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+ cultura
Stopard APAIXONADO
Com duas peças em cartaz em Londres, o dramaturgo diz sentir falta de temas atuais em suas obras, como invasão de privacidade e tortura
JAN DALLEY
Sir Tom Stoppard não
podia me encontrar
para almoçar. Ele está
na primeira semana
de ensaios para uma
nova produção londrina de
"Arcadia", uma peça que escreveu em 1993. Na semana seguinte, ele tampouco poderia
me encontrar para um almoço,
porque não estaria envolvido
nos ensaios para a nova produção londrina de "Arcadia".
Faz sentido: almoços longos
interferem no dia de trabalho
de um escritor. Ninguém consegue produzir tanto quanto
Stoppard se deixar que o ritmo
de trabalho seja interrompido.
Aos 71 anos, o dramaturgo não
parece nem um pouco inclinado a reduzir a velocidade.
Por isso, ao seu modo cortês,
ele sugere como alternativa um
jantar de começo de noite em
um restaurante italiano a dois
minutos do teatro Royal Court
[em Londres].
O restaurante escolhido é
um dos seus refúgios, e tem
história para ele. "Comecei a
vir aqui quando fiz um trabalho
no Royal Court".
Stoppard está se referindo a
"Rock'n'Roll", sua peça mais
recente, que se passa parcialmente em Praga [na República
Tcheca], no período entre a invasão soviética de 1968 e a Revolução de Veludo, em 1989.
A produção a que ele se refere estreou no Royal Court, em
Chelsea, em 2006.
"Certa noite, trouxe dois
tchecos comigo ao restaurante", diz.
"Um deles era como um personagem da peça, mas sem aparecer no palco. Disse aos atores
que queria apresentá-los e,
quando chegamos lá, estava
aquele sujeito de cabelos longos, meio com cara de hippie,
acompanhado por um amigo.
Os atores ficaram espantados,
era como se a peça tivesse ganhado vida."
Stoppard é um bom contador
de casos, relaxado e experiente,
discretamente cômico e, quando está envolvido nessa tarefa,
o sotaque forte e a fala ligeiramente ciciada se tornam mais
pronunciados.
Stoppard nasceu em 1937 na
então Tchecoslováquia, dois
anos antes de sua família fugir
da invasão nazista.
Cingapura foi o primeiro refúgio para eles, mas o escritor e
sua mãe terminaram embarcando em um navio cujo destino era a Austrália, mas terminou desviado para a Índia. Posteriormente, quando seu pai
tentava segui-los, o navio que
tomou foi bombardeado fatalmente pelos japoneses.
Novo lar
Em 1945, a mãe de Stoppard
casou de novo, e o major Kenneth Stoppard deu ao filho adotivo um nome novo, uma nova
nacionalidade e um novo lar na
Inglaterra.
"Eu me tornei uma espécie
de torcedor da Inglaterra", contou ele certa vez. "Mas, em lugar de torcer pela seleção de futebol, torcia pelo país."
Seu primeiro sucesso, que
surgiu em 1967 com a peça "Rosencrantz e Guildenstern Estão
Mortos", celebrava a cultura inglesa já no título [que evoca
dois personagens laterais de
"Hamlet", de Shakespeare].
Mas ele vem investigando cada vez mais a cultura do leste da
Europa -especialmente os
pensadores russos exilados-
em sua trilogia "A Costa da
Utopia" (2002), em trabalhos
como "Rock'n'Roll", protagonizado por um herói chamado
Jan que passou a infância na
Inglaterra durante a guerra,
mas retornou à Tchecoslováquia em 1948 -uma espécie de
versão alternativa da vida de
Stoppard.
A peça estabelece uma complexa série de contrastes entre
as duas sociedades, entre dois
sistemas de pensamento; um
diálogo que se torna uma espécie de versão de palco para o
trabalho de Stoppard em defesa
da liberdade de expressão e dos
direitos humanos nos regimes
pós-comunistas.
Sua carreira de mais de quatro décadas abarca roteiros de
cinema, televisão e rádio, traduções e versões, bem como 24
peças originais. O projeto mais
recente é uma versão de "O Jardim das Cerejeiras", de Tchekhov, que estreará em breve em
Londres.
"Um dos motivos para que
existam tantas versões de
Tchekhov é que as traduções ficam datadas de uma maneira
que não acontece com o original. As traduções parecem presas ao seu tempo", diz.
Para sua mais recente versão
de Tchekhov, diz ter mexido
"quase nada" na peça.
"Não poderia abordar "O Jardim das Cerejeiras" com o mesmo espírito que usei para "Ivanov" -que não era uma obra-prima irretocável, ao contrário
de "O Jardim das Cerejeiras".
Elas [as quatro grandes peças
de Tchekhov] parecem ser um
poço sem fundo. Cada cena pode ser examinada ao infinito."
"Tradução é quase uma contradição em termos. Quando
ouço traduções de minhas peças, não preciso conhecer o outro idioma para ter certeza de
que ele não é capaz de fazer o
mesmo que o inglês -e não
apenas por conta do óbvio, como jogos de palavras-, mas
porque boa parte da escrita, em
qualquer idioma, é uma espécie
de conspiração entre som e
sentido e não se pode obter o
som necessário por meio de um
sentido equivalente."
"Além disso, quando você está escrevendo, mesmo que não
pense a respeito, está fazendo
uso de numerosas alusões à vida tal qual compreendida por
seu público, uma espécie de
contexto cultural."
Pragmatismo
O garçom nos interrompe,
contrito, para nos perguntar se
desejamos o nosso peixe com
ossos ou desossado.
A resposta é desossado.
"Mas isso acontece apenas",
prossegue Stoppard, sem se referir ao peixe, "porque sempre
fui muito pragmático com relação ao teatro. Não vejo vantagem em evitar a realidade básica de que há algumas centenas
de pessoas vendo, ouvindo e
julgando criticamente aquilo
que veem e ouvem. Os espectadores não estão lá para nos fazer favores."
"Pode haver defensores apaixonados de Tchekhov que desejam protegê-lo e preferem
ouvir o que ele escreveu sem
mudanças, sem diluições."
"Mas não é assim que eu me
sinto, porque o teatro é uma
forma de arte mediada, e conta
com um ou diversos narradores. O texto perde sua virgindade ao ser encenado, deixa de ser
a versão ideal e abstrata e se
torna um fato, um evento."
E ele se sente da mesma maneira quanto ao seu trabalho?
Por exemplo, ao retomar "Arcadia" depois de 16 anos, sente
a necessidade de revisar?
"Não, de forma nenhuma.
Com o seu próprio trabalho,
você chega ao ponto que deseja,
e a coisa não muda para você.
Com certeza há muitos trechos
em que não gosto nada do que
fiz, mas isso não acontece porque imagino uma versão melhor. Sou incapaz de melhorar o
que existe lá. Os diretores ocasionalmente têm boas ideias
que eu gostaria de ter tido, não
em termos de reescrever, mas
sobre como encenar a peça."
Isso parece um impulso incomumente generoso. "Estou só
sendo pragmático. Se funciona,
é bom."
Pragmaticamente nos dedicamos ao peixe, batatas amassadas e abobrinha e, enquanto
mastigamos, Stoppard intui
minha próxima pergunta -por
que ele demorou 16 anos para
reencenar "Arcadia", que muitos consideram como sua obra-prima, nos palcos de Londres?
"É minha culpa, se é que esse
é o termo -achava, até agora,
que era cedo demais.
"Gosto da ideia de que os bebês nascidos na noite de estreia
têm agora idade suficiente para
ir à peça e entender o que diz."
Como se duas grandes estreias em Londres em um mês
não bastassem, Stoppard também está trabalhando em uma
nova série de TV, adaptação do
romance "Parade's End" [O
Fim do Desfile], de Ford Madox
Ford. Há também uma versão
japonesa de "A Costa da Utopia" em preparo.
Está planejando uma viagem
ao Japão. "Só estive lá uma vez,
quando estávamos fazendo "O
Império do Sol" [filme de Steven Spielberg para o qual Stoppard escreveu o roteiro, baseado em livro de J.G. Ballard]. Na
verdade, foi só uma escala de
duas horas, e por isso fui apenas
à loja da Issey Miyake".
Desta vez, ele planeja ir de
trem, em uma viagem que começará em Moscou.
"Isso quer dizer 12 meses fora de casa quase o tempo todo,
e" -em tom intenso, uma vez
mais antecipando minha próxima pergunta- "isso tem de terminar, porque preciso escrever
uma peça."
"O problema é que não tenho
tema. Parte da dificuldade é
que existem todos esses temas
imensos que se apresentam a
quem quer que se dedique a lidar com as grandes questões
contemporâneas, de que não
trato, mas talvez devesse. E aí
fico pensando se deveria escrever sobre a mudança climática,
a tortura ou o Afeganistão..."
A declaração não parece
compatível com o dramaturgo
que certa vez teria dito desejar
que seu trabalho passasse "inteiramente intocado por qualquer suspeita de utilidade".
Relapso
Mas isso se aplica ao período
anterior ao seu envolvimento
mais intenso na defesa dos direitos humanos. "Não é realmente uma obrigação, mas
realmente sinto o desejo de tratar desses assuntos -uma
questão legal interessante dos
dois ou três últimos anos, por
exemplo, envolve as leis de defesa da privacidade."
"Por enquanto não tenho
ideia firme sobre essas coisas,
mas começo a me sentir relapso -nos dois anos posteriores à
estreia de uma peça nova, você
fica achando que cumpriu suas
obrigações, fez o que tem a
obrigação de fazer e demora
mais uns dois anos para que isso seja sobrepujado por outro
sentimento, o de que você deveria, simplesmente, estar escrevendo uma peça."
O restaurante começa a ficar
barulhento, e reconheço os sinais sutis de um homem que
anseia por um cigarro. Conversamos por mais alguns minutos, antes que ele subitamente
proponha: "Uma caminhada?".
Nós caminhamos pelo crepúsculo na direção da Sloane
Square, Stoppard tragando o
seu cigarro.
Como por instinto, segue na
direção do Royal Court e se
acomoda alegremente no degrau da entrada, posição na
qual deve ter fumado muitos cigarros pensativos; parece relaxado, como se estivesse na sala
de sua casa.
"Arcadia" estreia na quarta no teatro Duke of
York (Londres). Já "O Jardim das Cerejeiras" estreou ontem no Old Vic.
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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