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O império do efêmero
Organizador, com Olgária Matos, da tradução da obra de Benjamin, prevista para sair na semana que vem,
o crítico Willi Bolle fala do projeto e diz que
as passagens de Paris anteciparam os shopping centers
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Uma das obras mais
ambiciosas já concebidas e escritas
sobre a ascensão e
a consolidação da
sociedade burguesa no século
19, "Passagens" (ed. UFMG/
Imprensa Oficial de SP, 1.168
págs., R$ 210], de Walter Benjamin, finalmente sai em português, sob coordenação dos
professores da USP Willi Bolle
e Olgária Matos.
Obra monumental, esboçada
entre 1927 e 1929, ela reúne
fragmentos compilados pelo filósofo alemão ao longo de vários anos de pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris.
Na entrevista abaixo, Bolle
lembra que só a parte principal
do livro -as "Notas e Materiais"- se constitui de "um
imenso arquivo de quase mil
páginas, subdividido em 36 cadernos temáticos, com um total de 4.234 fragmentos".
Justapostos e permeados por
comentários fulgurantes de
Benjamin [leia trechos abaixo],
esses fragmentos compõem,
em sua forma, uma das interpretações mais inusitadas do
século 19. Pois, longe de ser um
tratado acadêmico -embora
também seja rigoroso-, "Passagens" é por excelência uma
"obra em progresso".
Seu ponto de inflexão -as
"passagens"- são as galerias
cobertas que passaram a povoar Paris na virada do século
18 para o 19, como a do Cairo,
de l'Opéra, a Vivienne ou a Véro-Dodat, várias delas hoje já
demolidas.
É nelas que Walter Benjamin
vê tanto o domínio da técnica,
por meio da construção em vidro e ferro, quanto a implementação de uma nova sociabilidade burguesa, onde casa e
rua se confundem, antecipando os shopping centers do final
do século 20. Em seu entorno
circulam os personagens-guia
de Benjamin, em larga medida
tomados de empréstimo de
Baudelaire: o trapeiro, o flâneur e a prostituta.
Mas em Benjamin a obsessão
em compilar o saber, sua erudição sem limites, caminha de
mãos dadas com a consciência
da própria impossibilidade de
seu projeto. E, aqui, "Passagens" é a síntese, na forma e no
conteúdo, da profissão de fé
modernista: a percepção dolorosa de que o esforço titânico
do conhecimento resultará em
algo inconcluso.
Exemplo disso são os labirintos sem fim dos esgotos parisienses -aliás, um dos momentos mais fascinantes de todas essas imensas "Passagens".
FOLHA - Qual a importância de
"Passagens" no conjunto da obra de
Walter Benjamin?
WILLI BOLLE - As "Passagens",
que focalizam a cidade de Paris
como "capital do século 19", ou
seja, como lugar por excelência
da modernidade, representam
o principal projeto em toda a
produção de Benjamin.
Ele foi um apaixonado pelas
cidades, como já mostram sua
tradução dos "Quadros Parisienses", de Baudelaire, seu livro "Rua de Mão Única", que é
uma iniciação à metrópole moderna, e o "Diário de Moscou",
onde a fisionomia da grande cidade e da mulher amada se sobrepõem em toda parte.
Enquanto "O Conceito de
Crítica de Arte no Romantismo
Alemão" e "Origem do Drama
Barroco Alemão" são estudos
acadêmicos, a forma de composição das "Passagens" é mais livre, um gênero intermediário
entre a rigorosa pesquisa do
scholar e a "desordem produtiva" e "enciclopédia mágica" do
colecionador e do flâneur.
"Passagens", esboçado entre
1927 e 1929, constituiu de 1934
a 1940 "o teatro de todos os
combates" de Benjamin, mas
não chegou a ser terminado.
Por vários motivos e circunstâncias: a condição de emigrado, que vivia em Paris no limite
da subsistência; o perigo iminente e a eclosão efetiva da Segunda Guerra; a abrangência
do tema, a ambição metodológica e as dificuldades teóricas; a
expectativa máxima que o Instituto de Pesquisa Social, dirigido por Horkheimer e Adorno,
tinha em relação a essa obra; as
divergências teóricas que levaram à recusa do livro-modelo
sobre Baudelaire; e, finalmente, a fuga de Paris, em 1940, seguida da travessia dos Pirineus
e do suicídio do autor.
O manuscrito das "Passagens", que fora guardado por
amigos de Benjamin em Paris,
foi posteriormente entregue a
Adorno. Um discípulo deste,
Rolf Tiedemann, realizou o trabalho de decifrar os originais e
de publicar o conjunto em
1982, após 14 anos de trabalho.
FOLHA - Como foi feito o trabalho
de organização e tradução de "Passagens" para o português?
BOLLE - Comecei o trabalho de
organização em 2001 juntamente com minha colega Olgária Matos. Quanto à tradução,
estamos diante de um texto bilíngüe: aproximadamente 2/3
em alemão e 1/3 em francês. De
alguns trechos das "Passagens"
já existiam publicações para o
português. Consultei-as durante o processo de revisão.
FOLHA - Por que Benjamin escolheu as passagens parisienses como
ponto de inflexão e compreensão da
civilização burguesa do século 19 (e
não, por exemplo, as estradas de
ferro ou os "grands magasins" tematizados por Zola)?
BOLLE - As passagens são para
Benjamin um lugar mítico onde se sobrepõem a rua e a casa,
e, com isso, os espaços normalmente separados da esfera pública e do domínio particular.
Esse é um traço diferenciador
decisivo em comparação com
as ferrovias e os "grands magasins". Reforçando essa opção, a
palavra "passagens" é um achado poético, pois abre para um
instigante leque semântico: 1)
A referência topográfica, arquitetônica, urbanística, com a
ambição de representar uma
"imagem do mundo".
2) A referência temporal, como passagem da era das revoluções para a era do capital e dos
impérios; ou da iluminação
com lamparinas de óleo a bicos
de gás e a lâmpadas elétricas e,
com isso, a simbolização do
"efêmero" dos surrealistas e do
próprio fluir da história.
3) A referência ao próprio
modo de escrever a história de
Paris, de representar da forma
mais concreta possível o labirinto urbano por meio de uma
enciclopédia com milhares de
citações, "passagens" extraídas
de centenas de livros.
FOLHA - As passagens como protótipo da civilização burguesa exerceram no século 19 a função que os
"shopping centers" exercem no fim
do século 20?
BOLLE - As passagens do século
19 enquanto "templos do capital mercantil" são precursoras
dos shopping centers de fins do
século 20 e início do nosso século. Ambos são espaços reservados para aquela parte da população que tem dinheiro; são o
lugar para fazer compras, tomar refeições, encontrar pessoas e desfrutar de entretenimentos, numa atmosfera de
proteção e segurança.
Ao mesmo tempo, são espaços vedados aos pobres, lugares
de exclusão social, documentos
de uma sociedade dividida.
FOLHA - Como a prostituta, o trapeiro e o flâneur resumem a condição moderna para Benjamin?
BOLLE - A prostituta é "ao mesmo tempo vendedora e mercadoria". Provocativamente,
Baudelaire projeta essa mesma
imagem sobre a figura do literato. O trapeiro é um homem que
"recolhe tudo o que a cidade jogou fora". Ele serve de figura de
identificação para o historiógrafo materialista Walter Benjamin, que quer, com sua coletânea e montagem de fragmentos, "exibir os trapos, os farrapos da metrópole".
Quanto à figura do flâneur,
ele é uma combinação mítica
entre a condição ociosa dos
aristocratas e o ócio indispensável para os estudos e a pesquisa. Ora, o autêntico flâneur
já não existe mais. Benjamin
evoca um caráter social que se
extinguiu já em meados do século 19 e que sobrevive apenas
em metamorfoses degradadas.
FOLHA - "A passagem é apenas rua
lasciva do comércio". Nessa formulação, Benjamin parece amarrar
Freud, Marx, Baudelaire, os frankfurtianos e o urbanismo feérico de
"Aprendendo com Las Vegas" (de
Roberto Venturi, Scott-Brown e Steven Izenour). O que Benjamin tem a
oferecer aos tempos atuais?
BOLLE Um método instrutivo
de aprender com Benjamin é
"ex negativo": discuti-lo com
estudiosos que consideram que
ele já não tem muito ou nada
mais a oferecer ao nosso tempo. Assim podemos testar se
existem, também nos textos
dele, as "energias revolucionárias que se revelam nas coisas
antiquadas", como ele afirma a
respeito das galerias de compras do século 19.
Foram essas as energias que
levaram um escritor surrealista
como Louis Aragon a redescobrir nesses lugares a "mitologia
da modernidade"; e foi sua obra
"O Camponês de Paris" (Imago) que inspirou Benjamin a escrever as "Passagens".
Trata-se de uma das obras
historiográficas mais significativas do nosso tempo. A partir
de Paris, a "capital do século 19"
-especialmente suas galerias
comerciais como "arquipaisagem do consumo"- é apresentada a história cotidiana da modernidade com figuras como o
flâneur, a prostituta, o jogador,
o colecionador e os meios de
uma escrita polifônica que vai
da luta de classes até a moda, a
técnica e a mídia.
Este hipertexto com mais de
4.500 "passagens" constitui um
dispositivo sem igual para estudar a metrópole moderna e, por
extensão, as megacidades do
Terceiro Mundo.
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