São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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+ Cultura

A esperança racional

Exposição "Geometria da Esperança", com obras da Fundação Cisneros, mostra América Latina esquecida

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Emergir do caos é uma missão", disse certa vez Lygia Pape. Essa bem poderia ser a epígrafe da exposição "Geometry of Hope" (Geometria da Esperança) que foi apresentada no Museu Blanton, em Austin, Texas / -seguindo depois para Nova York /.
A mostra consiste em uma seleção de obras abstrato-construtivas retiradas da coleção Cisneros. A curadoria buscou criar uma explanação lógica em dois planos consecutivos: um geográfico e outro temporal e linear, partindo da elaboração do construtivismo latino-americano desde os anos 1930, em Montevidéu, passando pelas vanguardas construtivas e concretas (e seus desdobramentos) de Buenos Aires (anos 40), São Paulo e Rio de Janeiro (anos 50 e 60) e Caracas (anos 60 e 70). Entre elas, surge uma parte dedicada a Paris, cidade-espelho, lar físico ou mental de muitos dos artistas apresentados.
Concretismo marxista
Nessa cartografia de nosso desejo de construtividade, 125 obras de mais de 40 artistas são apresentadas. No início, se destacam a pregação universalista-construtiva de Torres-García (está lá seu fabuloso "Construção em Branco e Preto", de 1938) e os trabalhos ligados ao seu famoso ateliê.
Em seguida, entramos na Buenos Aires dos grupos Concreto-Invención e Madí. Vemos a coerência e radicalidade das construções de Gyula Kosice, de Alfredo Hlito, com seus ritmos cromáticos, e a musicalidade vibrante dos temas de Tomás Maldonado (que antecipam aspectos tanto do concretismo paulistano quanto do cinetismo venezuelano).
Em São Paulo, o espelho argentino se desdobra no concretismo, marxista e industrialista, de Waldemar Cordeiro e sua "Idéia Visível" (tela de 1956) e em belos e raros trabalhos de Geraldo de Barros.
Sutilmente, a "passagem", sempre discutida, do concretismo paulistano para o neoconcretismo carioca, é marcada pelas obras de Mira Schendel (que logo adiante fará um estupendo diálogo com a venezuelana Gego). Na parte carioca (que no catálogo da exposição é explicada pelo curador brasileiro Paulo Herkenhoff), além de Oiticica e os "Bichos" de Lygia Clark, destaque para a belíssima série "Livro da Criação", de Lygia Pape.
O percurso termina em um espelhamento entre Paris (apresentada no catálogo pelo grande historiador francês Serge Guilbaut) e Caracas. Vemos as obras de Gego, Jesús Soto e Cruz-Diez no caminho de sua institucionalização como a arte "oficial" venezuelana.
Assim, a racionalidade construtiva, projeto utópico latino-americano, aparece relacionada às conseqüentes modernizações urbanas do continente.
Urbanidade crescente (e então otimista), desejo de clareza e sentido de construção e ordem se espraiam de sul a norte, em pleno contexto progressista (e esquerdista) do desenvolvimentismo econômico, que antecedeu as "desconstruções" das ditaduras militares, da afirmação da cultura de massa e das crises econômicas de dependência do capitalismo global.
Males de origem
A exposição apresenta uma América Latina -que os norte-americanos desconhecem e que os sul-americanos parecem ter esquecido- que, mesmo sem resolver seus "males de origem", acreditou e formalizou uma promessa de felicidade e de grandeza.
Uma "identidade", sim, mas sem exotismos e fixações identitárias de "origem" ou "tradição". Nosso último modernismo foi infinitamente mais interessante que nosso atual pós-modernismo.
A exposição foi realizada pela equipe de curadores do museu, chefiada por Gabriel Pérez-Barreiro, atual curador da Bienal do Mercosul. A julgar por essa exposição norte-americana, creio que teremos uma ótima bienal em Porto Alegre /.
PontodeFuga
O colunista Jorge Coli está em férias

FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na USP.


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