São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 1998.



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O descobrimento do tempo



O hábito de festejar datas sósurgiu com a ciênciaquantitativa no século 17
PETER BURKE
especial para a Folha

Segundo a televisão, os brasileiros, tal como outros povos pelo mundo afora, começaram a contagem regressiva para a passagem do milênio. No Rio, já há tempos hotéis estão reservados para o "Reveillon 2000", enquanto em Londres a "Catedral do Milênio" já começa a se tornar visível. É curioso pensar que esta forma de consciência histórica não possua, ela mesma, uma longa história.
Até onde eu saiba, ninguém celebrou a chegada do ano 1000. Algumas pessoas pensaram que o fim do mundo pudesse ocorrer por volta daquele período, mas não necessariamente no exato fim do século. Na Florença renascentista, houve quem achasse que o mundo acabaria em 1500, mas outras pessoas esperavam o seu fim já em 1494. A idéia essencial do milênio era a de um reinado de mil anos de Cristo neste mundo, que poderia começar a qualquer momento, por mais que provavelmente fosse anunciado por meio de eventos dramáticos. Eis a razão por que a descoberta do Novo Mundo levou muitos europeus, especialmente espanhóis, a pensar que o milênio estava próximo e que Carlos 5º seria o último imperador terreno.
Independentemente disso, não se acreditava que Deus pensasse em números redondos. Usualmente, o tempo não era dividido dessa maneira, por mais que, a partir de 1300, Roma celebrasse os anos santos de século em século. Hoje em dia, indivíduos têm a expectativa de se sentirem diferentes depois do seu trigésimo, quadragésimo ou quinquagésimo aniversário, e a expectativa é de que muitos eventos ocorram ao completar-se uma hora inteira.
No século 16, por outro lado, os relógios mecânicos ainda eram relativamente raros. Conforme mostrou o grande historiador francês Lucien Febvre há anos, o tempo, tal como o espaço, costumava ser calculados de maneira imprecisa -o tempo necessário para rezar uma ave-maria, por exemplo; na véspera da colheita ou depois da grande fome. Indivíduos -como Erasmo, por exemplo- frequentemente não sabiam o ano de seu nascimento, e o que se comemorava anualmente era menos o número de anos completados do que o dia do santo padroeiro de cada um.
Quanto ao tempo político, no geral este era computado mais em reinados do que em décadas. A prática de comemorar datas precisas, especialmente os fins de século, dependeu da emergência do pensamento quantitativo, a mentalidade aritmética, sem a qual a ciência moderna, o Estado moderno e talvez a modernidade em geral teriam sido impossíveis.
Parece que foi no século 17 que se deu a mudança no sistema de comemorações. Iniciou-se na Alemanha protestante, em 1617, com as celebrações, amplamente difundidas, do centésimo aniversário ou jubileu das "Noventa e Cinco Teses" de Lutero -supostamente afixadas na porta da igreja de Wittenburg um século antes, dando, assim, início à Reforma. Em homenagem à ocasião, peças de teatro foram encenadas, e ações de graça, celebradas.
Por que teriam sido os protestantes os inventores dessa tradição? Talvez porque tenham abolido os cultos a santos. Um centenário oferecia um tipo de substituto: a "canonização" de um evento mais do que a de uma pessoa. O próximo grande centenário foi celebrado em 1640, em Leipzig e outros lugares, a fim de comemorar os 200 anos da invenção da imprensa por Gutenberg (mesmo que a data exata fosse e ainda seja incerta).
Os jesuítas seguiram esse modelo, ao celebrarem, também em 1640, o seu centésimo aniversário ou primeiro século, com peças de teatro, pinturas e um volume comemorativo chamado "A Imagem do Primeiro Século". Foi nesse período que, a despeito das controvérsias entre estudiosos em torno da data do nascimento de Cristo, tornou-se cada vez mais comum entre os ocidentais pensar a respeito do tempo em termos de séculos, sejam eles a.C. ou d.C.
Por volta do século 18, centenários, bicentenários eram regularmente celebrados na Alemanha, França e Inglaterra, comemorando, por exemplo, os nascimentos de Shakespeare e Voltaire, a Revolução Gloriosa de 1668 e assim por diante. O tricentenário da descoberta da América foi festejado em 1792. Alguns europeus experienciaram o fim do século 18 como começo de uma nova era. Os franceses simbolizaram sua idéia de uma revolução irreversível por meio de um novo calendário que começava no ano 1. Na sua peça "Modo Canônico do Velho e do Novo Século", encenada em 1801, o escritor alemão August Wilhelm Schlegel declarou que o século seguinte seria um século de liberdade.
No século 19, especialmente em fins do século 19, a prática de comemorar aniversários tornou-se ainda mais popular. Trezentos anos de luteranismo foram celebrados na Alemanha em 1817. Uma exibição na Filadélfia, em 1876, marcou o centenário da Revolução Americana. Em Paris, o ano de 1889 destacou-se pelas "fêtes" em Versalhes, a Exposição Universal e a Torre Eiffel. Difundiu-se também amplamente, pela primeira vez, uma sensação de viver no fim de uma era. Já na década de 1880, a expressão "fin de siècle" (cunhada pelo escritor Emile Zola) tinha-se tornado comum e corrente na França.
Hoje em dia, qualquer escritor ou escritora menor tem direito ao seu centenário, e isto para não mencionar as sedes de universidades, prefeituras e até de corpos de bombeiros. Algumas dessas comemorações ganham destaque, como em 1989, na França, ou 1992, nas Américas. Entretanto, o aparente consenso do século 19 foi substituído por debate e conflito.
Tome-se como exemplo o caso da Revolução Francesa. Na década de 80, o governo francês teve de decidir se iria celebrar ou meramente comemorar o grande evento. Se celebrassem, eles teriam de optar entre a revolução moderada de 1789 e a revolução mais radical de 1793. O presidente Mitterand, seus ministros e a organização oficial responsável pelo evento (a "Mission du Bicentenaire") tentaram enfatizar o consenso.
Balões subiram aos ares em janeiro de 1989; a plantação de árvores aconteceu em março; julho assistiu à comemoração da tomada da Bastilha; agosto, à da Declaração dos Direitos do Homem; e dezembro foi palco da "pantheonização" de três heróis da Revolução até então neglicenciados -Condorcet, Grégoire, Monge-, enquanto o Arco de la Défense foi construído como o equivalente do século 20 à Torre Eiffel. Os festivais foram acompanhados -na era do capitalismo tardio- por um comercialização da memória por meio de um amplo escopo de produtos bicentenários como camisetas e bonés da liberdade.
Entretanto, não houve consenso em relação à revolução. Por um lado, a direita criou o "Anti-89", enquanto, por outro, o Partido Comunista organizava um movimento mais radical denominado "Vive 89". A celebração do ano 2000 será ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil, porque nós -com exceção dos cristãos fundamentalistas, que têm certeza de que Cristo nasceu no ano zero- não sabemos nem bem o que é que estamos celebrando.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.



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