São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009

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Ponto de fuga

Gênios em família


Bellini se aproximou de Mantegna e assimilou muito de sua arte, com uma inflexão em direção à harmonia; mas a beleza como harmonia é algo estranho à obra de Mantegna


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Dois gênios imensos, um cunhado do outro. Pintores definitivos para as artes de todos os tempos: Andrea Mantegna (1431-1506) e Giovanni Bellini (1430-1516). A eles foram consagradas duas exposições que se completam: "Mantegna", em Paris, no Louvre; "Giovanni Bellini" em Roma, no Quirinal [encerradas].
A de Mantegna tece uma rede com a arte do tempo. Mostra seus inícios em Pádua, no ateliê de Squarcione, pintor medíocre, mas apaixonado pela Antiguidade, até sua presença na formação de Correggio, o que surpreende, já que esse artista se tornaria uma espécie de anti-Mantegna por excelência.
As ramificações complexas nem sempre são fáceis de seguir, mas o esforço é compensador. São muitas as obras, de vários artistas, escolhidas com erudição, destinadas a um percurso que expõe e renova nossa percepção. A de Roma está no seu oposto. As únicas pinturas ali presentes são do próprio Bellini. Elas bastam para uma embriaguez de beleza. A palavra beleza traz, nesta comparação, um problema curioso. Bellini se aproximou de Mantegna e assimilou muito de sua arte, a eloquência escultural de suas figuras, a expressividade implacável dos contornos que definem e recortam.
Mas sempre houve nele um prazer com cores vivas, uma inflexão, mesmo se por vezes contida, em direção à harmonia. Iria renovar-se inteiramente na maturidade avançada, em contato com a jovem pintura veneziana, sobretudo Giorgione. Uma suavidade atmosférica então interage com matizes e brilhos, por meio de sutilíssimas transições, levando muito longe as faculdades oferecidas pela pintura a óleo. A palavra beleza, no seu sentido mais elevado e comovente, é a que lhe cabe.

Rocha
Ao contrário, o princípio da beleza, como harmonia sem dificuldade ou dureza, é estranho à obra de Mantegna. Sem dúvida, beleza não era para ele nem preocupação nem objetivo. Plantou o homem num meio árido. Sua natureza é essencialmente mineral. A vegetação, quando surge, se configura como exceção ou apêndice. Tudo parece feito de sílex, de quartzo, de granito. Renovou a perspectiva como se para melhor sustentar um mundo pétreo. Os céus são cristalinos, no sentido mais preciso: saturam-se com azuis de pedra preciosa.

Seixo
Mantegna consagra ao mais ínfimo cascalho atenção de pintor e de geólogo. Esculpe os calhaus com rigor, dispondo-os sob a mesma luz implacável, resistentes, orgulhosos de suas facetas talhadas como diamantes. Formam a menor unidade da "arché" que o artista maníaco encontrou para fabricar seu mundo, todo seu mundo. As maiores unidades são certos monstros tectônicos que emergem de desertos rochosos. Mantegna multiplica camadas geológicas, expondo-as por uma descrição plástica. Suas pedras são rudes, ásperas, não como o metal polido, não como o aço ou o bronze. Partem em lascas. Não brilham: intensificam-se com a luz, absorvendo-a. A aridez natural dos rochedos surge carregada de dores em suas saliências e depressões, como rugas minerais de rostos que sofrem, como caretas de aflição. Essa observação permite perceber quanto é poderosa essa "arché" mineralógica. Porque, no mundo de Mantegna, os próprios corpos são constituídos, eles também, por uma dura geologia, que se pode ler nas rugas, nos esgares de dor, nas feridas,

Jóia
Na mostra do Louvre, entre as obras que Mantegna pintou na juventude, emerge, em meio às outras, prodigiosa, o "São Jerônimo" do Masp.
jorgecoli@uol.com.br


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