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A má abolição
Hoje um estudo clássico, "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", de Florestan Fernandes, atacou o mito da democracia racial
ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É impossível pensar o
Brasil sem pensar a
escravidão. O escravismo teve, entre nós,
praticamente a idade
que o país tem hoje. Durou
quase 400 anos, num país com
pouco mais de meio milênio de
existência. Enraizou-se em toda a nossa extensão territorial.
E deu às nossas vidas formas,
práticas e sentidos singulares.
Como se não bastasse, nossa
formação histórica aconteceu
pelo encontro de povos escravistas. E escravistas fomos todos -senhores e escravos (palmarinos escravizavam; negros
forros compravam cativos
etc.)- até meados do século 19,
quando se configurou o movimento abolicionista.
Foi aí, pela primeira vez em
nossa história, que o sistema
escravista em si foi colocado
em questão.
Daí a profundeza das marcas
que a escravidão gravou na vida
brasileira. A onipresença da
herança escravista. Desse ponto de vista, aliás, a produção intelectual brasileira surpreende.
E de forma desconcertante,
que mereceria ser analisada
com vagar.
Freyre e Florestan
É certo que nossa historiografia produziu um rio de livros
sobre a escravidão. Mas o tema
escasseia nos ensaios de interpretação social da vida brasileira. Não foram muitos os que seguiram o exemplo de [Joaquim] Nabuco. Este, como André Rebouças, se concentrou
no exame da escravidão e, ao
mesmo tempo, na formulação
de um projeto de futuro, propondo uma reforma geral da
sociedade, de modo que o ex-escravo nela pudesse ingressar
como cidadão pleno.
É nesse campo que surgem
Gilberto Freyre [1900-87] e
Florestan Fernandes [1920-95]. Freyre, o mais ousado e
inovador dos pensadores sociais que o Brasil produziu. Florestan, espírito ao mesmo tempo desbravador e meticuloso,
mestre do rigor sociológico.
Freyre, em "Casa-Grande &
Senzala", concentrando-se na
escravidão.
Florestan, esquadrinhando a
outra ponta do arco nabuquiano: o ingresso do descendente
de escravos na "ordem social
competitiva" -não como o cidadão do sonho de Nabuco,
mas como expressão crua da
subcidadania, formando a ralé
de uma São Paulo em tenso e
intenso processo de expansão e
transformação.
Esse é o tema de "A Integração do Negro na Sociedade de
Classes", livro de meados da década de 1960, cujo primeiro volume agora se relança.
Um clássico? Sim. Florestan
quer nos mostrar, em seu estudo, como "o povo emerge" na
história brasileira.
E o faz por meio do preto e do
mulato "porque foi este contingente populacional que teve o
pior ponto de partida para a integração ao regime social que
se formou ao longo da ordem
social escravocrata e senhorial
e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil".
É assim que nos fala do destino do liberto na transição da
ordem escravocrata à ordem
competitiva -para então examinar as profundas consequências materiais, políticas,
sociais e culturais desse processo. E identifica, no abandono
do liberto naquele momento de
transição, a base da exclusão
social das massas negromestiças na moderna sociedade brasileira.
Mas, ao buscar as causas últimas dessa marginalização, vai
encontrá-las num compósito
que independe da cor da pele.
À época da abolição, o Estado
e a igreja, assim como os senhores ou já ex-senhores, entregaram os libertos à própria sorte.
No campo, eles não tinham terras para cultivar. Na cidade,
não recebiam educação, nem
instrução técnica necessária
para se engajar no novo mundo
produtivo.
Foi assim que ex-escravos e
descendentes de escravos chegaram ao século 20. Não apenas
em estado de pobreza ou de miséria, mas, sobretudo, sem os
instrumentos indispensáveis à
superação de tal situação. Vale
dizer, condenados ao subproletariado urbano, num contexto
de inadaptação e anomia.
Ainda segundo Florestan, ao
encarar essa realidade e combater o preconceito, pretos e
mulatos davam uma resposta a
dois dilemas sociais que definiam o atraso do Brasil como
sociedade moderna.
Interesse histórico
Por fim, Florestan faz sua célebre crítica da ideologia da democracia racial, que acabaria se
convertendo no cerne da oposição da esquerda acadêmica à
obra de Freyre -uma disputa
de poder, no espaço intelectual
brasileiro, que ainda está para
ser estudada.
Hoje, a crítica de Florestan
tem interesse principalmente
histórico. Ninguém mais, no
país, acha que vive numa democracia racial.
De outra parte, o buraco é
mais embaixo. Não somos uma
democracia racial, mas podemos vir a ser. Florestan dizia
que aquela ideologia era manipulada em razão dos interesses
da classe dirigente.
Mas que, se caísse nas mãos
de pretos e mulatos e estes dispusessem de autonomia social,
poderia se transformar em "fator de democratização" da riqueza, da cultura e do poder.
ANTONIO RISÉRIO é poeta e antropólogo, autor
de "Oriki Orixá" (Perspectiva) e "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34).
A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA
SOCIEDADE DE CLASSES (vol. 1)
Autor: Florestan Fernandes
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/3767-7000)
Quanto: R$ 65 (440 págs.)
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