São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009 |
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+ livros O concreto armado
MARCOS SISCAR ESPECIAL PARA A FOLHA A o deparar-se com os novos livros de Décio Pignatari e Haroldo de Campos, o leitor terá razões para acreditar que está diante de uma cena testamentária, isto é, de dois autores célebres na história da poesia brasileira do século passado, cujos livros reforçam a marca que pretendem deixar na vida literária. Pignatari se dirige desta vez aos infantes; já Haroldo tem seus últimos poemas reunidos sob a égide do velho poeta que estampa o rastro de sua passagem na soleira dos milênios. "Bili com Limão Verde na Mão" fica a meio caminho entre o episódio de formação (as metamorfoses da adolescência) e a fantasia lúdica no estilo de "Alice", de Lewis Carrol, seu modelo explícito. É um texto desigual, que vai do monólogo interior para jogos verbais e visuais, com direito a um intermezzo de narrativa acumulativa. Interesse tardio O resultado, embora possa decepcionar o leitor de Pignatari, é apreciável, no conjunto, graças à ajuda do belíssimo trabalho de edição gráfica e de ilustração. Poderia soar curioso esse interesse tardio do autor pela literatura para crianças, não fosse o fato de que confirma um aspecto de sua trajetória, nisso distinto de seus companheiros de geração -que é a relativa facilidade com que tem passado da poesia para o romance ou para o teatro, além do ensaio e da tradução. Nesse sentido, a "Alice brasileira" de Pignatari não deixa de confirmar a heterogeneidade que o autor tem imprimido à sua obra. Haroldo de Campos (1929-2003), por sua vez, nos propõe o último brinde de sua exposição como poeta e intelectual, em "Entremilênios". Com textos reunidos e estabelecidos criteriosamente por sua viúva, Carmen de P. Arruda de Campos, o livro, "concebido na virada do milênio", inclui também fragmentos inspirados pela leitura da "Ilíada" e traduções de poemas relacionados com a "Odisseia". A organizadora lembra que, nos últimos anos, Haroldo vivia como um Odisseu que "tinha pressa, muita pressa". E o resultado é um consistente volume de mais de 200 páginas que se assemelha a um testamento poético, retomando e organizando as grandes vertentes de sua poesia: o interesse pelo elemento plástico, pelos acontecimentos políticos, pelas viagens, pela escrita épica, pela tradução. Se Haroldo "dispensa maiores apresentações ao leitor brasileiro", a reprodução, na orelha do livro, de um texto de Octavio Paz -seu tradicional espelho estrangeiro- não deixa de confirmar um dos traços salientes do volume, que é a autoexposição do autor como centro de interesse dos acontecimentos. Descontração A autorreferência física ou intelectual, a valorização do testemunho sobre lugares, pessoas e episódios públicos projetam sobre os poemas algo como um tom memorialístico, reforçado pela "descontração" da poesia de Haroldo. Esta já vinha da "musa militante" dos anos 1980 e de livros como "A Educação dos Cinco Sentidos" (Brasiliense) e "Crisantempo" (Perspectiva). Embora o poeta repita sua profissão de fé na "forma", esta deixa de constituir obsessão, e é o sujeito que transborda. O leitor de "Galáxias" (ed. 34) e de "A Máquina do Mundo Repensada" (Ateliê Editorial) pode se espantar com a gratuidade do corte do verso e com a banalidade da "circunstância", próxima da crônica, de uma certa narratividade que é um outro registro da poesia de Haroldo, e que não deixa de associar-se, oximoricamente, com uma impostação erudita e épica, algo bíblica. A junção do coloquial com o tom de "sagrado/furor", embora confirme indiretamente o "desespero" como motor da "esperança" ("a musa não se medusa:/contra o caos/faz música"), garante alguns dos melhores momentos do livro. O patriarca apresenta-se com o gládio em punho, ferindo o imediato e o contemporâneo com ira homérica sucedânea do heroísmo de vanguarda, em época pós-utópica, para a qual a associação mitológica e a metáfora lancinante são o medium do conhecimento histórico. A incansável operação do neologismo, da palavra rara, da paronomásia, dos jogos verbais, o acento nas delicadezas exóticas e plásticas, de cores e pedras preciosas, são a marca de uma poesia que, com o tempo, procurou alargar seu escopo, instalando-se em um espaço quase mítico. No enclave de "Entremilênios", o poeta faz de si mesmo o retrato daquele-que-disse, que legislou ("fa- / lei"), uma espécie de épico de nossa época -Odisseu e Homero ao mesmo tempo. Se a ambição é excessiva, o borbulhar de contradições fecundas, historicamente relevantes, não deixa de confirmar que estamos diante de um dos poetas mais significativos do nosso tempo.
MARCOS SISCAR é poeta e professor de teoria
literária na Universidade Estadual Paulista (São
José do Rio Preto) e autor de "Interior via Satélite" (a sair pela Ateliê).
BILI COM LIMÃO VERDE NA MÃO Autor: Décio Pignatari Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444) Quanto: R$ 49 (80 págs.)
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