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Performance anônima
A dinâmica do espetáculo depende
do consumo de conteúdos irrelevantes
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Imersos no cotidiano de
uma vigilância constante,
seja por câmeras de segurança, seja por câmeras
fotográficas embutidas
em celulares e demais apetrechos que capturam imagens
em vídeo, presentes em absolutamente qualquer reduto habitado do planeta, seríamos todos performers, encenando
nossas ações no mundo?
O episódio envolvendo a
apresentadora da MTV Daniella Cicarelli nesta semana -um
vídeo veiculado no You Tube
que em poucas horas atingiu
picos de "nanoaudiência"- levanta esta e outras questões a
respeito dos fenômenos midiáticos em tempos de sociedade
do controle e do espetáculo.
Em entrevista à Folha, a
professora da Pontifícia Universidade Católica de SP e teórica de novas mídias Giselle
Beiguelman fala sobre o tema e
sobre a diferença entre produtos da dinâmica do espetáculo
e obras de artistas que se nutrem do fenômeno para criticá-lo, como é o caso do vídeo
"Uma", do artista plástico Caetano Dias, exibido no 1º Festival Latino-Americano de Cinema de São Paulo, em julho deste ano, e que será apresentado
na Paralela 2006, em SP, em
outubro.
Registro de um casal que
transa no mar, alheio à grande
movimentação na praia de
Guarajuba, na Bahia, o vídeo
acompanha o princípio de conversa entre uma mulher negra
e um homem branco, o encontro e o abandono. A investida
poética de Caetano Dias trata
da espetacularização das patéticas performances humanas.
FOLHA - O vídeo da Daniella Cicarelli com o namorado em uma praia na
Espanha se torna, em questão de
horas, objeto de interesse de milhões de internautas, sem que se saiba quem filmou. O fenômeno midiático na era da internet é necessariamente sem autoria e de propriedade coletiva?
GISELLE BEIGUELMAN - O anonimato dos produtores de mídia é
uma constante na história das
comunicações de massa. "As
Ilusões Perdidas", de Balzac,
publicadas no século 19, são um
excelente ponto de partida para
essa reflexão. Quantas pessoas
sabem o nome do diretor do
"Jornal Nacional"?
O que a internet tem de diferente de outras mídias é que
nela regimes de autoridade, e
não de autoria, podem ser
questionados e o fato de explicitar que o espectador não é um
legume. É crítico e cúmplice.
FOLHA - Pode-se afirmar que o vídeo atualiza o conceito de performance? Ou seja, dado que vivemos
em um mundo mediado, um casal
namorando em uma praia cheia de
gente está, necessariamente, encenando suas ações?
BEIGUELMAN - Não podemos
confundir superexposição com
performance. Vivemos uma experiência cotidiana tão mediada por câmeras e telas que o ato
mais banal assume contornos
de encenação programada.
Nem a performance é isso
nem me parece que o gesto do
casal tivesse esse cunho. Há
quem diga que foi tudo armação. Pode ser. Mas aí voltamos à
sociedade do espetáculo e tudo
fica claro, numa espécie de tributo e atualização de uma das
máximas de Andy Warhol. Segundo esse expoente da arte
pop, no futuro, todos teriam 15
minutos de fama. A internet
alargou esse campo, possibilitando que todos possam ser célebres com alguns cliques.
Se isso for verdade, performática, então, foi a ação de
quem viu, gravou e publicou
um material com conteúdo irrelevante e que foi notícia durante toda a semana.
FOLHA - Com a proliferação de tecnologias capazes de registrar e difundir qualquer tipo de informação
(sejam texto, fotografia ou vídeo)
em tempo real, existe diferença entre as esferas pública e privada? Celebridades midiáticas têm privacidade na sociedade hipermidiática?
BEIGUELMAN - É preciso diferenciar notícia de informação. Os
meios hoje permitem grande
capacidade de produção e difusão de notícias, mas não necessariamente de informação.
A dinâmica da sociedade do
espetáculo, analisada por Guy
Debord, pensador fundamental do século 20, e ironizada por
Fellini em "La Dolce Vitta" depende do consumo de imagens
e de uma disponibilidade de alguns para ser protagonista desse espetáculo.
Estamos falando de mercado. Em nosso contexto, mediado por câmeras, mensageiros
on-line, cartões de fidelidade, o
que temos é a consolidação da
sociedade de controle, o estado
de vigilância distribuída, no
qual a privacidade se torna uma
mercadoria de luxo, que nunca
será entregue na sua totalidade.
FOLHA - A obra de Caetano Dias,
que flagra um casal em situação
idêntica à de Cicarelli, dá margem a
que se veja o vídeo que circulou no
You Tube como jornalismo ou arte?
BEIGUELMAN - O vídeo de Cicarelli que circulou no You Tube,
em si, é apenas sintomático do
tipo de sociedade do espetáculo
e da vigilância distribuída em
que vivemos. Não é arte nem
jornalismo. Já o de Caetano
Dias assim como os auto-retratos manipulados da fotógrafa
Helga Stein se nutrem desse
sintoma para banalizá-lo de
uma forma tão extrema que
operam sua crítica.
O que os distancia do vídeo
que circulou no You Tube é que
agenciam sentidos e relações
cognitivas, ao contrário do primeiro, que pretende participar
da dinâmica do espetáculo e da
sociedade de controle.
FOLHA - Quais os parâmetros para
definir o que é hoje um fenômeno
midiático?
BEIGUELMAN - O fenômeno midiático está sempre associado
ao domínio rigoroso da mecânica de um meio de comunicação e ao reconhecimento do
contexto de veiculação. Basta
lembrar do impacto da transmissão de "A Guerra dos Mundos", pelo grupo de radioteatro
de Orson Welles, em 1938. Sem
a situação de tensão da Segunda Guerra e sem o domínio técnico e de conteúdo do rádio, jamais conseguiria mobilizar um
país como mobilizou.
Na era da internet, há uma
certa flexibilização dos canais
de comunicação. Não é mais
necessário trabalhar na CBS,
como o grupo de Welles, mas
ainda é preciso eleger o canal
correto de divulgação e ter a expertise de saber o que pode vir a
ser notícia ou, pelo menos, fato
passível de consumo.
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