São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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O império do efêmero

Organizador, com Olgária Matos, da tradução da obra de Benjamin, prevista para sair na semana que vem, o crítico Willi Bolle fala do projeto e diz que as passagens de Paris anteciparam os shopping centers

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Uma das obras mais ambiciosas já concebidas e escritas sobre a ascensão e a consolidação da sociedade burguesa no século 19, "Passagens" (ed. UFMG/ Imprensa Oficial de SP, 1.168 págs., R$ 210], de Walter Benjamin, finalmente sai em português, sob coordenação dos professores da USP Willi Bolle e Olgária Matos.
Obra monumental, esboçada entre 1927 e 1929, ela reúne fragmentos compilados pelo filósofo alemão ao longo de vários anos de pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris.
Na entrevista abaixo, Bolle lembra que só a parte principal do livro -as "Notas e Materiais"- se constitui de "um imenso arquivo de quase mil páginas, subdividido em 36 cadernos temáticos, com um total de 4.234 fragmentos".
Justapostos e permeados por comentários fulgurantes de Benjamin [leia trechos abaixo], esses fragmentos compõem, em sua forma, uma das interpretações mais inusitadas do século 19. Pois, longe de ser um tratado acadêmico -embora também seja rigoroso-, "Passagens" é por excelência uma "obra em progresso".
Seu ponto de inflexão -as "passagens"- são as galerias cobertas que passaram a povoar Paris na virada do século 18 para o 19, como a do Cairo, de l'Opéra, a Vivienne ou a Véro-Dodat, várias delas hoje já demolidas.
É nelas que Walter Benjamin vê tanto o domínio da técnica, por meio da construção em vidro e ferro, quanto a implementação de uma nova sociabilidade burguesa, onde casa e rua se confundem, antecipando os shopping centers do final do século 20. Em seu entorno circulam os personagens-guia de Benjamin, em larga medida tomados de empréstimo de Baudelaire: o trapeiro, o flâneur e a prostituta.
Mas em Benjamin a obsessão em compilar o saber, sua erudição sem limites, caminha de mãos dadas com a consciência da própria impossibilidade de seu projeto. E, aqui, "Passagens" é a síntese, na forma e no conteúdo, da profissão de fé modernista: a percepção dolorosa de que o esforço titânico do conhecimento resultará em algo inconcluso.
Exemplo disso são os labirintos sem fim dos esgotos parisienses -aliás, um dos momentos mais fascinantes de todas essas imensas "Passagens".

 

FOLHA - Qual a importância de "Passagens" no conjunto da obra de Walter Benjamin?
WILLI BOLLE
- As "Passagens", que focalizam a cidade de Paris como "capital do século 19", ou seja, como lugar por excelência da modernidade, representam o principal projeto em toda a produção de Benjamin. Ele foi um apaixonado pelas cidades, como já mostram sua tradução dos "Quadros Parisienses", de Baudelaire, seu livro "Rua de Mão Única", que é uma iniciação à metrópole moderna, e o "Diário de Moscou", onde a fisionomia da grande cidade e da mulher amada se sobrepõem em toda parte. Enquanto "O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão" e "Origem do Drama Barroco Alemão" são estudos acadêmicos, a forma de composição das "Passagens" é mais livre, um gênero intermediário entre a rigorosa pesquisa do scholar e a "desordem produtiva" e "enciclopédia mágica" do colecionador e do flâneur. "Passagens", esboçado entre 1927 e 1929, constituiu de 1934 a 1940 "o teatro de todos os combates" de Benjamin, mas não chegou a ser terminado. Por vários motivos e circunstâncias: a condição de emigrado, que vivia em Paris no limite da subsistência; o perigo iminente e a eclosão efetiva da Segunda Guerra; a abrangência do tema, a ambição metodológica e as dificuldades teóricas; a expectativa máxima que o Instituto de Pesquisa Social, dirigido por Horkheimer e Adorno, tinha em relação a essa obra; as divergências teóricas que levaram à recusa do livro-modelo sobre Baudelaire; e, finalmente, a fuga de Paris, em 1940, seguida da travessia dos Pirineus e do suicídio do autor. O manuscrito das "Passagens", que fora guardado por amigos de Benjamin em Paris, foi posteriormente entregue a Adorno. Um discípulo deste, Rolf Tiedemann, realizou o trabalho de decifrar os originais e de publicar o conjunto em 1982, após 14 anos de trabalho.

FOLHA - Como foi feito o trabalho de organização e tradução de "Passagens" para o português?
BOLLE
- Comecei o trabalho de organização em 2001 juntamente com minha colega Olgária Matos. Quanto à tradução, estamos diante de um texto bilíngüe: aproximadamente 2/3 em alemão e 1/3 em francês. De alguns trechos das "Passagens" já existiam publicações para o português. Consultei-as durante o processo de revisão.

FOLHA - Por que Benjamin escolheu as passagens parisienses como ponto de inflexão e compreensão da civilização burguesa do século 19 (e não, por exemplo, as estradas de ferro ou os "grands magasins" tematizados por Zola)?
BOLLE
- As passagens são para Benjamin um lugar mítico onde se sobrepõem a rua e a casa, e, com isso, os espaços normalmente separados da esfera pública e do domínio particular. Esse é um traço diferenciador decisivo em comparação com as ferrovias e os "grands magasins". Reforçando essa opção, a palavra "passagens" é um achado poético, pois abre para um instigante leque semântico: 1) A referência topográfica, arquitetônica, urbanística, com a ambição de representar uma "imagem do mundo".
2) A referência temporal, como passagem da era das revoluções para a era do capital e dos impérios; ou da iluminação com lamparinas de óleo a bicos de gás e a lâmpadas elétricas e, com isso, a simbolização do "efêmero" dos surrealistas e do próprio fluir da história.
3) A referência ao próprio modo de escrever a história de Paris, de representar da forma mais concreta possível o labirinto urbano por meio de uma enciclopédia com milhares de citações, "passagens" extraídas de centenas de livros.

FOLHA - As passagens como protótipo da civilização burguesa exerceram no século 19 a função que os "shopping centers" exercem no fim do século 20?
BOLLE
- As passagens do século 19 enquanto "templos do capital mercantil" são precursoras dos shopping centers de fins do século 20 e início do nosso século. Ambos são espaços reservados para aquela parte da população que tem dinheiro; são o lugar para fazer compras, tomar refeições, encontrar pessoas e desfrutar de entretenimentos, numa atmosfera de proteção e segurança. Ao mesmo tempo, são espaços vedados aos pobres, lugares de exclusão social, documentos de uma sociedade dividida.

FOLHA - Como a prostituta, o trapeiro e o flâneur resumem a condição moderna para Benjamin?
BOLLE
- A prostituta é "ao mesmo tempo vendedora e mercadoria". Provocativamente, Baudelaire projeta essa mesma imagem sobre a figura do literato. O trapeiro é um homem que "recolhe tudo o que a cidade jogou fora". Ele serve de figura de identificação para o historiógrafo materialista Walter Benjamin, que quer, com sua coletânea e montagem de fragmentos, "exibir os trapos, os farrapos da metrópole". Quanto à figura do flâneur, ele é uma combinação mítica entre a condição ociosa dos aristocratas e o ócio indispensável para os estudos e a pesquisa. Ora, o autêntico flâneur já não existe mais. Benjamin evoca um caráter social que se extinguiu já em meados do século 19 e que sobrevive apenas em metamorfoses degradadas.

FOLHA - "A passagem é apenas rua lasciva do comércio". Nessa formulação, Benjamin parece amarrar Freud, Marx, Baudelaire, os frankfurtianos e o urbanismo feérico de "Aprendendo com Las Vegas" (de Roberto Venturi, Scott-Brown e Steven Izenour). O que Benjamin tem a oferecer aos tempos atuais?
BOLLE
Um método instrutivo de aprender com Benjamin é "ex negativo": discuti-lo com estudiosos que consideram que ele já não tem muito ou nada mais a oferecer ao nosso tempo. Assim podemos testar se existem, também nos textos dele, as "energias revolucionárias que se revelam nas coisas antiquadas", como ele afirma a respeito das galerias de compras do século 19.
Foram essas as energias que levaram um escritor surrealista como Louis Aragon a redescobrir nesses lugares a "mitologia da modernidade"; e foi sua obra "O Camponês de Paris" (Imago) que inspirou Benjamin a escrever as "Passagens".
Trata-se de uma das obras historiográficas mais significativas do nosso tempo. A partir de Paris, a "capital do século 19" -especialmente suas galerias comerciais como "arquipaisagem do consumo"- é apresentada a história cotidiana da modernidade com figuras como o flâneur, a prostituta, o jogador, o colecionador e os meios de uma escrita polifônica que vai da luta de classes até a moda, a técnica e a mídia.
Este hipertexto com mais de 4.500 "passagens" constitui um dispositivo sem igual para estudar a metrópole moderna e, por extensão, as megacidades do Terceiro Mundo.


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