São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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A socióloga Irene Cardoso analisa a universidade e a modernização conservadora dos anos 80 e 90

O presente silencioso

Vinicius Mota
Editor de Opinião

Ninguém vai reinar daqui". Assim falou o chanceler alemão, Gerhard Schroeder, no evento que inaugurou, no dia 2 de maio, a nova e suntuosa sede do governo de seu país, em Berlim. Enquanto isso, na França, a opinião pública nacional entrava em mais um processo de catarse. Deu-lhe curso a publicação das memórias do general Aussaresses, que revelavam as práticas de tortura, execuções sumárias e massacres de civis perpetrados por militares franceses na guerra de independência da Argélia (1954-1962).
O Chile continuava a remexer no mais delicado elemento de seu passado recente. Julgava a participação do general Augusto Pinochet na eliminação de adversários políticos do regime de força que comandou de 1973 a 1990. Na Argentina, um debate parecido se abriu com a sentença de um juiz, de sobrenome Cavallo, considerando inconstitucionais as leis do Ponto Final e da Obediência Devida. Para o magistrado, a vigência dessas normas é um bloqueio a que se levem "adiante as investigações necessárias para identificar os autores e participantes das violações aos direitos humanos" praticadas no governo militar.

À imagem do mercado
No Brasil, o público informado estava imerso nas repercussões de um escândalo no Senado. A não ser por uma ou outra menção isolada, passava quase despercebido o fato de que um dos contendores havia sido uma criação política do regime militar. No mais, silêncio.
Talvez esse contexto exprima bem o sentido da publicação de "Para uma Crítica do Presente", tese de livre-docência da professora do departamento de sociologia da USP Irene Cardoso. Tema recorrente dos ensaios ali reunidos é o resistir contra as forças que nos impingem o esquecimento, irmãs das que nos encerram numa espécie de presente absoluto.
O primeiro eixo da argumentação da autora é o que foi feito da universidade pública no país. Permanece em essência a mesma ideologia que norteou as discussões na década de 60 e a modernização conservadora dos anos 80 e 90. Tratava-se, como trata-se, de moldar a universidade à imagem e semelhança do "mercado".
Revestidos de um estofo de elegância iluminista, os tucanos tiveram as condições de levar a termo essas reformas de cunho tecnocrático. Para isso contaram com a "limpeza" do campo político, que primeiro submeteu a oposição e, depois, desencadeou uma guerra sutil, mas eficaz, para desqualificar, por antiquadas, corporativistas ou simplesmente "neobobas", as vozes dissonantes.
O segundo foco das preocupações de Irene Cardoso neste livro é a interdição do acesso da memória a eventos que marcaram a reviravolta do regime militar -e com ela uma ruptura profunda na sociedade brasileira-, concentrados no ano de 1968.
Atuam no mesmo sentido, o do esquecimento, as forças que interditaram o prédio da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo na rua Maria Antônia após a sua invasão, em outubro de 68; as que retiraram da memória oficial da universidade o sentido desse acontecimento; as que instauraram sobre a realidade da tortura organizada uma carapaça institucional; as que instituíram, na anistia, a figura dos "crimes conexos" entre os que estão livres de investigação e punição. Na perspectiva de uma crítica desse presente silencioso, que mantém rompidos laços significativos com o passado, a tarefa a que Irene Cardoso se impõe é a de interpelar os limites da interdição.
Com o Foucault das preocupações com a ética, a autora busca em Immanuel Kant uma das tradições que fundam o pensamento moderno, a ontogênese do presente. Quando Kant pergunta "o que é o Iluminismo?", está em sua mira a demarcação da historicidade do próprio pensamento. O que nos faz estrangeiros na história do pensamento universal? Pressionar os limites do presente, situar-se entre o que já não é e o que ainda não é, significa colocar-se na iminência de transgredi-los.

Deterioração do simbólico
Para o intelectual, desencadear essa ascese moderna não é tarefa trivial diante do colosso da "midialização" da esfera pública. Na argumentação da autora, esse fenômeno opera uma deterioração do simbólico na mediação dos fatos da vida -ou a imediatização das relações sociais. Se tudo tende à homogeneização, se as oposições, os contrastes e os conflitos tendem a desaparecer do mundo sensível, como resistir?
O risco é o de nos tornarmos próximos aos pichis, protagonistas do romance do escritor argentino Rodolfo Fogwill ("Los Pichiciegos"). Essa comunidade fictícia que habita o subterrâneo das Malvinas perdeu todos os referenciais simbólicos após a guerra contra os ingleses. Só lhe restaram valores indispensáveis à simples sobrevivência. Os pichis formam uma autêntica comunidade prática. "E a morte de uma comunidade prática é, naturalmente, definitiva", escreve a pensadora argentina Beatriz Sarlo, presença marcante nas reflexões de Irene Cardoso. Abre-se, então, uma brecha. É preciso narrar, ainda que para exprimir impossibilidade da narrativa na atualidade.



Para uma Crítica do Presente
286 págs., R$ 23,00
de Irene Cardoso. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/3032-6382).



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