São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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+ Literatura

A dose diária de ar

A austríaca Elfriede Jelinek, Nobel de Literatura em 2004, escreve sobre seu conterrâneo Thomas Bernhard

ELFRIEDE JELINEK

o gigante morreu. o obstáculo que ninguém podia evitar. ele escreveu seu corpo doente e se inscreveu nele, como se, além de lutar para respirar, o doente tivesse que produzir, dia após dia, na fábrica de seu corpo, uma nova dose de ar. não por acaso, ele foi um poeta da palavra (e não da escrita).
Foi a experiência da tuberculose, na mais tenra juventude, que lhe arrancou as grandes tiradas de sua obra: falo, logo existo; e, enquanto estiver falando, não estarei morto.
Os amigos contam que ele era capaz de falar horas e horas sem interrupção, muitas vezes mais de dez horas de enfiada, e que, quando lhe suplicavam que parasse, reclamava o direito de falar mais duas.
E, para não ter de pensar o horror até o fim, esse músico consumado elaborara sua própria técnica de repetição, propagada ritmicamente como uma onda sinusóide ininterrupta, à qual nada era capaz de subtraí-lo, mesmo quando tudo já fora repetido cem vezes.
É portanto a experiência da falta -do pouco ar- que produziu a respiração devastada e inflamatória desse paciente obrigado a falar para viver.
O bafio austríaco, esse arzinho malsão, deve ter sido mais que suficiente para, ao longo da vida inteira, acabar por fulminá-lo.
Da falta de ar no pavilhão Hermann -entre outros nomes que se dão a esses centros de detenção em que, "pelo menos do ponto de vista da gente sadia, os doentes não têm mais nenhum direito"- a uma literatura da expansão infinita.
Dos pacientes amordaçados, "que dependem da caridade dos ricos", à bocarra aberta que diz a verdade sobre a Áustria e que "sempre foi vista como uma incongruência absoluta".

Doentes e poetas
Um pouco de espaço para os doentes! E para os poetas também! Mas cuidado: à maneira dos doentes em quarentena, os poetas se metem onde não têm o que fazer: na realidade política do país, território exclusivo dos políticos que se arrogam o privilégio de manter a rédea curta, para que ninguém mais a arrebate!
Vamos, poeta, de volta ao hospital, mas agora não para a pneumologia, direto para a psiquiatria! É lá que vão saber o que fazer, não vão deixar que ele volte logo retorne ao corpo sadio do povo.
Creio que foi a experiência muito precoce da doença que aguçou de vez o olhar de Thomas Bernhard /, que o fez ficar obstinadamente onde estava, para que ninguém lhe tomasse o lugar.
"O procedimento é conhecido: tão-logo o doente parte, a gente sadia imediatamente toma seu lugar, isto é, toma posse de seu lugar, e então o doente, que não estava morto, como todos pensavam, retorna e reclama seu lugar de volta, quer retomar posse, o que revolta a gente sadia."
Sem fazer caso de nada, o poeta sem fôlego deve sempre reconquistar sua porção de realidade. Ele a mete na boca, criança voraz, ele põe de lado a multidão da gente sadia, ele a repele e até mesmo a aniquilaria para retomar seu lugar e "dizer a verdade".
Como nenhum outro, esse homem colérico acreditou na sociedade austríaca, assim como o doente desesperado gostaria de estar entre gente sadia, justamente porque ela lhe infunde o sentimento de não pertencer, justamente porque ela o expulsa, horrível legitimação de tudo o que ela mesma é.
Em seu papel de crítico, e de crítico arquetípico, Bernhard confirma, no ímpeto de criticá-la, essa sociedade que há muito se tornou a substância de sua vida.
O poeta Reinhard Priessnitz, já morto também, dizia que Bernhard era um "grão-senhor" e que esse era o seu papel. Ainda moço, Bernhard estudava com afinco a "boa" sociedade; queria ser parte dela e, quanto mais perto chegava, quanto mais ela lhe pertencia, mais direito tinha de sacudi-la e despedaçá-la, para afinal ver-se despedaçado pelas garras dela.

Rituais complicados
A "boa" sociedade exclui sem rodeios quem quer que tente se integrar com sofreguidão -todos esses rapazes e moças de província que, sob o açoite do terror católico-romano ou sob as mesas de albergues nazistas, estudaram desde sempre os rituais complicados da classe dominante de Viena: fazer compras na galeria Knize ou nas joalherias do Graben e passear pelo Kohlmarkt! Como se bastasse conhecer alguma coisa das regras do jogo para escolher em sossego o lugar onde se vai viver.
Mas, quando chega a hora de receber um prêmio, o poeta se senta incógnito no meio do público e, novo senhor, membro da academia, mal consegue abrir caminho entre as fileiras tomadas de espectadores.
E todos, confortavelmente instalados, devem deixar o premiado sair do meio da platéia, lançando-lhe olhares que lhe envenenam e perfuram o corpo: "Eu mesmo me meti na gaiola".
Como não pensar em / Bachmann, a poeta de província número dois, a quem Bernhard, em "Extinção" /, prestou uma homenagem tão bela?
Com a diferença que Bachmann, sendo mulher, falou da sociedade como uma grande cena de crime, na qual os "modos de morrer" podem bem variar, mas da qual ninguém escapa. Uma mulher não pode ver as coisas de outro modo. Bernhard, de sua parte, estava condenado a desprezar sem descanso o canto que lhe coubera.
Bachmann, moribunda, a mão queimada, não conseguia nem sequer imaginar um lugar em que pudesse viver. Thomas Bernhard populou o seu lugar de não-vidas, de máquinas celibatárias, de fragmentos de velhas taças que, esvaziadas de substrato filosófico, não são mais que conchas vazias de filosofia ou, último fetiche, de pensamento.
Fala de coisas, mas de coisas que não são coisas, um pouco à maneira dos célebres MacGuffin dos filmes de Hitchcock -formações que permanecem sempre vagas, mas que nem por isso deixam de ser a chave de toda a ação-, cones gigantescos que povoam as quimeras sombrias dos mundos literários de Bernhard, biografias de compositores jamais escritas, tratados de ramificações remotas que mantêm vivo o autor, por mais que ninguém saiba de que se trata, histórias intricadas de sanatório ou interpretações virtuosísticas e inimitáveis de um mestre do piano ou, em termos mais gerais, o fetiche viril por excelência: a proeza maior, absoluta, máxima, única e imbatível.
E, todavia, a academia que premiou o poeta não soube reconhecê-lo, sentado no meio do público. Durante a cerimônia, a ministra roncou alto, para depois exclamar: "É esse o tal poeta?".
Bachmann queimou-se até morrer. Bernhard sufocou-se a vida inteira.

Este texto foi publicado no "Le Monde".Tradução de Samuel Titan Jr.


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