São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Front sem censura

"Um Escritor na Guerra" destaca o papel dos soviéticos nos combates contra os nazistas

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

H á farta informação no Brasil sobre o papel dos americanos e dos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Os ataques aéreos a Londres, o bombardeio de Pearl Harbor, o desembarque na Normandia no Dia D, a libertação de Paris, tudo isso está profusamente documentado, romanceado e filmado.
O papel dos soviéticos, no entanto, não tem recebido o mesmo tratamento. A disputa ideológica entre EUA e União Soviética explica o descaso, estando o Brasil na esfera de influência americana. Mas, do ponto de vista histórico, a discrepância não se justifica: o Exército Vermelho, ao vencer os nazistas na batalha de Stalingrado, foi decisivo para o resultado da guerra. A menor atenção ao front oriental está sendo parcialmente compensada com a publicação de "Um Escritor na Guerra - Vasily Grossman com o Exército Vermelho, 1941-1945" (ed. Objetiva, trad. Bruno Casotti, 495 págs., R$ 56,90), editado pelo historiador inglês Antony Beevor e Luba Vinogradova, sua assistente. Desconhecido no Brasil, Grossman (1905-64) é considerado um dos grandes escritores russos do século 20.
Seu romance "Vida e Destino", baseado nos fatos relatados em "Um Escritor na Guerra", foi elogiadíssimo pelo exigente crítico George Steiner e pelo escritor inglês Martin Amis, que o considera o Tolstói da era soviética.
O livro agora traduzido é uma reunião de anotações pessoais, cartas e artigos, material produzido nos mais de mil dias em que Grossman esteve na frente de batalha como correspondente do jornal "Estrela Vermelha".
Os textos são encadeados pela edição, que também faz a ponte entre os trechos, minimizando o caráter fragmentário da obra.

Tabus
O que torna o livro especialmente relevante é a perspectiva do autor. Apesar de trabalhar para um jornal oficial, apenas descreve o que testemunha, sem enaltecer os militares soviéticos nem o próprio Stálin, o que seria esperado de um jornalista a serviço do governo. Abordando temas tabus, em desacordo com a cartilha comunista, Vasily é tido como "politicamente ingênuo" por Beevor, para quem só um "milagre" explica que tenha escapado dos expurgos stalinistas. Não há dúvida de que Grossman se expôs. Sobre o comportamento de soldados, escreve: "Coisas horríveis estão acontecendo com as mulheres alemãs. Um alemão educado, cuja mulher recebeu "novos visitantes" -soldados do Exército Vermelho-, está explicando com gestos expressivos e palavras russas mal pronunciadas que ela já foi estuprada hoje por dez homens."
Vasily também aponta o medo dos compatriotas. Muitos atiravam nas próprias mãos para evitar a frente de batalha; outros tentavam fugir do combate e eram abatidos por destacamentos que formavam uma segunda linha de ataque com o objetivo de "combater a covardia".

Colaboracionismo
O autor ainda descreve como muitos soviéticos perseguidos pelo stalinismo chegaram a colaborar com o inimigo -outro assunto proibido. Claro que nada disso era publicado. Em carta à mulher, ele lamentou: "Se você visse como eles cortam e alteram [meu texto], e não apenas isso, como também acrescentam frases a meus pobres artigos, provavelmente ficaria mais perturbada do que feliz com o fato de meus textos verem a luz".
Algumas coisas, porém, passavam. Um artigo sobre o campo de extermínio de Treblinka foi citado como prova no tribunal de Nuremberg. Um dos primeiros a chegar ao local após a derrota dos nazistas, Vasily descreveu o horror do que viu ou ouviu: fetos queimavam sobre o ventre aberto das mães, crianças eram obrigadas a espalhar cinzas humanas pelas estradas.
O autor imagina que alguém poderia perguntar sobre o porquê de escrever sobre isso. E responde: "É dever do escritor contar essa terrível verdade, e é um dever civil do leitor aprender isso".


OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).


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