São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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O demoniozinho Capote

Arnold Newman/Getty Images
O escritor norte-americano Truman Capote (1924-84), autor de "A Sangue Frio" e "Bonequinha de Luxo", em Nova York, em 1977


Descoberto em 2004, "Travessia de Verão" já enfatiza a transgressão como norma

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é gratuito o título "Capote", dado ao recente filme sobre a experiência de pesquisa e escrita do romance "A Sangue Frio". Ele remete às complicadas aventuras na vida familiar do rapazinho Truman Persons e à carta atrevida que, aos 12 anos, escreve e envia ao pai.
Nela lhe informa que tinha sido perfilhado pelo padrasto, o cubano Joe Capote, e acrescenta que "no futuro só se dirija a ele como Truman Capote". Nos anos seguintes, a vida familiar se complica mais. Nina, a mãe, torna-se alcoólatra e passa a censurar o filho pela homossexualidade.
O jovem busca refúgio nas colônias de artistas da Costa Leste, onde se torna o "darling" de homens mais velhos e famosos. Seu apelido é Puck, o demoniozinho do folclore inglês e personagem de Shakespeare, e resume o perfil do aspirante a escritor logo após o fim da Segunda Guerra. Não era figurinha fácil. Como contínuo ("copyboy") na revista "New Yorker", tem os primeiros contos recusados.
Não se dá por vencido, publica-os nas revistas "Harper's Bazaar" e "Mademoiselle's", para o público feminino. Na época, a hoje candente "New Yorker" era "quadrada", e os contos mais ousados saíam nas revistas femininas.
Ao lançar, em 1948, o primeiro romance, "Outras Vozes, Outros Quartos", o cáustico crítico George Davis foi impiedoso: algum dia alguém teria de escrever a versão veada ("fairy") de "Huckleberry Finn", o clássico de Mark Twain. Merecidamente, o romance se tornou sucesso nacional e internacional, levando Capote a se esbaldar num veraneio infinito e exaustivo pela Europa, em companhia de amigos influentes e celebridades, entre eles o fotógrafo Cecil Beaton.
Atrelado à boemia dos ricos e famosos, Truman Capote escreve "Travessia de Verão". Em junho de 1953, em carta a Mary Louise Asweel, confessa que "nunca tinha terminado o livro" e o que tinha em mãos "tinha rasgado em pedacinhos". Mentirinhas do nosso Capote.
Por obra de um novo Puck, Alan U. Schwartz, influente advogado nova-iorquino e testamenteiro de Truman Capote, o livro reaparece inteirinho em 2005. O advogado é responsável pelo posfácio ao romance, onde historia a aventura da descoberta tardia do manuscrito, do leilão e da compra. Comete, no entanto, um equívoco.
Não é o primeiro romance de Capote, mas o segundo, conforme atestam as cartas do autor. Aliado ao primeiro romance, "Travessia de Verão" demonstra pelo menos duas qualidades. Primeira, Capote já tinha um estilo literário próprio, herdado das inglesas Katherine Mansfield e Virginia Woolf e semelhante ao da sua contemporânea Carson McCullers e da nossa Clarice Lispector.
Segunda, o jovem é um bom leitor dos clássicos norte-americanos e sua originalidade está na transgressão dos padrões estabelecidos. No caso do segundo romance, tinha optado por uma visão perversa e menos realista de romancistas que o antecedem, como Theodore Dreiser ("Uma Tragédia Americana"), Sherwood Anderson ("O Livro dos Grotescos") e F. Scott Fitzgerald ("O Grande Gatsby"). Sentia-se capacitado a desenhar uma trama original, embora rebuscada e ainda pouco trabalhada.
Apesar de pertencer, originariamente, a um grupo de escritores sulistas da pá virada, de que faz parte seu amigo Tennessee Williams, não era ainda permitido o desenho a nu do homossexual. Como na literatura do nosso Lúcio Cardoso e tal como Blanche Dubois, de "Um Bonde Chamado Desejo", os personagens femininos caracterizados por pura sensibilidade e emoção, transbordantes de amor para dar, eram travestis de homossexuais.

Paixão pelo manobrista
A contragosto da família milionária, que parte em férias para a Europa, a adolescente Grady resolve passar o verão em Nova York. Misteriosa, segundo a mãe e a irmã mais velha, guarda agora um segredo.
Está apaixonada por um manobrista de estacionamento no distrito da Broadway, com quem se casará às escondidas. O desequilíbrio socioeconômico arma os cenários contrastantes da trama.
Ela se abre no restaurante do elegante hotel Plaza, continua pela despedida no cais, se alonga pelas aventuras libidinosas dos jovens no submundo da Broadway, estende-se, por um lado, pelo bairro pobre do Brooklyn, onde mora o rapaz e, por outro lado, pela região do veraneio elegante, os Hamptons, já nossa conhecida dos romances de Scott Fitzgerald.
Trama esquemática, cenários transformados em clichês pelo cinema, desenvolvimento dramático claudicante são alguns pequenos defeitos deste romance.
Salvam-no, no entanto, o estilo já bem calibrado de Capote e, principalmente, o gosto inusitado pelo desenho de inocentes e encantadoras figuras monstruosas do cotidiano (os "freaks", como se dirá na época do rock and roll e das drogas). O melhor exemplo é a anã Anne, irmã do rapaz, que se veste na seção infantil das lojas, mas que, numa oficina, deixa pra trás todos os másculos e incompetentes mecânicos.

SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor, entre outros livros, de "As Raízes e o Labirinto da América Latina" (ed. Rocco).

TRAVESSIA DE VERÃO Autor: Truman Capote
Tradução: Fernanda Abreu
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 31,90 (144 págs.)



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