São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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Edição em livro de "O Cabrião" resgata as tensões da São Paulo pré-industrial

Retrato de uma Província emergente

Gilberto Maringoni
especial para a Folha

Um pequeno jornal de curtíssima duração -de setembro de 1866 a setembro de 1867- tornou-se a mais importante publicação ilustrada de São Paulo no período imperial. É também um precioso retrato das tensões que marcaram uma cidade provinciana e monótona, de 20 mil habitantes, prestes a entrar num vertiginoso ciclo de expansão. O jornalzinho semanal de oito páginas chamava-se "O Cabrião", título inspirado num personagem do folhetim "Os Subterrâneos de Paris", de Eugène Sue, muito popular na época.
Era editado pelo caricaturista italiano Angelo Agostini e pelos jornalistas Américo de Campos -um dos fundadores de "A Província de S. Paulo", atual "O Estado de S. Paulo"- e Antônio Manoel dos Reis.
A editora Unesp e a Imprensa Oficial do Estado acabam de relançar a edição fac-similar dos 51 números do "Cabrião", organizada por Délio Freire dos Santos, esgotada há 20 anos. Por meio de suas páginas, pode-se verificar que não era apenas a cidade que estava prestes a se transformar. Os desenhos do jovem Agostini (1843-1910), estrela da publicação, já eram o prenúncio de sua melhor fase, vivida no calor das campanhas abolicionista e republicana, 20 anos depois. E assinalavam também o início do que viria a ser a multiplicação dos jornais ilustrados nas últimas décadas do século 19.
"O Cabrião" logo de saída mostra a que veio. Ligado aos liberais, suas páginas desancam o clero, a imprensa conservadora -em especial o "Diário de S. Paulo"- e os símbolos mais caros da oligarquia emergente. Na sexta edição, uma charge intitulada "O Cemitério da Consolação no Dia de Finados" rende-lhe um processo criminal cuja repercussão ultrapassou os marcos da Província.
No desenho, senhores de fraque e cartola, com garrafas e copos nas mãos, confraternizam-se com esqueletos e cadáveres no meio dos túmulos. "Um atentado contra a moral e a religião", classificou Candido Silva, diretor do "Diário", no processo, o primeiro movido no Brasil por conta de uma caricatura. Após um intenso debate na imprensa e entre a população, "a polícia declarou inocente a estampa responsabilizada e livre de culpa e pena o responsável", noticiou a edição de 16 de dezembro.
Na verdade, a absolvição era um prenúncio de novos tempos. São Paulo começava a viver sob o signo do afluxo de capitais gerados pela expansão cafeeira. O editorial da edição de 24 de fevereiro de 1867 assinalava que "o velho, silencioso e taciturno São Paulo de outro tempo rejuvenesce ao calor das fogueiras do progresso.(...) Em cada arrabalde, largo, rua, travessa, esquina ou beco encontram-se traços indeléveis da civilização". A monotonia estava deixando de ser quebrada apenas pela atividade dos estudantes de direito do largo São Francisco.

Versatilidade
"O Cabrião" foi o segundo jornal editado por Angelo Agostini, após sua chegada ao Brasil, em 1859.
Antes, ele participara do também paulistano "O Diabo Coxo" (1864-1865). Em ambos, sua versatilidade já se fazia notar. Sequências de acidentes de trem, catástrofes e cenas cotidianas eram retratadas numa linguagem que décadas depois seria chamada de histórias em quadrinhos. A Guerra do Paraguai (1865-1870) mereceu incontáveis charges e caricaturas, em cuja maioria Caxias era exaltado como herói da pátria.
Apesar de se livrar do processo judicial, "O Cabrião" não cessou de receber pressões dos estudantes de direito, do clero e da elite paulistana. Sufocado por problemas econômicos, o editorial de seu último número avisa: "Chegando ao fim de seu primeiro ano, tendo a liquidar contas retardadas de seus assinantes, a empresa julga oportuno interromper a publicação do jornal por algumas semanas. (...) Em breve prazo estará no seu posto".
A promessa não se cumpriu. Um mês depois, Agostini estava nas páginas do "Arlequim", no Rio de Janeiro, dando sequência a uma carreira que só terminaria com sua morte, 42 anos depois.


Gilberto Maringoni é jornalista, cartunista e co-autor de "A Imagem e o Gesto - Fotobiografia de Carlos Marighella" (ed. Fundação Perseu Abramo).


Cabrião
408 págs., R$ 65,00
Délio Freire dos Santos (org.). Imprensa Oficial/Editora Unesp (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 232-7171).




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