São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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Erudição em doses homeopáticas


Isaías Pessotti acerta mais no passado que no presente de "A Lua da Verdade"


JOSÉ MARCOS MACEDO
especial para a Folha

Em seus três romances publicados, todos com a mesma estrutura narrativa, Isaías Pessotti parece ter encontrado uma fórmula de sucesso: ministrar a erudição em doses homeopáticas, sem os vagares da digressão, mobilizando para tanto o próprio aparato erudito como impulso da trama, sob a forma de enigma. Numa espécie de turismo temporal, Pessotti guia o leitor pela mão, com o inevitável didatismo, e faz reviver o passado histórico, a ele acrescentando o prazer da descoberta de algum mistério.
À aventura já consumada no passado soma-se o dever de resgatar, no presente, a memória de personagens libertárias bem ao gosto do mundo moderno, ávidas de conhecimento, às quais se opõe o propósito obscurantista de gente malvada, seja na Itália do século 15 ("Aqueles Cães Malditos de Arquelau") ou na Idade Média ("O Manuscrito de Mediavilla"), seja na Évora do século 17, em plena Inquisição ("A Lua da Verdade").
O binômio passado/presente age sobre o enredo, que se desdobra em dois planos. É nesse vaivém entre um e outro, armado para dar vibração ao relato, que o autor aos poucos desenreda os fios da trama e amarra o leitor. A idéia não é má, mas a elaboração que lhe dá Pessotti é sofrível. Ao contrário de "Possessão", de A.S. Byatt, um romance com linha narrativa semelhante, nenhum livro de Pessotti ergue um sistema de contrastes entre os dois planos; se há efeitos recíprocos, são sempre muito tênues. Um dos planos, invariavelmente o do passado, tem densidade bem maior, o que torna a leitura claudicante.
A cada vez que o discurso transita para o presente, em que um grupo de pessoas brilhantes, cada qual especialista em sua área, reúne-se para desvendar certo mistério, cercado de mulheres estonteantes e refeições principescas (mas sem um tostão para tilintar com o outro, como bons intelectuais), a trama cai de rendimento e só flui novamente quando regressa ao passado histórico.
Num dos planos, Pessotti constrói com talento as aventuras dos heróis e fornece os dados culturais necessários para que os leitores acompanhem a solução do enigma; noutro, lança mão de expedientes romanescos muito pobres, intoleráveis mesmo para um best seller. Seu grupinho de intelectuais não convence (o saber é repartido de forma estanque entre os personagens, para poder facilitar a divisão de tarefas ao resolver o mistério, de modo que, por exemplo, o perito em grego não sabe uma palavra de latim, e vice-versa); a insistência nas personagens femininas, cuja beleza fulgurante só é igualada pela inteligência genial, não ultrapassa o estereótipo; os comes e bebes a que se abandonam as personagens, e cuja descrição não guarda relação alguma com a trama, já se tornaram um cacoete.
Embora fluente e elegante, o estilo não consegue costurar um plano a outro, que correm justapostos, sem maior contato, salvo no último livro, "A Lua da Verdade", no qual as soluções formais para a oposição passado/presente, ainda que marginalmente, integram o próprio tema da narrativa -o que só se descobre ao final do romance.
Neste, Eugênio, o protagonista (assim supomos), embarca rumo a Portugal, em busca de material para seu novo romance sobre a Inquisição. No interior do navio, ele trava contato com os personagens que dão início ao ameno relato de viagem: o jesuíta Norberto Flores, que lhe mostra documentos de um curioso processo sem solução, datado de 1620, cujo desfecho é "o milagre das rosas".
A ré, uma jovem de Praga, desaparece do cárcere; na cela ainda trancada, rosas nascem de uma fenda na pedra. Wiesenius, o execrável acusador do Santo Ofício, não resiste e morre ao ver a cena. Os outros companheiros de viagem também se interessam pelo caso: Eva, jornalista fatal e sedutora, cuja tarefa é cobrir a derradeira viagem do transatlântico Provence, e Saulo, engenheiro naval e astrônomo diletante. Todos se mostram intrigados com o destino da ré, que responde pela clássica acusação: defender a idéia de que a Terra não é o centro do universo.
Desfeito o grupo pelo final da viagem, persistem os laços de amizade -agora ainda mais sob o signo da verdade e da mentira, do sol e da lua, e isso tanto no presente quanto no passado: o desfecho da relação amorosa de Eugênio e Eva, sombreada pelas figuras de Norberto e Saulo, não é menos surpreendente que a solução do processo inquisitório de Anna, a ré do Santo Ofício, que de apóstata virou santa. A reviravolta final do enredo dá certo brilho retrospectivo ao livro, porém não consegue retirar-lhe as falhas comuns aos anteriores.
Parece que Pessotti, como revela a boa aceitação pelo público, veio suprir uma certa carência de erudição dos leitores (veja-se o êxito de "O Mundo de Sofia"). Ao dar uma roupagem romanesca a temas que trata com conhecimento de causa, ele consegue, de uma forma ou de outra, criar boas obras de literatura de entretenimento.


José Marcos Macedo é mestre em teoria literária pela USP.

A OBRA
A Lua da Verdade - Isaías Pessotti. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 288 págs. R$ 23,00.



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