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A socióloga Irene Cardoso analisa a universidade e a modernização conservadora dos anos 80 e 90
O presente silencioso
Vinicius Mota
Editor de Opinião
Ninguém vai reinar daqui". Assim falou o chanceler alemão,
Gerhard Schroeder, no evento
que inaugurou, no dia 2 de
maio, a nova e suntuosa sede do governo
de seu país, em Berlim. Enquanto isso, na
França, a opinião pública nacional entrava em mais um processo de catarse. Deu-lhe curso a publicação das memórias do
general Aussaresses, que revelavam as
práticas de tortura, execuções sumárias e
massacres de civis perpetrados por militares franceses na guerra de independência da Argélia (1954-1962).
O Chile continuava a remexer no mais
delicado elemento de seu passado recente. Julgava a participação do general Augusto Pinochet na eliminação de adversários políticos do regime de força que
comandou de 1973 a 1990. Na Argentina,
um debate parecido se abriu com a sentença de um juiz, de sobrenome Cavallo,
considerando inconstitucionais as leis
do Ponto Final e da Obediência Devida.
Para o magistrado, a vigência dessas normas é um bloqueio a que se levem
"adiante as investigações necessárias para identificar os autores e participantes
das violações aos direitos humanos" praticadas no governo militar.
À imagem do mercado
No Brasil,
o público informado estava imerso nas
repercussões de um escândalo no Senado. A não ser por uma ou outra menção
isolada, passava quase despercebido o
fato de que um dos contendores havia sido uma criação política do regime militar. No mais, silêncio.
Talvez esse contexto exprima bem o
sentido da publicação de "Para uma Crítica do Presente", tese de livre-docência
da professora do departamento de sociologia da USP Irene Cardoso. Tema recorrente dos ensaios ali reunidos é o resistir
contra as forças que nos impingem o esquecimento, irmãs das que nos encerram numa espécie de presente absoluto.
O primeiro eixo da argumentação da
autora é o que foi feito da universidade
pública no país. Permanece em essência
a mesma ideologia que norteou as discussões na década de 60 e a modernização conservadora dos anos 80 e 90. Tratava-se, como trata-se, de moldar a universidade à imagem e semelhança do
"mercado".
Revestidos de um estofo de elegância
iluminista, os tucanos tiveram as condições de levar a termo essas reformas de
cunho tecnocrático. Para isso contaram
com a "limpeza" do campo político, que
primeiro submeteu a oposição e, depois,
desencadeou uma guerra sutil, mas eficaz, para desqualificar, por antiquadas,
corporativistas ou simplesmente "neobobas", as vozes dissonantes.
O segundo foco das preocupações de
Irene Cardoso neste livro é a interdição do acesso da memória a eventos que marcaram a reviravolta do regime militar -e com ela uma ruptura profunda
na sociedade brasileira-, concentrados
no ano de 1968.
Atuam no mesmo sentido, o do esquecimento, as forças que interditaram o
prédio da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo na rua Maria Antônia após a sua invasão,
em outubro de 68; as que
retiraram da memória
oficial da universidade o
sentido desse acontecimento; as que instauraram sobre a realidade da
tortura organizada uma
carapaça institucional; as
que instituíram, na anistia, a figura dos
"crimes conexos" entre os que estão livres de investigação e punição. Na perspectiva de uma crítica desse presente silencioso, que mantém rompidos laços
significativos com o passado, a tarefa a
que Irene Cardoso se impõe é a de interpelar os limites da interdição.
Com o Foucault das preocupações
com a ética, a autora busca em Immanuel Kant
uma das tradições que
fundam o pensamento
moderno, a ontogênese
do presente. Quando
Kant pergunta "o que é o
Iluminismo?", está em
sua mira a demarcação da
historicidade do próprio pensamento. O
que nos faz estrangeiros na história do
pensamento universal? Pressionar os limites do presente, situar-se entre o que
já não é e o que ainda não é, significa colocar-se na iminência de transgredi-los.
Deterioração do simbólico
Para o
intelectual, desencadear essa ascese moderna não é tarefa trivial diante do colosso da "midialização" da esfera pública.
Na argumentação da autora, esse fenômeno opera uma deterioração do simbólico na mediação dos fatos da vida
-ou a imediatização das relações sociais. Se tudo tende à homogeneização,
se as oposições, os contrastes e os conflitos tendem a desaparecer do mundo sensível, como resistir?
O risco é o de nos tornarmos próximos
aos pichis, protagonistas do romance do
escritor argentino Rodolfo Fogwill ("Los
Pichiciegos"). Essa comunidade fictícia
que habita o subterrâneo das Malvinas
perdeu todos os referenciais simbólicos
após a guerra contra os ingleses. Só lhe
restaram valores indispensáveis à simples sobrevivência. Os pichis formam
uma autêntica comunidade prática. "E a
morte de uma comunidade prática é, naturalmente, definitiva", escreve a pensadora argentina Beatriz Sarlo, presença
marcante nas reflexões de Irene Cardoso. Abre-se, então, uma brecha. É preciso
narrar, ainda que para exprimir impossibilidade da narrativa na atualidade.
Para uma Crítica
do Presente
286 págs., R$ 23,00
de Irene Cardoso. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP,
tel. 0/xx/11/3032-6382).
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