São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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Ponto de fuga

Invenção em fatias

"A televisão não é uma arte, é um eletrodoméstico", teria dito Federico Fellini. A frase é bem verdadeira. Hoje, porém, graças às qualidades técnicas do DVD, algumas séries feitas para TV, sobretudo americanas, como que adquirem um novo estatuto. É uma situação comparável à dos folhetins publicados nos jornais do século 19. Os capítulos escritos semanalmente por Balzac, Dostoiévski, George Sand ou Dumas integravam-se ao tecido jornalístico. Eram geniais desde o início, está claro, mas adquiriam uma outra natureza ao ressurgirem sob forma de livro. Do mesmo modo, contidos nos pequenos discos prateados, sitcoms e seriados tomam a unidade e a força próprias à arte.
Os sitcoms (comédias de situação) ganharam uma forma definitiva com Lucille Ball, nos anos de 1950. Deriva do teatro: a platéia (que, no caso de "I Love Lucy", era verdadeira) está sempre pressuposta pelos risos, mesmo quando são apenas gravações; o espaço da ação é determinado pelo palco, mesmo se se trata de estúdio. Mas ela precisa também encontrar o equilíbrio junto à câmera que recorta a imagem e a insere numa continuidade. Lucille Ball atingiu um gênio cômico à altura de Chaplin ou Keaton, num modelo que ainda rege "Seinfeld" ou "Friends".
As séries "sérias" mantinham uma simbiose com o cinema: os episódios estupendos de "Twilight Zone" ("Além da Imaginação") engendraram uma espécie de expressionismo frio, de luz inexorável, sem contrastes. A iluminação, o enquadramento, a calma implacável da câmera, o "estilo" "Twilight Zone", enfim, marcou e foi marcado pelo cinema dos anos de 1960.

Ganchos - Da mesma maneira que os folhetins nos rodapés dos jornais, uma vez reunidos em livro, tornam-se obras verdadeiras e não se confundem mais com o jornalismo, as séries americanas, reunidas em DVD, não se confundem mais com aquilo que se entende por televisão. Quando os episódios se fecham sobre si mesmos, contando uma história completa, equivalem a contos. As seqüências, que se desenrolam ao longo de um ano, são como romances. Nesse caso, por sinal, alguns procedimentos de base mostram-se idênticos aos do folhetim, o mais evidente sendo a necessidade de terminar cada capítulo num suspense que escraviza o leitor (ou o espectador), deixando-o ansioso pelo próximo. A estrutura permite meandros intrincados, que estofam a intriga.
Tais séries, porém, ligam-se, ainda mais estreitamente, ao cinema. Não apenas graças ao parentesco que mantêm com os "serials" projetados nas matinês de antigamente, mas porque se constroem de modo cinematográfico: um dos exemplos mais altos é "Twin Peaks", de David Lynch, e também seu "Mulholland Drive", que começou como piloto de uma série para a TV. Alguns acreditam mesmo que a invenção cinematográfica de nossos dias ocorre nesse gênero, em princípio televisivo (ver o nš de julho/agosto de 2003 dos "Cahiers du Cinéma").
É verdade que uma série como "24 Horas" dá impressão de força e novidade singulares. Tem um poder violento de suscitar aflições contemporâneas. Há energia em "24 Horas", mas ela nasce das angústias de um mundo em decadência. A sociedade americana é revelada ali como insone, doente, sem remédios.

Máscaras - "Alias", outra série que vem dos EUA, não mantém compromisso algum com qualquer "realismo". Uma espiã imbatível troca de personalidades cada semana, viajando para os lugares mais distantes. Mas carrega a melancolia da solidão e do abandono. Paira, em "Alias", a nostalgia da família impossível e, sobretudo, o vazio de qualquer identidade. Sidney Bristow, o personagem principal, diminui seu ser na multiplicação das aparências, fragmentando-se em transformações.

Paternidade - Há aquele que "cria" ou "inventa" a série: Rod Serling para "Twilight Zone", J. J. Abrams para "Alias", Robert Cochran e Joel Surnow para "24 Horas". Eles podem dirigir alguns capítulos, mas cedem a câmera para outros diretores. Quando Alexandre Dumas escrevia "O Conde de Monte-Cristo", contratava "operários" para redigir passagens sob sua orientação, sem por isso deixar de ser o autor.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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