São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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Nos ensaios de "Alguma Crítica", João Alexandre Barbosa relê grandes autores da literatura ocidental e resgata o prazer do texto

O precioso elogio da ingenuidade

Alguma Crítica
336 págs., R$ 36,00 de João Alexandre Barbosa. Ateliê Editorial (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/xx/11/4612-9666).

Kathrin Rosenfield
especial para a Folha

João Alexandre Barbosa lançou recentemente um volume de ensaios que reúne artigos publicados em diversas revistas ao longo dos últimos anos. Subdividido em três partes -a primeira sobre crítica e teoria, a segunda sobre narrativa, a terceira sobre poesia-, o volume oferece um bom apanhado da feliz mistura de erudição e leveza, de sensibilidade e perspicácia teóricas com que o autor costuma nos introduzir nas leituras de livros relevantes. A naturalidade com que ele mostra para além de supostas "influências" os vasos comunicantes entre a literatura universal e a brasileira confere grande vigor às suas reflexões sempre estimulantes. O conjunto de ensaios abrange temas tão diversos quanto uma resenha de "Conhecimento Proibido" (Cia. das Letras), de Roger Shattuck, análises da crítica e da história da literatura, releituras de clássicos como Dostoiévski ou Cervantes, Eça de Queiroz e Calvino, e abordagens de fundo de poetas como Cabral e Haroldo de Campos. A escolha de citações saborosas e a argúcia dos comentários tornam estimulante a leitura de qualquer um dos temas: seja quando Barbosa nos apresenta o ecletismo refinado da recente crítica norte-americana, que apimenta seus ensaios com contrastes artificiosos (por exemplo, entre as "figuras da abstinência", Mme. de La Fayette e Emily Dickinson e o "Divino Marquês" de Sade), seja quando ele retoma o tópico, já para além de clássico, da nacionalidade da literatura brasileira de Santiago Nunes Ribeiro a Machado de Assis, José Veríssimo e Antonio Candido.

O estético e o real
Nos enfoques mais teóricos, Barbosa tem o raro dom de mostrar com simplicidade as múltiplas facetas que conferem densidade à literatura, à crítica e à teoria. Nesse sentido, é característico o modo como o autor situa as obras e a teoria literária sempre na interface do estético e do real, mostrando as relações dialéticas entre a imaginação, as determinações da experiência concreta e a dimensão espiritual. O autor realça essa integração em todos os críticos e poetas que apresenta, ressaltando-a particularmente na abordagem da obra de Antonio Candido, que assimilou a dimensão social (religiosa, política, histórica) como fator de arte. Nesse momento, "o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica" (pág. 142). De maneira análoga, Barbosa ilumina nos clássicos de Cervantes a Machado e de Calvino a Cabral seu potencial transfigurador da realidade concreta e imaginária. Nem determinada por fatores externos, nem fechada num esplêndido isolamento, a poesia mostra seus múltiplos elos, por exemplo, quando Haroldo de Campos é apresentado nas suas três vertentes complementares -a do poeta, a do teórico e a do tradutor. Na circularidade da linguagem, esclarece João Alexandre Barbosa, o viés poético "exerce um enorme poder centrípeto, a tudo arrastando e fazendo convergir". A esse potencial responde o movimento centrífugo da explicitação teórico-crítica, cujas distinções explícitas estabelecem um elo com a consciência cotidiana (pág. 311).

Segredo da arte crítica
No início do ensaio "Dimensões do Quixote" -que fornece (mais do que) uma resenha do livro "O Dito pelo Não-Dito - Paradoxos de Dom Quixote", de Maria Augusta da Costa Vieira-, entrevemos algo do segredo da arte crítica de João Alexandre Barbosa. Começa com a exclamação: "Ah, inveja de quem, moço ou moça, lê Cervantes, o "Dom Quixote" de Cervantes, pela primeira vez. Depois serão as releituras [...] sem o deslumbramento da leitura por assim dizer primaveril" (pág. 149). É precioso este elogio da ingenuidade numa época sobrecarregada por conceitos, teorias e banalidades rasteiras. Destacando as reminiscências infantis de Heinrich Heine, que chorava e sofria na mais plena identificação com o seu herói dom Quixote, antes de rir das ironias de Cervantes, João Alexandre Barbosa recupera um dos elementos mais importantes da relação (hoje precária) com a arte: o do encontro ingênuo, não perturbado por ensinamentos, com as grandes obras. São essas experiências, reveladoras do núcleo de verdade que se encapsula na ilusão infantil (ou na ingenuidade conservada para além da infância), que fornecem peso e profundidade à crítica e à teoria.

Encanto e terror
De Cervantes a Hölderlin e Dostoiévski, de Kafka a Musil, Guimarães Rosa e Borges, encontramos o louvor dos ingênuos ou dos "idiotas" ("O Idiota" remete ao sentido etimológico do termo, o não-instruído que sente e pensa sozinho, sem a ajuda da sofisticação cultural). O tema retorna também no ensaio "Borges Leitor de Quixote", em que Barbosa destaca o intuito borgiano de "criar [no leitor] uma reação compassiva e até irada diante das indignidades que injuriam o herói" (pág. 170). Os afetos de compaixão e ira fazem do herói um "amigo do leitor", criando aquela mistura de encanto e terror oníricos que transforma a leitura na atividade de decifrar e recifrar a obra que se lê (pág. 173). Ler é reescrever ou, nas palavras de Pierre Menard: "Pensar, analisar e inventar não são atos anômalos, mas a normal respiração da inteligência" (pág. 177). Não é de surpreender, portanto, que os três ensaios de Barbosa sobre Dostoiévski comecem precisamente com o "Diário de um Escritor", gênero novo que amalgama a objetividade do cronista com a sensibilidade íntima do observador atento às oscilações de sua própria alma. Não podemos deixar de mencionar o estilo do capítulo "Lendo Dostoiévski", pois Barbosa dissolve o trabalhoso debate sobre o valor das edições em um relato de sua aventura pessoal no cipoal de edições mais ou menos cuidadas e de traduções duvidosas. É muito envolvente a descrição desses desencontros que dificultam a compreensão do novo gênero de diário. Sua envergadura se revela, finalmente, graças à recente edição de Kenneth Lantz com introdução de Gary Saul Morson, que revela o intuito (já presente numa passagem de "Os Demônios") de "publicar um anuário que filtrasse os acontecimentos-chave da cultura russa... os incidentes mais ou menos característicos da vida moral do povo, do caráter pessoal do povo russo no momento presente... tudo seria incorporado com uma certa visão, uma significação e uma intenção especiais, com uma idéia que iluminaria os fatos agregados, como um conjunto".

Questões de Dostoiévski
O pendor metafísico de Dostoiévski, sem dúvida, está relacionado a essa difícil tarefa de transformar o agregado de incidentes em um todo característico. Sem analisar em detalhe o problema da metafísica do autor russo, Barbosa assinala o problema quando sublinha "a diferença substancial de tonalidade [entre os diários de 1873 e de 1876-1877], passando-se de uma crítica social e histórica forjada pelo realismo de Dostoiévski, que jamais oblitera o fantástico, para uma exasperação apocalíptica e mesmo reacionária que parece cavar um enorme fosso de contradição entre as duas partes" (pág. 191).
O único reparo que, talvez, se possa fazer a este belo livro diz respeito à falta de um prefácio ou posfácio que situasse os pontos de fuga desses ensaios, aprofundando o que permanece implícito e alusivo em artigos isolados. No entanto, vale para "Alguma Crítica" o que o autor diz a propósito da pesquisa de Brito Broca sobre a influência de "Dom Quixote" (pág. 157): "É claro que, sobre uma pesquisa como esta [...] é sempre possível reclamar ausências de autores [ou temáticas]. Por isso, não reclamarei". Sem reclamar, o leitor fica com a agradável vontade de reler -com olhos outros- livros conhecidos dos quais o crítico ilumina facetas raras e ricas.


Kathrin Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de, entre outros, "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).


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