São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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AUTORES
A Disneylândia gótica de Gaudí


O artista catalão aproximou natureza e arte ao atualizar a herança medieval


PETER BURKE
especial para a Folha

Acabo de voltar de Barcelona impressionado, como sempre, pelo poder e originalidade presentes na imaginação visual de um dos grandes arquitetos da virada do século, talvez do século 20 como um todo: Antoní Gaudí.
Antoní Gaudí i Cornet (1852-1926) atuou como arquiteto entre 1878 -quando ganhou o concurso de design de iluminação pública- e 1926, ano em que morreu atropelado por um bonde numa rua de Barcelona. Suas obras mais famosas podem todas ser vistas em Barcelona. Uma delas é a igreja da Sagrada Família, na qual ele trabalhou de 1878 até morrer. Passados mais de 70 anos desde a morte do arquiteto, o prédio ainda se encontra em construção. Outra obra-prima é o Parque Guell (1900-1914), instalado nas cercanias de Barcelona como parte de uma "cidade-jardim" inglesa nunca construída, e que agora se vê engolido pela expansão de Barcelona.
A esses projetos grandiosos gostaria ainda de acrescentar no mínimo mais dois, ambos edifícios de apartamentos no centro da cidade: a Casa Batlló (1904-1906) e a Casa Milá (1906-1910), esta última carinhosamente apelidada de "pedreira" (La Pedrera).
O que é tão especial no trabalho de Gaudí? Primeiramente: todo detalhe, entre batentes de porta e buracos de fechadura, traz a marca do estilo peculiar do arquiteto. Gaudí desenhava não só lampiões de rua, mas cadeiras, mesas e a sua própria escrivaninha. Em segundo lugar, ele era sensível às qualidades especiais de uma gama enorme de materiais, não somente o tijolo e a pedra, mas também a madeira, o vidro, a cerâmica e os metais (ele vinha de uma família de artesãos especializados em trabalhar com cobre). Em terceiro lugar, há o ecletismo criativo. Gaudí tomava emprestados elementos originários de um sem-número de tradições -notadamente das tradições cristã e islâmica da Catalunha medieval-, mas os transformava em algo uniforme e também especificamente seu. Seu estilo pessoal irrompia de dentro das entranhas da revitalização gótica.
Por fim, e sobretudo, a obra de Gaudí caracteriza-se por suas curvas, mesmo em lugares onde tradicionalmente seria de se esperar linhas retas. As fachadas vibrantes, as linhas sinuosas, as colunas, sempre no limite de se transformarem em troncos de árvore, as varandas de ferro retorcido que lembram algas marinhas, o telhado coberto com telhas verdes que parecem as escamas de um monstro do mar, tudo isso dissolve os limites entre arte e natureza.
Essas exuberantes formas híbridas parecem ter vida própria, de forma que não surpreenderia muito vê-las germinarem na nossa frente. O efeito visual criado remete a algumas igrejas góticas tardias, sobretudo as igrejas portuguesas em estilo "manuelino", como o convento dos Jerônimos de Belém, em Lisboa. Gaudí também me lembra o barroco romano: as fachadas ondulantes de Borromini, por exemplo, ou a estátua de Bernini representando a ninfa Dafne no momento em que, fugindo de Apolo, começa a ser transformada em árvore.
Como a arquitetura do barroco, a obra de Gaudí é ao mesmo tempo sensual, exuberante e lúdica. Uma das portarias na entrada do parque Guell, por exemplo, com as suas torrezinhas pseudomedievais cobertas com telhas de cerâmica em cores vivas, não estaria fora de lugar na Califórnia. Parece um castelo de conto de fadas, ou até da Disneylândia. O sapo gigante e o dragão, com suas caras de cerâmica, reforçam essa impressão.
Apesar de ter trabalhado há cem anos, às vezes Gaudí parece impressionantemente atual. A fachada da Sagrada Família, por exemplo, encontra-se recoberta com inscrições em letras maiúsculas, mensagens cristãs que assumem a forma de slogans de publicidade. As chaminés de La Pedrera têm formas quase humanas, provavelmente inspiradas em cavaleiros medievais, mas que parecem, ao menos aos nossos olhos de fim de século 20, saídas de um filme de ficção científica.
A aparente contemporaneidade contribui para a popularidade da obra de Gaudí hoje. Cartões-postais de seus edifícios são vendidos por toda a Barcelona, e os motoristas de táxi apontam para os edifícios com orgulho. Então, o que sua arquitetura tem a ver com o tempo no qual foi projetada e construída? Nenhum artista cria sozinho, a despeito do mito romântico do indivíduo solitário, e a arquitetura em particular é uma arte fundada essencialmente na colaboração. Por vezes, a obra do próprio Gaudí é dificilmente distinguível da de seus professores, discípulos, colegas e amigos, tal como Joan Martorell, de uma geração mais velha que a sua, Francesc Berenguer, de uma geração mais jovem, e o contemporâneo de Gaudí, Josep Maria Jujol, com quem Gaudí projetou La Pedrera.
Num contexto mais amplo, a arquitetura de Gaudí fazia parte de um movimento de revitalização regional, a Renascença Catalã ("Renaixença"), que combinava demandas por autonomia política com o cultivo da linguagem catalã e a revitalização de tradições artísticas regionais. A região estava prosperando economicamente e sua capital estava se expandindo rapidamente (a população de Barcelona cresceu de 150 mil em 1850 para 600 mil em 1900). A maneira como o arquiteto combinava a tecnologia moderna com a admiração pela Idade Média e um catolicismo em ebulição crescente atraía seus patrocinadores, ricos manufatureiros do setor têxtil, tais como Eusebi Guell e Josep Batlló.
Num contexto ainda mais amplo, poder-se-ia descrever a arquitetura de Gaudí como a versão catalã do estilo internacional do período em torno de 1900, de Glasgow a Praga: art nouveau ou "Jugendstil", um estilo que era tanto florido quanto floreado (em italiano às vezes ele é descrito não só como "estilo liberdade", mas também como "stile floreale"). Em Bruxelas, por exemplo, as casas e os móveis projetados por Victor Horta na década de 1890 são tão repletos de curvas quanto os de Gaudí. Entretanto, a criatividade de Horta parece ter esmaecido por volta de 1903, e o movimento art nouveau também chegou ao fim, enquanto Gaudí continuou inovando.
Ele trabalhou na Catalunha ao mesmo tempo em que os arquitetos modernistas Peter Behrens e Walter Gropius (o fundador da Bauhaus) atuaram na Alemanha. Em certos aspectos, os projetos dos dois parecem ser o oposto do seu: o estilo pleno versus o ornamento, as linhas retas versus as curvas. Em outros, assemelham-se, como em suas tentativas de respeitar a natureza dos materiais, de projetar todo detalhe, até trincas de porta, e, assim, de inserir a "arte" na vida cotidiana, como tinha sido na Idade Média.
Mas é intrigante lembrar que foi Gaudí, e não Gropius (que era o marido de Alma Mahler), que viveu uma vida ascética, ao menos nos seus últimos anos de vida. Sua estreita cama de ferro e seu quarto austero com a imagem da Virgem de Guadalupe e uma fotografia do papa podem ser vistos hoje em dia na casa em que ele viveu por 20 anos, no Parque Guell. Gaudí jejuava regularmente e vestia-se de maneira tão miserável que, quando estava morrendo na rua, um motorista recusou-se a levá-lo ao hospital. Qual era a relação entre o seu ascetismo pessoal e o mundo exuberante e sensual de formas que criou?


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Ed. Unesp) e "História Social da Linguagem" (Ed. da Unesp). Escreve bimestralmente.
Tradução de Fraya Frehse.



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