no pensamento, da física
(vide a ideia de "ondas", por
exemplo) à antropologia, na
qual culturas estrangeiras são
muitas vezes comparadas a livros que precisam ser lidos.
Essas analogias são fundamentais na construção daquilo
que o filósofo da ciência Thomas Kuhn [1922-96] costumava designar como "paradigmas" intelectuais.
Eu duvido um pouco que seja
possível fazer uma lista de regras para a inovação, porque os
inovadores muitas vezes quebram as regras em lugar de segui-las.
Tampouco estou certo de
que seja possível desenvolver
uma teoria da inovação.
Mas seria seguro afirmar que
analogias e adaptações têm posição central no processo de
inovação.
A reciclagem intelectual é tão
importante para a inovação
quanto a reciclagem de objetos
materiais o é para nossa sobrevivência no planeta.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar).
Tradução de Paulo Migliacci.
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