|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Os limites da explicação científica
por Steven Weinberg
Alguns anos atrás, passei uma tarde com outros professores da Universidade do Texas
(EUA) contando o trabalho de nossas respectivas disciplinas a um grupo de graduandos.
Descrevi em linhas gerais o grande progresso que nós,
físicos, havíamos feito no tocante à explicação do que
era conhecido experimentalmente sobre partículas elementares e campos; como, enquanto estudante, eu tivera de aprender uma grande variedade de fatos heterogêneos sobre partículas, forças e simetrias; como, de meados dos anos 60 até meados dos anos 70, toda essa miscelânea era explicada no que hoje é chamado o Modelo
Padrão das partículas elementares; como aprendemos
que esses fatos heterogêneos sobre partículas e forças
podem ser deduzidos matematicamente de uns poucos
princípios bem simples; e como um grande "A-há!" coletivo irrompeu da comunidade dos físicos.
Após os comentários, um colega de faculdade (cientista, mas não físico atômico) comentou: "Bem, claro
que você sabe que a ciência na verdade não explica as
coisas, somente as descreve". Eu já ouvira esse comentário antes, mas na hora aquilo me pegou de surpresa,
pois eu pensava que estivéssemos fazendo um trabalho
e tanto explicando as propriedades observadas das forças e partículas elementares, não só as descrevendo (1).
Creio que o comentário de meu colega talvez tenha sido fruto de uma espécie de medo positivista difundido
entre os filósofos da ciência no período de entre as guerras mundiais. É célebre a observação de Ludwig Wittgenstein de que "na base de toda a visão moderna do
mundo está a ilusão de que as chamadas leis da natureza são as explicações de fenômenos naturais".
Pode-se supor que algo é explicado quando lhe encontramos a causa, mas um texto de Bertrand Russell,
em 1913, argumentava que "a palavra "causa" está tão
inextricavelmente presa a associações enganosas que
sua completa exclusão do vocabulário filosófico se faz
desejável" (2). Isso deixou os filósofos com uma única
escolha para a distinção entre explicação e descrição,
uma escolha teleológica, definindo uma explicação como uma declaração do propósito da coisa explicada.
O romance "Where Angels Fear to Tread", de E.M.
Forster, dá um bom exemplo de teleologia ao traçar a
diferença entre descrição e explicação. Philip está tentando descobrir por que sua amiga Caroline ajudou a
consumar um casamento entre a irmã de Philip e um
jovem italiano a quem a família de Philip não vê com
bons olhos. Depois de Caroline relatar todas as conversas que teve com a irmã de Philip, Philip diz: "O que você me deu é uma descrição, não uma explicação". Todos sabem o que Philip quer dizer com isso: ao pedir
uma explicação, ele quer saber dos propósitos de Caroline. Não há propósito revelado nas leis da natureza, e
não sabendo outro modo de distinguir descrição e explicação, Wittgenstein e meu amigo concluíram que essas leis não podem ser explicações.
Talvez alguns daqueles que dizem que a ciência descreve, mas não explica, queiram também comparar
desfavoravelmente a ciência à teologia, que eles imaginam explicar as coisas com referência a algum tipo de
propósito divino, uma tarefa recusada pela ciência.
Esse modo de raciocinar me parece errado não só na
substância, mas também no procedimento. Não é tarefa
dos filósofos ou de quem quer que seja ditar sentidos de
palavras diversos dos sentidos de uso geral. Em vez de
sustentar que os cientistas estão enganados quando dizem, como geralmente o fazem, que estão explicando
coisas quando fazem seu trabalho, os filósofos que cuidam do sentido da explicação na ciência deveriam tentar entender o que os cientistas estão fazendo quando
dizem que explicam alguma coisa. Se eu tivesse de dar
uma definição a priori da explicação na física, diria:
"Explicação na física é o que os físicos fizeram quando
dizem "A-há!'". Mas definições a priori (incluindo essa)
não são de muita utilidade.
Que eu saiba, isso foi bem entendido pelos filósofos da
ciência desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial.
Há uma vasta literatura moderna sobre a natureza da
explicação, por filósofos como Peter Achinstein, Carl
Hempel, Philip Kitcher e Wesley Salmon. Daquilo que li
dessa literatura, concluo que os filósofos estão agora lidando com isso da forma correta. Estão tentando desenvolver uma resposta à pergunta: "O que fazem os
cientistas quando explicam alguma coisa?", observando o que os cientistas realmente estão fazendo.
Explicando para se explicar
Cientistas que fazem
pesquisa pura, e não aplicada, costumam dizer ao público e às agências de financiamento que sua missão é a
explicação de tal ou qual coisa, daí porque a tarefa de
aclarar a natureza da explicação é tão importante para
eles -e também para os filósofos. Essa tarefa me parece
um pouco mais fácil na física (e na química) do que nas
demais ciências, porque os filósofos da ciência se viram
a braços com a pergunta de o que se quer dizer com a
explicação de um evento (note a referência de Wittgenstein aos "fenômenos naturais"), enquanto os físicos estão interessados na explicação das regularidades,
de princípios físicos, e não com eventos individuais.
Biólogos, meteorologistas e historiadores se preocupam com as causas de eventos individuais, tais como a
extinção dos dinossauros, a nevasca de 1888, a Revolução Francesa etc., enquanto um físico só se interessa por
um evento -como a velação das chapas fotográficas de
Becquerel que, em 1897, foram deixadas na proximidade de um sal de urânio- quando esse revela uma regularidade da natureza, tal como a instabilidade do átomo
de urânio. Philip Kitcher tentou reavivar a idéia de que
o modo de explicar um evento é reportá-lo a sua causa,
mas entre o infinito número de coisas que podem afetar
um evento, qual considerar como causa? (3)
No contexto limitado da física, creio que se possa dar
uma resposta sofrível ao problema de distinguir a explicação da simples descrição, que capta o que os físicos
querem dizer quando afirmam que explicaram alguma
regularidade. A resposta é que nós explicamos um princípio físico quando mostramos que ele pode ser deduzido de um princípio mais fundamental. Infelizmente,
para parafrasear algo que a escritora Mary McCarthy
disse uma vez sobre um livro de Lillian Hellman, cada
palavra nessa definição possui um sentido questionável, incluindo "nós" e "um". Mas vou focalizar as três
palavras que, a meu ver, apresentam as maiores dificuldades: "fundamental", "deduzido" e "princípio".
Newton e Kepler
A espinhosa palavra "fundamental" não pode ser deixada de fora dessa definição, porque a própria dedução não implica direção: ela costuma
trabalhar em ambos os sentidos. O melhor exemplo que
conheço é dado pela relação entre as leis de Newton e as
leis de Kepler. Todos sabem que Newton descobriu não
só a lei que diz que a força da gravidade diminui na proporção inversa do quadrado da distância, mas também
uma lei do movimento que diz como os corpos se movem sob a influência de qualquer tipo de força. Um
pouco antes, Kepler descrevera três leis do movimento
planetário: planetas se movem em elipses tendo o Sol
como foco; a linha que une o Sol a qualquer planeta se
estende por iguais áreas em iguais tempos; e o quadrado
dos períodos (o tempo que os planetas levam para descrever suas órbitas) é proporcional ao cubo dos maiores
diâmetros das órbitas dos planetas. Costuma-se dizer
que as leis de Newton explicam as de Kepler. Mas, historicamente, a lei de gravitação de Newton foi deduzida
das leis de movimento planetário de Kepler.
Edmund Halley, Christopher Wren e Robert Hooke
usaram a relação de Kepler entre o quadrado dos períodos e o cubo dos diâmetros (tomando as órbitas como
círculos) para deduzir uma lei de gravitação do inverso
do quadrado, e depois Newton estendeu o argumento
às órbitas elípticas. Hoje, claro, quando se estuda mecânica, aprende-se a deduzir as leis de Kepler das leis de
Newton e não vice-versa. Estamos convencidos de que
as leis de Newton são mais fundamentais que as leis de
Kepler, e é nesse sentido que as leis de Newton explicam
as leis de Kepler, e não o contrário. Mas não é fácil emprestar um sentido preciso à idéia de que um princípio
físico é mais fundamental que outro.
Somos tentados a dizer que mais fundamental significa mais abrangente. Talvez a mais célebre tentativa de
captar o sentido que os cientistas conferem à explicação
foi aquela de Carl Hempel. Em seu famoso artigo de
1948, escrito com Paul Oppenheim, ele observou que "a
explicação de uma regularidade geral consiste em subsumi-la a outra regularidade mais abrangente, a uma lei
mais geral" (4). Mas isso não afasta a dificuldade. Pode-se dizer, por exemplo, que as leis de Newton governam
não só os movimentos dos planetas, mas também as
marés da Terra, a queda de frutas das árvores e assim
por diante, enquanto as leis de Kepler tratam do contexto mais restrito dos movimentos planetários.
Mas isso não é rigorosamente verdade. As leis de Kepler, à medida que a mecânica clássica nem sequer é
aplicada, governam também o movimento dos elétrons
ao redor do núcleo, onde a gravidade é irrelevante. Assim, há um sentido em que as leis de Kepler possuam
uma generalidade que as leis de Newton não têm. Mas
seria absurdo dizer que as leis de Kepler explicam as de
Newton, ao passo que todos (salvo talvez um purista filosófico) concordam com a afirmação de que as leis de
Newton explicam as de Kepler. Esse exemplo das leis de
Newton e de Kepler é um tanto artificial, porque a bem
dizer não há dúvida sobre qual é a explicação de qual.
Em outros casos, a questão de saber qual explica qual é
mais difícil e mais importante.
Eis um exemplo: quando a mecânica quântica é aplicada à relatividade geral, descobre-se que a energia e o
momentum num campo gravitacional vêm em feixes
conhecidos como grávitons, partículas que têm massa
nula, tal como a partícula de luz, o fóton, mas um spin
dois (duas vezes o do fóton). Por outro lado, foi mostrado que qualquer partícula cuja massa é zero e cujo spin
é dois se portará do mesmo modo que os grávitons na
relatividade geral, e que a troca desses grávitons produzirá os mesmos efeitos gravitacionais previstos pela relatividade geral. Além disso, é uma previsão geral da
teoria quântica que devem existir partículas de massa
zero e spin dois. Assim, será a existência do gráviton explicada pela teoria geral da relatividade ou a teoria geral
da relatividade explicada pela existência do gráviton?
Não sabemos. Da resposta a essa pergunta depende
uma escolha de nossa visão do futuro da física: será ele
baseado na geometria do tempo-espaço, como na relatividade geral, ou em alguma teoria como a teoria quântica, que prevê a existência de grávitons?
Além da dedução
A idéia de explicação como dedução também se vê em apuros quando consideramos
princípios físicos que parecem transcender os princípios dos quais foram deduzidos. Isso vale sobretudo para a termodinâmica, a ciência do calor e da entropia.
Depois que suas leis foram formuladas no século 19,
Ludwig Boltzmann logrou deduzir essas leis da mecânica estatística, a física de amostras macroscópicas de matéria compostas de largo número de moléculas individuais. A explicação da termodinâmica por Boltzmann
em termos de mecânica estatística ganhou ampla aceitação, ainda que encontrasse resistência em Max
Planck, Ernst Zermelo e alguns outros físicos que se
aferravam à antiga visão das leis da termodinâmica como princípios independentes, tão fundamentais como
quaisquer outros. Mas aí os trabalhos de Jacob Bekenstein e Stephen Hawking no século 20 mostraram que a
termodinâmica se aplica também a buracos negros, e
não porque eles sejam compostos de muitas moléculas,
mas porque têm uma superfície da qual nenhuma partícula ou raio luminoso jamais poderá emergir.
Assim, a termodinâmica parece transcender a mecânica estatística dos sistemas multicorporais dos quais foi deduzida originalmente.
No entanto, eu sustentaria que há um
sentido em que as leis da termodinâmica
não são tão fundamentais como os princípios da relatividade geral ou o Modelo
Padrão das partículas elementares. É importante distinguir aqui dois aspectos diversos da termodinâmica. De um lado, a
termodinâmica é um sistema formal que
nos permite deduzir consequências interessantes de algumas leis simples, onde
quer que essas leis se apliquem. As leis se
aplicam a buracos negros, a caldeiras a
vapor e a muitos outros sistemas. Mas
não se aplicam em toda parte. A termodinâmica não teria sentido se aplicada a
um único átomo. Para descobrir se as leis
da termodinâmica se aplicam a um sistema físico particular, é preciso perguntar
se as leis da termodinâmica podem ser
deduzidas daquilo que se sabe desse sistema. Às vezes podem, às vezes não. A
termodinâmica mesma nunca é a explicação de nada -é preciso sempre perguntar por que a termodinâmica se aplica a qualquer sistema que se esteja estudando, o que é feito deduzindo as leis da termodinâmica de qualquer princípio mais fundamental que possa
ser relevante àquele sistema.
Euclidianas
Nesse sentido, não vejo muita diferença entre a termodinâmica e a geometria euclidiana. Afinal, a geometria euclidiana se aplica a uma impressionante variedade de contextos. Se três pessoas concordam que cada uma medirá o ângulo entre as linhas de
visão de outras duas e depois se reúnem e somam esses
ângulos, a soma será 180 graus. E se chegará ao mesmo
resultado de 180 graus para a soma dos ângulos de um
triângulo feito de barras de ferro ou linhas a lápis sobre
um pedaço de papel. Pode parecer que a geometria seja
mais fundamental que a óptica ou a mecânica. Mas a
geometria euclidiana é um sistema formal de inferência
baseado em postulados que podem ou não se aplicar a
uma dada situação. Como sabemos da teoria geral da
relatividade, o sistema euclidiano não se aplica a campos gravitacionais, embora seja uma aproximação muito boa no campo gravitacional relativamente fraco do
planeta em que foi desenvolvido por Euclides.
Quando usamos a geometria euclidiana para explicar
qualquer coisa, estamos confiando tacitamente na teoria geral da relatividade para explicar por que a geometria euclidiana se aplica ao caso em questão.
Falando de dedução, topamos com outro problema:
quem é que faz a dedução? Costumamos dizer que algo
é explicado por algo diverso sem na verdade sermos capazes de deduzi-lo. Por exemplo, depois do desenvolvimento da física quântica em meados da década de 1920,
quando se tornou possível calcular pela primeira vez, de
modo claro e compreensível, o espectro do átomo de hidrogênio e a energia de ligação do hidrogênio, muitos
físicos concluíram imediatamente que toda a química
era explicada pela mecânica quântica e o princípio da
atração eletrostática entre elétrons e núcleos atômicos.
Físicos como Paul Dirac proclamaram que toda a química fora então compreendida. Mas eles não tinham
ainda conseguido deduzir as propriedades químicas de
nenhuma outra molécula senão a molécula de hidrogênio mais simples. Os físicos estavam certos de que todas
essas propriedades eram consequência das leis da mecânica quântica tal como aplicadas a núcleos e elétrons.
A experiência confirmou isso; de fato, agora podemos
deduzir as propriedades de moléculas bastante complicadas -não moléculas tão complicadas como proteínas ou DNA, mas ainda assim moléculas orgânicas bem
impressionantes- fazendo complicados cálculos de
computador, usando a mecânica quântica e o princípio
da atração eletrostática. Quase qualquer físico diria que
a química é explicada pela mecânica quântica e as propriedades simples de elétrons e núcleos atômicos. Mas
os fenômenos químicos nunca serão inteiramente explicados desse modo, e assim a química persiste como
uma disciplina separada. Os químicos não se chamam
de físicos; possuem revistas diferentes e habilidades diferentes das dos físicos. É difícil lidar com moléculas
complicadas pelos métodos da mecânica
quântica, mas ainda assim sabemos que
a física explica por que a química é o que
é. A explicação não está em nossos livros,
não está em nossos artigos científicos, está na natureza; é que as leis da física exigem que a química se comporte da maneira como faz.
Observações análogas cabem a outras
áreas da ciência física. Como parte do
Modelo Padrão, temos uma teoria bem
verificada da força nuclear forte -a força que une tanto as partículas nos núcleos quanto as partículas que compõem
essas partículas- conhecida como cromodinâmica quântica, que acreditamos
explicar por que a massa do próton é o
que é. A massa do próton é produzida
pelas forças intensas que os quarks dentro do próton exercem uns sobre os outros. Não que possamos realmente calcular a massa do próton; não tenho nem
certeza de que tenhamos um bom algoritmo para fazer o cálculo, mas não há
mistério algum sobre a massa do próton.
Sentimos por que é o que é, não no sentido de que o tenhamos calculado ou que
sequer o possamos calcular, mas no sentido de que a cromodinâmica quântica
pode calculá-lo -o valor da massa do próton é definido pela cromodinâmica quântica, embora não saibamos como fazer o cálculo.
Talvez seja muito importante reconhecer que algo foi
explicado, mesmo nesse sentido restrito, porque isso
nos pode fornecer um sentido estratégico de quais problemas abordar. Se você quiser trabalhar no cálculo da
massa do próton, vá em frente, melhor para você. Seria
um belo espetáculo de habilidade de cálculo, mas não
avançaria nossa compreensão das leis da natureza, porque já compreendemos bem o suficiente a intensa força
nuclear para saber que nenhuma lei da natureza nova
será necessária nesse cálculo.
Outro problema com a explicação como dedução: em
alguns casos, podemos deduzir algo sem explicá-lo. Isso
pode parecer um tanto insólito, mas considere a seguinte história. Quando os físicos começaram a levar cosmologicamente a sério o Big Bang, uma das coisas que
fizeram foi calcular a produção de elementos leves nos
primeiros minutos do Universo em expansão. E o fizeram anotando as equações que governam as taxas em
que ocorreram as várias reações nucleares. A taxa de
troca da quantidade (ou "abundância", como dizem os
físicos) de qualquer espécie nuclear é igual à soma dos
termos, cada termo sendo proporcional às abundâncias
da outra espécie nuclear. Desse modo, desenvolve-se
um amplo conjunto de equações diferenciais vinculadas, que depois são introduzidas num computador que
produz uma solução numérica.
Texto Anterior: A Física elegante Próximo Texto: Steven Weinberg: Os limites da explicação científica (2) Índice
|