São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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Ponto de fuga

O pensamento das pedras

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

E u faço as pedras pensarem", disse uma vez Gustave Courbet, mestre que renovou a pintura na segunda metade do século 19. Sua arte não é fácil. Reduziu as cores, às vezes quase à bicromia. Os tons empregados são austeros: brancos sujos, cinzas, marrons. Por vezes, é verdade, investia em intensidades claras, mas não exatamente iluminadas: apresentava então matérias que incorporavam a clareza nelas mesmas. Impõe sempre uma solenidade misteriosa e grave. Tratava seus temas de perto. Numa paisagem, cortava o topo e as laterais das árvores, para melhor se aproximar. Seu quadro mais célebre é "A Origem do Mundo" [1866], pintado para o deleite íntimo de um milionário turco. A tela é o close de um sexo feminino. Os braços, pernas, cabeça do modelo foram eliminados pelo enquadramento muito próximo.

Correio
Leitores se manifestaram sobre o último "Ponto de Fuga", comentando o prazer da leitura, proposto por Todorov, prazer esse que se encontra fora das teorias. Courbet serve de exemplo no campo da pintura. Militante socialista, foi preso e morreu no exílio. Ocorre que essa militância do indivíduo determinou, desde os seus contemporâneos, uma série de leituras de suas obras em que se inventavam para elas significações políticas e sociais imaginárias. Até hoje isso ocorre, reforçado pelo politicamente correto, pelo feminismo, pelos estudos (sobretudo americanos) ditos "de gênero". As obras de Courbet viraram objetos de hipóteses engenhosas e inteligentes. Elas impedem, porém, de ver o que está no quadro e substituem o olhar por raciocínios que não saem de si mesmos.

Ruminar
As pedras de Courbet pensam; suas árvores e seu sexo feminino também. Não de modo discursivo ou conceitual. No silêncio das intuições, seus quadros são sujeitos. É perda grande, para eles e para quem os contempla, transformá-los em objeto. Para ouvir e entender o pensamento de suas pedras, é preciso deixar-se levar pela contemplação e pelo prazer que elas trazem. Depois, aí sim, chega a análise, operária da hora final, que faz o que pode, até onde pode.

Delicadamente
Na coluna "Ponto de Fuga" da semana passada, Walter Benjamin era tratado de "grande sábio alemão já morto" e Todorov de "grande sábio búlgaro ainda vivo". Uma brincadeira levemente irônica sobre o caráter sacralizado que certos pensadores adquirem. O estilo era voluntariamente não "esperto" para os hábitos intelectuais ou universitários. Ora, o revisor decidiu mudar para "Benjamin [1892-1940], grande sábio alemão". Tirou o "já morto", botou as datas de nascimento e morte. O joguinho então perdeu o sentido. Coisa sem importância nenhuma, está claro. A intervenção pode ser percebida, no entanto, como sintoma da pasteurização reinante, que dá menos importância ao autor do que a certos tiques normativos.

Toviassu
A informação das datas depois dos nomes lembra insossos verbetes de enciclopédia e atrapalha a fluência do texto. Nos anos de 1980, se a memória é boa, a Folha decidiu indicar a idade de todo mundo, assim: Jorge Coli, 59, Matusalém, 969. A moda felizmente passou; por sinal, o velho "Planeta Diário", obra-prima do jornalismo satírico, esculhambou bastante com ela. Os leitores são inteligentes. Esperemos que a moda das datas de nascimento e morte passe também, ainda mais nestes tempos de Google e de Wikipédia, em que todas as informações estão fáceis, à mão.


jorgecoli@uol.com.br


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