São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Os livres e os escravos


Giacometti, magro, criava uma humanidade emagriçada, vitimada por uma solidão metafísica; ao contrário, Calder, gordo, gourmet e guloso, era apaixonado pela vida em cada minuto


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Os modernos foram sérios e se levaram a sério. Tinham ambições elevadas para as artes, viveram num século de horrores.
Nessa paisagem carregada, o espírito de Calder irradia a mais plena das felicidades. É curioso pensá-lo junto do outro escultor maior de seu tempo, Giacometti, que, magro, criava uma humanidade emagriçada, grudada ao chão em passos impossíveis, vitimada por uma solidão metafísica.
Ao contrário, Calder, gordo, gourmet e guloso, apaixonado por vinhos, apaixonado pela vida em cada minuto, cada respiração, era generoso com os amigos e feliz consigo mesmo.
Sua arte é uma bricolagem de gênio. São formas flutuantes que se suspendem no espaço, em movimentos vagos, preguiçosos: os célebres móbiles. São formas fixas, habitando a atmosfera com suas estruturas sem rigor, que se sustentam umas às outras em apoios irregulares e elegantes.
Na Pinacoteca do Estado, uma exposição de tamanho justo, pensada com inteligência e rigor, expõe as relações de Calder com o Brasil. Reúne obras pertencentes a acervos brasileiros, que são numerosas, mais do que se podia esperar.
É documentada com clareza e sem didatismo. As esculturas estão lindamente iluminadas: a última sala, com o móbile do IAB, faz o espectador como que levitar junto com a obra. Essa mostra foi o fruto de uma pesquisa aprofundada, que resulta no catálogo "Calder no Brasil" (org. Roberta Saraiva, Cosacnaify, 288 págs., R$ 85).
Dois senões, pequenos, que não comprometem muito. De um lado, a paranóia museográfica que prende os pequenos móbiles em vitrines, tornando-os "imóbiles". Ao invés de navegarem no ar, pairam como balanças equilibradas. A sacralização e certamente também o valor vertiginoso dessas peças impõem precauções que lhes roubam um pouco da alma.
De outro lado, a concepção do projeto gráfico que presidiu o catálogo, escolhendo, em maneira arbitrária, o tamanho das fotos. Reduz muito algumas (e deixa um luxo de espaço nas páginas), a ponto de dificultar a decifração de algumas delas, como a dos projetos de Calder para a exposição no Masp de 1948, francamente ilegíveis.
Mas não importa: são raros os trabalhos em história da arte no Brasil que atingem o nível alto desse livro.

Submissão
A mulher tem suas roupas caídas. É jovem, é muito bela, expõe quase todo o corpo que foi despido. Seu olhar parece, ao mesmo tempo, cansado e canalha. No pescoço, uma tabuleta pendurada diz: "Virgo, XXI annus nata": virgem, nascida há 21 anos. É "A Escrava Romana". Deve ser o quadro mais erótico de toda a arte brasileira.
Seu autor é Oscar Pereira da Silva. A Pinacoteca lhe consagra uma de suas numerosas exposições simultâneas. Pintor de renome, não hesitou, várias vezes, em transformar sua arte em ofício. Fez soberbas cópias, de Rivera, de Prud'hon, de Amoedo, entre outros mestres.
Não dá a impressão de uma "forte personalidade", como se diz, mas antes de um talento capaz de belas coisas, de uma força que emerge misteriosamente em certos casos, como no retrato de Ramos de Azevedo, copiado de fotografia.
Às vezes, suas pinturas parecem antigas fotos aquareladas, como as das japonesas, que sem dúvida derivam de velhos cartões-postais.
Em algumas desponta um surrealismo involuntário, como nessa multidão que posa para a tela "Antigo Caminho do Mar", cada um com o rosto minúsculo, mas fixo e imóvel, como numa fotografia 3x4.

jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Discoteca básica
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.