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Não lê por quê?
Desdém do presidente
pela leitura, que não se justifica pelas origens humildes, presta um desserviço
ao Brasil
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Uma frase dita pelo
presidente Lula
em sua entrevista à
revista "Piauí" deste mês vem dando
o que falar: não é por falta de
tempo que não lê blogs, sites,
jornais ou revistas, mas porque
tem "problema de azia".
A observação provocou reações de jornalistas e colunistas,
e é provável que tenha causado
mal-estar na comunidade acadêmica, assim como entre os
brasileiros com maior nível
cultural.
Nenhuma ideia pode ser examinada sem referência ao seu
contexto. O presidente não estava falando das virtudes ou
malefícios da leitura em geral,
mas apenas do efeito que tem
sobre ele o noticiário, em especial o político; assim, seria descabido inferir do que disse uma
suposta opinião negativa da
sua parte sobre o ato ou o costume de ler.
Contudo, nos parágrafos seguintes à declaração -que
também delimitam o contexto
dela-, fala do seu lazer: ora, se
deste fazem parte "pescar, jogar cartas, conversar", brilha
pela ausência qualquer menção
à leitura de livros e, igualmente, a qualquer outra atividade
cultural.
Dirá o leitor que isso se deve
à sua origem humilde? Além de
ser uma generalização indevida, tal explicação deixa de lado
o fato de que muitas pessoas
nada abonadas frequentam
shows, veem filmes de apelo
popular, visitam exposições divulgadas pela mídia ou vão ouvir música erudita, quando essas coisas são oferecidas a preços que cabem no seu bolso ou
mesmo gratuitamente.
Horas na fila
Que o diga quem esperou horas para entrar na exposição de
Rodin, espremeu-se nas filas de
"Dois Filhos de Francisco" e
"Tropa de Elite" ou se dispõe a
enfrentar a multidão que acorre ao parque Ibirapuera para
ouvir as orquestras estrangeiras que de vez em quando se
apresentam no parque.
Atenhamo-nos, porém, ao
capítulo livros.
É certo que alguém pode se
informar pela televisão ou por
resumos preparados por assessores sobre assuntos de interesse dos seus chefes -metade
da matéria da revista é dedicada a Clara Ant, que faz esse trabalho para o presidente.
Mas nem briefings nem
meios eletrônicos podem substituir o livro, e isso por ao menos duas razões.
A primeira é que ver imagens
ou ouvir alguém falando põe
em jogo capacidades psíquicas
diferentes das requeridas para
lidar com um texto longo.
Além de concentração muito
maior, a extensão de um livro
comum torna impossível
apreender seu conteúdo de
uma única vez.
O hábito de ler favorece portanto a retenção de dados e
treina a memória para reconhecer e acessar, entre seus
inúmeros arquivos, aqueles
que permitem estabelecer continuidade entre o que se leu antes e o que se está lendo agora.
A segunda é que, como contém num volume reduzido um
enorme número de informações, o livro possibilita, no trato
dos seus temas, uma abrangência que nenhum artigo ou vídeo
pode igualar.
É o espaço do debate entre
ideias complexas, do relato minucioso, da descrição precisa
do que o autor julga importante
comunicar.
Isso permite o trânsito entre
níveis diferentes de abstração,
entre o detalhe e o quadro do
qual faz parte, entre os elementos isolados e a síntese que lhes
dá sentido.
Um mau modelo
Mas não é por essas qualidades dos livros que lamento a ausência deles no cotidiano de
Lula. É porque, com a influência que têm suas palavras e atitudes, o fato de não demonstrar
o menor interesse pela palavra
impressa transmite uma mensagem nefasta a quem nele confia e nele se espelha.
Todos sabem que é um excelente comunicador: se insistisse na importância dos livros, se
utilizasse em suas falas exemplos e referências tirados do
que leu, podemos estar certos
de que isso teria efeito benéfico
sobre os milhões de brasileiros
que passam anos, ou a vida inteira, sem jamais segurar nas
mãos um volume, quanto mais
abri-lo e se inteirar do que ele
contém.
O presidente já disse muitas
vezes que não ter estudado não
o impediu de chegar aonde chegou. Eis outra frase infeliz: não
é porque teve parca instrução
formal, mas apesar dessa falta,
que obteve seus sucessos.
Ao mencioná-la como se fosse algo positivo, contribui
-mesmo que não seja essa a
sua intenção- para desprestigiar ainda mais tudo o que está
ligado à educação.
A situação calamitosa do ensino no Brasil em nada melhora
quando o modelo identificatório que o presidente Lula representa para tanta gente sugere
nas entrelinhas que estudar
não é necessário.
Essa atitude blasée, ao contrário, me parece particularmente perniciosa para os jovens, muitos dos quais, por razões que não cabe aqui explicitar, têm atualmente pela leitura uma aversão que beira a fobia. O que está em jogo aqui não
é a visão utilitária segundo a
qual o estudo é o caminho da
ascensão social, mas a importância dele (e da leitura) para
criar cidadãos menos permeáveis à manipulação pelos órgãos de informação, da qual o
próprio presidente se queixa na
entrevista.
Diz Lula que é admirador de
Barack Obama e crítico contundente de George W. Bush.
No entanto o descaso com os
livros e com o que eles significam o aproxima deste, e não daquele. Uma das pérolas proferidas pelo texano foi endereçada
aos estudantes da universidade
em que se formou (Yale) e na
qual teve desempenho medíocre: "Vocês, alunos que tiram C,
também podem pretender ser
presidentes dos EUA".
Em contraste, Obama -que
em seus tempos de Harvard dirigiu a revista da Faculdade de
Direito- tem o maior respeito
pelos livros, graças aos quais
pôde adquirir uma sólida base
intelectual para suas convicções progressistas.
Só carisma não resolve
Sem a frequentação deles,
não teria podido citar em seu
discurso de posse a Bíblia e palavras de George Washington,
não saberia se servir das alusões e metáforas que abrilhantaram sua fala nem demonstraria o seguro conhecimento da
história do seu país, assim como da situação de povos estrangeiros, que evidentemente
possui.
É certo que sem seu carisma
e sem a habilidade retórica que
soube desenvolver nada disso
teria produzido o entusiasmo
que se viu, mas também seria
tolo negar que a qualidade literária e a construção caprichada
do discurso têm algo a ver com
o efeito que teve mundo afora.
E não se objete que foi redigido por assessores: no dia seguinte, os jornais davam conta
de que foi o próprio Obama
quem estabeleceu o roteiro básico e deu ao texto a última demão de tinta.
Lula não é o tabaréu que alguns pretendem (o jornalista
Mario Sergio Conti, a quem ele
concedeu a entrevista, diz que o
site da revista "Veja" na internet o mima frequentemente
com o epíteto de apedeuta, que
significa ignorante).
Mas é certo que, se tivesse
um pouco mais de apreço pela
letra de forma, evitaria meter-se em algumas situações constrangedoras e faria um grande
bem ao povo "deste país".
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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