São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009

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+ cultura

Stopard APAIXONADO

Com duas peças em cartaz em Londres, o dramaturgo diz sentir falta de temas atuais em suas obras, como invasão de privacidade e tortura

JAN DALLEY

Sir Tom Stoppard não podia me encontrar para almoçar. Ele está na primeira semana de ensaios para uma nova produção londrina de "Arcadia", uma peça que escreveu em 1993. Na semana seguinte, ele tampouco poderia me encontrar para um almoço, porque não estaria envolvido nos ensaios para a nova produção londrina de "Arcadia".
Faz sentido: almoços longos interferem no dia de trabalho de um escritor. Ninguém consegue produzir tanto quanto Stoppard se deixar que o ritmo de trabalho seja interrompido. Aos 71 anos, o dramaturgo não parece nem um pouco inclinado a reduzir a velocidade. Por isso, ao seu modo cortês, ele sugere como alternativa um jantar de começo de noite em um restaurante italiano a dois minutos do teatro Royal Court [em Londres].
O restaurante escolhido é um dos seus refúgios, e tem história para ele. "Comecei a vir aqui quando fiz um trabalho no Royal Court".
Stoppard está se referindo a "Rock'n'Roll", sua peça mais recente, que se passa parcialmente em Praga [na República Tcheca], no período entre a invasão soviética de 1968 e a Revolução de Veludo, em 1989. A produção a que ele se refere estreou no Royal Court, em Chelsea, em 2006.
"Certa noite, trouxe dois tchecos comigo ao restaurante", diz. "Um deles era como um personagem da peça, mas sem aparecer no palco. Disse aos atores que queria apresentá-los e, quando chegamos lá, estava aquele sujeito de cabelos longos, meio com cara de hippie, acompanhado por um amigo.
Os atores ficaram espantados, era como se a peça tivesse ganhado vida." Stoppard é um bom contador de casos, relaxado e experiente, discretamente cômico e, quando está envolvido nessa tarefa, o sotaque forte e a fala ligeiramente ciciada se tornam mais pronunciados.
Stoppard nasceu em 1937 na então Tchecoslováquia, dois anos antes de sua família fugir da invasão nazista.
Cingapura foi o primeiro refúgio para eles, mas o escritor e sua mãe terminaram embarcando em um navio cujo destino era a Austrália, mas terminou desviado para a Índia. Posteriormente, quando seu pai tentava segui-los, o navio que tomou foi bombardeado fatalmente pelos japoneses.

Novo lar
Em 1945, a mãe de Stoppard casou de novo, e o major Kenneth Stoppard deu ao filho adotivo um nome novo, uma nova nacionalidade e um novo lar na Inglaterra.
"Eu me tornei uma espécie de torcedor da Inglaterra", contou ele certa vez. "Mas, em lugar de torcer pela seleção de futebol, torcia pelo país." Seu primeiro sucesso, que surgiu em 1967 com a peça "Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos", celebrava a cultura inglesa já no título [que evoca dois personagens laterais de "Hamlet", de Shakespeare].
Mas ele vem investigando cada vez mais a cultura do leste da Europa -especialmente os pensadores russos exilados- em sua trilogia "A Costa da Utopia" (2002), em trabalhos como "Rock'n'Roll", protagonizado por um herói chamado Jan que passou a infância na Inglaterra durante a guerra, mas retornou à Tchecoslováquia em 1948 -uma espécie de versão alternativa da vida de Stoppard.
A peça estabelece uma complexa série de contrastes entre as duas sociedades, entre dois sistemas de pensamento; um diálogo que se torna uma espécie de versão de palco para o trabalho de Stoppard em defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos nos regimes pós-comunistas.
Sua carreira de mais de quatro décadas abarca roteiros de cinema, televisão e rádio, traduções e versões, bem como 24 peças originais. O projeto mais recente é uma versão de "O Jardim das Cerejeiras", de Tchekhov, que estreará em breve em Londres.
"Um dos motivos para que existam tantas versões de Tchekhov é que as traduções ficam datadas de uma maneira que não acontece com o original. As traduções parecem presas ao seu tempo", diz. Para sua mais recente versão de Tchekhov, diz ter mexido "quase nada" na peça.
"Não poderia abordar "O Jardim das Cerejeiras" com o mesmo espírito que usei para "Ivanov" -que não era uma obra-prima irretocável, ao contrário de "O Jardim das Cerejeiras". Elas [as quatro grandes peças de Tchekhov] parecem ser um poço sem fundo. Cada cena pode ser examinada ao infinito."
"Tradução é quase uma contradição em termos. Quando ouço traduções de minhas peças, não preciso conhecer o outro idioma para ter certeza de que ele não é capaz de fazer o mesmo que o inglês -e não apenas por conta do óbvio, como jogos de palavras-, mas porque boa parte da escrita, em qualquer idioma, é uma espécie de conspiração entre som e sentido e não se pode obter o som necessário por meio de um sentido equivalente."
"Além disso, quando você está escrevendo, mesmo que não pense a respeito, está fazendo uso de numerosas alusões à vida tal qual compreendida por seu público, uma espécie de contexto cultural."

Pragmatismo
O garçom nos interrompe, contrito, para nos perguntar se desejamos o nosso peixe com ossos ou desossado. A resposta é desossado.
"Mas isso acontece apenas", prossegue Stoppard, sem se referir ao peixe, "porque sempre fui muito pragmático com relação ao teatro. Não vejo vantagem em evitar a realidade básica de que há algumas centenas de pessoas vendo, ouvindo e julgando criticamente aquilo que veem e ouvem. Os espectadores não estão lá para nos fazer favores."
"Pode haver defensores apaixonados de Tchekhov que desejam protegê-lo e preferem ouvir o que ele escreveu sem mudanças, sem diluições."
"Mas não é assim que eu me sinto, porque o teatro é uma forma de arte mediada, e conta com um ou diversos narradores. O texto perde sua virgindade ao ser encenado, deixa de ser a versão ideal e abstrata e se torna um fato, um evento."
E ele se sente da mesma maneira quanto ao seu trabalho? Por exemplo, ao retomar "Arcadia" depois de 16 anos, sente a necessidade de revisar? "Não, de forma nenhuma. Com o seu próprio trabalho, você chega ao ponto que deseja, e a coisa não muda para você.
Com certeza há muitos trechos em que não gosto nada do que fiz, mas isso não acontece porque imagino uma versão melhor. Sou incapaz de melhorar o que existe lá. Os diretores ocasionalmente têm boas ideias que eu gostaria de ter tido, não em termos de reescrever, mas sobre como encenar a peça."
Isso parece um impulso incomumente generoso. "Estou só sendo pragmático. Se funciona, é bom." Pragmaticamente nos dedicamos ao peixe, batatas amassadas e abobrinha e, enquanto mastigamos, Stoppard intui minha próxima pergunta -por que ele demorou 16 anos para reencenar "Arcadia", que muitos consideram como sua obra-prima, nos palcos de Londres? "É minha culpa, se é que esse é o termo -achava, até agora, que era cedo demais.
"Gosto da ideia de que os bebês nascidos na noite de estreia têm agora idade suficiente para ir à peça e entender o que diz." Como se duas grandes estreias em Londres em um mês não bastassem, Stoppard também está trabalhando em uma nova série de TV, adaptação do romance "Parade's End" [O Fim do Desfile], de Ford Madox Ford. Há também uma versão japonesa de "A Costa da Utopia" em preparo.
Está planejando uma viagem ao Japão. "Só estive lá uma vez, quando estávamos fazendo "O Império do Sol" [filme de Steven Spielberg para o qual Stoppard escreveu o roteiro, baseado em livro de J.G. Ballard]. Na verdade, foi só uma escala de duas horas, e por isso fui apenas à loja da Issey Miyake".
Desta vez, ele planeja ir de trem, em uma viagem que começará em Moscou. "Isso quer dizer 12 meses fora de casa quase o tempo todo, e" -em tom intenso, uma vez mais antecipando minha próxima pergunta- "isso tem de terminar, porque preciso escrever uma peça."
"O problema é que não tenho tema. Parte da dificuldade é que existem todos esses temas imensos que se apresentam a quem quer que se dedique a lidar com as grandes questões contemporâneas, de que não trato, mas talvez devesse. E aí fico pensando se deveria escrever sobre a mudança climática, a tortura ou o Afeganistão..."
A declaração não parece compatível com o dramaturgo que certa vez teria dito desejar que seu trabalho passasse "inteiramente intocado por qualquer suspeita de utilidade".

Relapso
Mas isso se aplica ao período anterior ao seu envolvimento mais intenso na defesa dos direitos humanos. "Não é realmente uma obrigação, mas realmente sinto o desejo de tratar desses assuntos -uma questão legal interessante dos dois ou três últimos anos, por exemplo, envolve as leis de defesa da privacidade."
"Por enquanto não tenho ideia firme sobre essas coisas, mas começo a me sentir relapso -nos dois anos posteriores à estreia de uma peça nova, você fica achando que cumpriu suas obrigações, fez o que tem a obrigação de fazer e demora mais uns dois anos para que isso seja sobrepujado por outro sentimento, o de que você deveria, simplesmente, estar escrevendo uma peça."
O restaurante começa a ficar barulhento, e reconheço os sinais sutis de um homem que anseia por um cigarro. Conversamos por mais alguns minutos, antes que ele subitamente proponha: "Uma caminhada?". Nós caminhamos pelo crepúsculo na direção da Sloane Square, Stoppard tragando o seu cigarro.
Como por instinto, segue na direção do Royal Court e se acomoda alegremente no degrau da entrada, posição na qual deve ter fumado muitos cigarros pensativos; parece relaxado, como se estivesse na sala de sua casa.


"Arcadia" estreia na quarta no teatro Duke of York (Londres). Já "O Jardim das Cerejeiras" estreou ontem no Old Vic. A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Paulo Migliacci.


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