São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Livros

Guerra e memória

Em uma Milão ocupada pelos nazistas, "Homens e Não", do italiano Elio Vittorini, apresenta uma literatura engajada influenciada pelo existencialismo nascente e pela literatura dos EUA

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poucos livros são tão representativos de uma época quanto este "Homens e Não", de Elio Vittorini /.
Escrito em 1944 e publicado no ano seguinte, numa Milão semidestruída e ocupada pelos nazistas, o romance pode hoje ser lido, grosso modo, em duas chaves: como monumento à Resistência e aos valores do humanismo e, simultaneamente, como ruína desses mesmos valores.
Isso porque, ao mesmo tempo em que faz uma clara distinção entre barbárie e civilização -ou, em outros termos, entre o humano e o inumano-, o livro também nos devolve a enorme distância que o separa de nossa experiência contemporânea.
Desde pelo menos meados dos anos 30, depois de publicar em revistas italianas os romances "O Cravo Vermelho" (1934) e "Conversa na Sicília" (1939), Vittorini se tornou uma figura de ponta da nova cultura italiana.
Tendo sido simpatizante do fascismo na juventude e muito influenciado pelo escritor e jornalista Curzio Malaparte (1898-1957), o autor aproximou-se aos poucos dos comunistas e chegou a ser um de seus intelectuais mais importantes, até que uma famosa polêmica com Palmiro Togliatti, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano, o fez desligar-se do partido.
Sempre avesso a dogmatismos, Vittorini fez literatura engajada e política, sim. Não porque quisesse panfletar esta ou aquela idéia e obter o aplauso dos companheiros, mas porque entendia que a própria vida e, conseqüentemente, a literatura, era política "per se".
Mais especificamente, e isso se torna evidente na leitura de "Homens e Não", Vittorini estava imbuído daquela "concepção "agonística" da literatura, submetida ao duplo influxo do existencialismo nascente e da literatura norte-americana", como notou o crítico Giacinto Spagnoletti.
Por isso seu texto é todo feito de frases curtas, reiteradas, diálogos rápidos, de que resulta um lirismo áspero e descarnado.
Estilo que já atingira plena maturidade em seu romance mais conhecido, "Conversa na Sicília" /, publicado em livro em 1941 e que muito deveu à leitura e tradução da literatura norte-americana, sobretudo Steinbeck, Saroyan e Faulkner.
O enredo de "Homens e Não" se passa no inverno de 1944, "o mais ameno dos últimos 25 anos".
Na cena inicial, vê-se o protagonista correndo de bicicleta em direção à mulher que ama, como num filme neo-realista italiano. Ele, o protagonista, é Ene 2 (quase todos os personagens do livro são identificados por codinomes, para dificultar o trabalho das milícias nazistas); ela é Berta, casada com outro, uma paixão desde a infância.
Entre um "aparelho" e outro, Ene 2 se esconde enquanto planeja com outros companheiros uma série de ataques a postos estratégicos das forças de ocupação. À medida que acompanha de perto os movimentos dos "partisans", liderados por Ene 2, e dos nazistas aquartelados, o narrador abre outra linha de frente em direção ao passado.
O enredo, assim, oscilará entre o presente histórico da Resistência e um passado em parte haurido da memória, em parte projeção onírica dos desejos infantis de absoluto.
Outra oscilação, simétrica à primeira, se dá no plano formal, já que a narrativa se desenvolve em dois registros bem marcados: a observação quase hiper-realista do fato histórico e a evocação lírica da infância; a abordagem crua e por vezes patética da guerra em Milão e o retorno insistente ao passado numa Sicília mítica e difusa.

Milão e Sicília
Esse duplo movimento, aliás, ganhou excelente transposição visual nesta bela edição brasileira, que traz nas folhas de guarda uma imagem da Milão devastada por bombardeios e o casario antigo de Ragusa, na Sicília.
No entanto, um dos maiores méritos do romance é ter feito que esses dois pólos não se resolvessem nem se completassem numa unidade harmônica, como aconteceu a tanta ficção engajada e ruim daquela época, mas permanecessem até o fim como "duas tensões inconciliáveis".
Entre a necessidade de combater o nazismo e a vontade de realizar-se afetivamente com Berta, entre a política e o amor, Ene 2 opta por ambos e termina acuado num apartamento, enquanto companheiros seus conseguem fugir.
Sua situação final lembra uns versos de Drummond escritos na mesma época: "Uma criatura que não quer morrer e combate,/ contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,/ contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate" (do poema "Carta a Stalingrado").
Retomando e concluindo o que foi dito no início: se naquele momento histórico ainda era possível fazer uma clara distinção entre "homem" e "não", hoje, quando todos os gatos parecem pardos e o "estado de exceção" vai-se tornando paulatinamente -segundo o filósofo Giorgio Agamben- a regra em nossos Estados de Direito, tal perspectiva se mostra inviável ou, no melhor dos casos, improvável.
Para o bem ou para o mal, a literatura deixou de ser expressão de valores coletivos, políticos, compartilhando a mesma atomização de nossas sociedades avançadas.

MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


HOMENS E NÃO
Autor:
Elio Vittorini
Tradução: Maria Helena Arrigucci
Editora: Cosacnaify
(tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 40 (264 págs.)

>

Texto Anterior: Hábitos entranhados
Próximo Texto: Palavras sem sentido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.