São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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O sociólogo Sergio Miceli reúne em "Intelectuais à Brasileira" seus escritos sobre a elite cultural do país

A república dos mandarins

Nicolau Sevcenko
especial para a Folha

Assim como o baiano Dorival Caymmi, à certa altura, se pôs a questão "o que é que a baiana tem?", também o intelectual Sergio Miceli se deu a cogitar "o que é que o intelectual brasileiro tem?". A resposta pode não ter sido tão picante quanto a do menestrel nordestino, mas saiu igualmente um samba de primeira.
O livro de Miceli, professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, se compõe de fato de um conjunto de textos, publicados anteriormente na forma de livros, artigos e escritos de ocasião, revistos para a presente edição. O material básico reunido são pesquisas e reflexões configurando a proposta de uma metodologia para o estudo histórico e sociológico da intelectualidade brasileira no período republicano. Apesar das origens e datas diversas (o texto mais antigo é de 77 e o mais recente, de 99), a publicação é oportuna, porque assinala a trajetória consistente de uma das contribuições mais originais e fecundas ao conhecimento das raízes sociais e políticas da elite cultural do país.
O texto-chave nesta coletânea, tomando a maior parte do volume, é "Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-45)", resultado das pesquisas realizadas sob a orientação de Pierre Bourdieu em Paris, apresentado depois como tese de doutorado na Universidade de São Paulo e publicado em 79. Desde que veio a público, o livro se tornou um clássico e tem servido de inspiração e de inestimável instrumento de análise para sucessivas gerações de pesquisadores.
Os objetivos de Miceli ficam nítidos ao considerarmos as três partes básicas de que se compõe seu estudo. Na primeira ele elabora uma sondagem sistemática da geração dos escritores modernistas dos anos 20, indicando seus laços de ligação umbilical com a oligarquia dominante. Aborda também a atuação da Igreja Católica e seu empenho em formar quadros intelectuais para efeitos de agitação e propaganda, assim como a incipiente formação de um mercado de diplomas, voltado para atender as demandas crescentes tanto da produção ideológica quanto da máquina burocrática.
Na segunda parte da pesquisa, Sergio Miceli faz um estudo abrangente da expansão da indústria e do mercado do livro a partir dos anos 30, o que enseja o surgimento de um grupo de escritores, particularmente romancistas, capazes de viver como profissionais das letras. Mas muito embora essa nova condição lhes permita um certo desprendimento do patronato das oligarquias, é o seu status privilegiado de descendentes ou correlatos das elites dominantes que lhes faculta os nexos sociais, assim como o repertório de referências culturais e simbólicas de que depende seu desempenho artístico. Rebentos de famílias decadentes, eles transitam da grande propriedade agrária para o campo literário.

Os intelectuais e o poder
Na terceira e última parte do estudo, o sociólogo se dedica a avaliar as diferentes modalidades de relação que as elites intelectuais passam a manter com o Estado, inflacionado nas suas atribuições e controles após a ascensão de Getúlio Vargas com o golpe de 30 e sobretudo com a implantação do regime ditatorial, resultante da proclamação do Estado Novo em 37. Nesse novo contexto, a tradicional disposição autoritária subjacente ao discurso de homens que falavam pelas elites mandantes é ainda mais exacerbada, adquirindo efeitos censórios, repressivos e dogmáticos de proporções sinistras. Miceli faz o retrato dessas duas novas espécies de mutantes da oportunidade, os escritores-funcionários e os funcionários-escritores.
Um detalhe da maior importância na reedição desse texto inovador foi a decisão louvável de manter o prefácio que lhe dedicou o eminente crítico literário, professor Antonio Candido, na edição original. Essas reflexões introdutórias não só recolocam o livro no ambiente cultural que marcou o seu lançamento como sobretudo recuperam a tensão que ele estabeleceu com práticas, métodos e estilos da crítica literária e da história das idéias.
Antonio Candido enaltece a riqueza e originalidade do enfoque de Miceli, empenhado em desvendar os nexos sociais e políticos da produção intelectual, em vez de se concentrar sobre os elementos de conteúdo e forma característicos das obras, o que, além de convencional, arrisca tomar o discurso dos intelectuais pelo seu valor nominal. Mas na sequência ele formula uma ponderação rigorosa:
"Caberia uma observação sobre o perigo das análises desse tipo, que podem ser qualificadas para simplificar de "ideológicas". Falo do perigo de misturar desde o começo do raciocínio a instância de verificação com a instância de avaliação. O papel social, a situação de classe, a dependência burocrática, a tonalidade política -tudo entra de modo decisivo na constituição do ato e do texto de um intelectual. Mas nem por isso vale como critério absoluto para os avaliar. A avaliação é uma segunda etapa e não pode decorrer mecanicamente da primeira. Apesar da cautela metodológica e do esforço para ver com clareza, Miceli incorre por vezes nessa contaminação hermenêutica".
Que o sociólogo tenha aceitado essa interpelação como legítima fica evidente tanto pelo fato de tê-la incluído por meio desse prefácio quanto pelo fato de ela ecoar como um foco de interlocução por vários outros textos reunidos nessa coletânea. No artigo "Intelectuais Brasileiros", de 99, por exemplo, Miceli soa como se estivesse respondendo diretamente aos comentários de Antonio Candido.
"Mesmo as reações menos hostis às teses centrais do livro traíam certa dificuldade em admitir que os intelectuais pudessem ser objeto de uma visada sociológica. A ambição heurística do trabalho havia se cumprido, ou seja, os termos de equacionamento dos intelectuais com base nas origens e na posição ocupada no interior dos grupos dirigentes serviram para questionar os modos de apreensão e sobretudo os sistemas classificatórios de que se valiam a história e a crítica literárias de feitio tradicional."

Tratamento sociologizante
No "Depoimento" ao final do livro, derivado do memorial de livre-docência apresentado em 92, Miceli se refere ao teor polêmico de seu doutorado como sendo devido a um "extremado tratamento sociologizante, que deixava pouco lugar tanto às idéias e obras dos intelectuais quanto a suas tomadas de posição e aos seus feitos políticos". O que havia resultado de sua opção deliberada de confrontar métodos acríticos, dispostos a reiterar as posições dos escritores, sem checar a extensão de seus compromissos pessoais, familiares e sociais. Mas já no texto de 99, mencionado acima, ele demonstra sua plena disposição de operar com outras disciplinas e enfoques que apontam para referências diversas, para além dessa redução sociológica avessa aos discursos intelectuais. É nesse sentido que ele exalta:
"(...) Os ganhos heurísticos trazidos pela confluência de uma gama diversificada de disciplinas e tradições intelectuais -desde a sociologia e a antropologia, passando pela história social, intelectual e das mentalidades, pela crítica literária, pela filosofia, até as diversas orientações teóricas no interior da história da arte- bem como pelo reconhecimento das vantagens metodológicas associadas à exploração de fontes, modelos, conceitos e abordagens, de enfoques disciplinares complementares".
Afora esse debate seminal, o livro traz ainda contribuições notáveis, como a exposição, com a clareza peculiar ao autor, do seu método "prosopográfico" (significando "biografia coletiva" de um grupo ou categoria social) ou sua análise crítica do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e das políticas brasileiras de administração da memória e do patrimônio histórico. O depoimento ao final é primoroso em assinalar os elementos passionais inerentes a toda autêntica vocação intelectual, no caso a dele.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e professor visitante do King's College da Universidade de Londres. É autor de "A Corrida para o Século 21" (Companhia das Letras).



Intelectuais à Brasileira
440 págs., R$ 36,00
de Sergio Miceli. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3846-0801).



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