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Em marcha lenta
Um dos grandes narradores da atualidade, Russell Banks fala do consumismo e sobre o fracasso das formas tradicionais
de protesto
Frank Franklin 2º - 20.mar.2003/Associated Press
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Manifestantes protestam contra invasão do Iraque pelos EUA, em Nova York |
RAPHAÓLLE RÉROLLE
Um dos principais
escritores norte-americanos vivos,
Russell Banks
(1940) é um crítico
impiedoso do consumismo e
do fundamentalismo religioso
-que, segundo ele, permeiam
hoje a sociedade dos EUA.
Nascido em Massachusetts e
criado na Nova Inglaterra em
um meio operário, Banks escreveu poemas, ensaios e romances, como "O Divisor de
Nuvens", "Temporada de Caça" e "O Doce Amanhã" (todos
pela ed. Record).
Em "The Darling" (A Querida, ed. HarperCollins, 392
págs., US$ 26, R$ 54-, lançado
em 2004 nos EUA, a protagonista é uma americana considerada subversiva nos anos
1970 que se refugia na África,
envolvendo-se politicamente
na guerra civil na Libéria.
Com a vida arruinada, acaba
por reavaliar sua posições e se
arrepende de suas ações.
Na entrevista abaixo, Banks
fala de escalada do consumo e
da ascensão conservadora nos
EUA, entre outros temas.
PERGUNTA - Como explica o formidável apetite dos romancistas norte-americanos pela ficção histórica?
RUSSELL BANKS - Talvez porque
nossa história não seja um assunto definitivamente fechado.
Quando existe um consenso
sobre a natureza do passado, os
romancistas não sentem necessidade de tentar corrigi-lo.
Nos EUA, temos os nativos
americanos, os afro-americanos, os latino-americanos, os
anglo-americanos, todos dotados de visões históricas sensivelmente diferenciadas. A
maior parte deles não contesta
os fatos, mas, sim, o significado
que lhes é atribuído.
É por isso que os romancistas
americanos se sentem tão tentados a se dedicar ao passado:
porque seu sentido não está fechado, definido.
Tomemos o abolicionista
John Brown (1800-59): os negros o consideravam herói, enquanto os anglo-americanos o
viam como pessoa talvez bem-intencionada, mas completamente louca.
Se eu optei por fazer dele o
personagem principal de meu
romance "O Divisor de Nuvens" foi porque uma distorção
como essa permite reinterpretar os fatos, reimaginá-los, renová-los, ao adotar um ponto
de vista externo às construções
impostas, às idéias recebidas.
É preciso igualmente levar
em conta que a ficção norte-americana não cedeu às atrações do pós-modernismo, que
seduziram tantos dos intelectuais europeus. Ela resistiu de
maneira consciente e obstinada a uma intelectualização excessiva da narrativa.
O resultado é uma vitalidade
talvez maior, mesmo que essa
característica tenha também
aspectos negativos: uma certa
ingenuidade ou, talvez, até
mesmo uma certa estupidez.
PERGUNTA - O senhor se considera
subversivo?
BANKS - Em determinados momentos, creio que sim; e em outros, não. Mas suponho que minha condição de escritor, o fato
de que escrever seja minha vida, baste para me tornar subversivo. Desde sempre eu me
senti marginalizado.
Mesmo quando lecionava literatura na Universidade Princeton me sentia excluído.
Evidentemente, aspiro a
conquistar a maior audiência
possível, mas não me interesso
muito por me tornar altamente
popular. Porque isso significaria que eu deveria me tornar seguro, confortável.
Um escritor deve se colocar
fora das convenções, dos preconceitos da sociedade.
Sem isso, se torna muito difícil distinguir a estupidez, o sexismo, a injustiça.
PERGUNTA - O senhor faz parte de
uma geração muito combativa, e o
senhor mesmo foi militante de extrema esquerda na juventude. Considera que, de alguma maneira, continua a fazer parte da resistência?
BANKS - Sim, acredito nisso, de
certa maneira, porque resisto
sempre à aceitação passiva das
coisas como são.
Não sou uma pessoa isolada,
ao menos não no senso trágico
do termo, digamos. Mas, para a
maioria dos intelectuais e artistas dos EUA, é cada vez mais difícil se fazer entender, encobrir
o ruído do consumismo, da cultura ditada pelo consumo.
De modo geral, sou visto como radical. Em um dado momento, na metade dos anos 90,
quando ainda lecionava, me dei
conta de que os estudantes haviam se tornado mais conservadores que seus professores.
Eu tinha cabelos grisalhos e,
no entanto, era a pessoa mais
radical na sala de aula.
Mas isso não se deve ao fato
de que eu, pessoalmente, seja
radical; na verdade, os EUA é
que foram se tornando mais e
mais conservadores.
O fato de que os jovens se sintam incapazes de mudar as coisas serve como explicação parcial. Eles estão sujeitos às manipulações do poder e não
aprenderam a empregar nenhuma das ferramentas que
permitiriam introduzir mudanças: marchas, manifestações, protestos etc.
Minha geração acreditava
que seria verdadeiramente capaz de influenciar a política,
graças ao movimento dos direitos civis, aos movimentos de
oposição à guerra.
Mas, depois do final dos anos
70, começo dos 80, isso se tornou mais e mais difícil. Não é
que a juventude tenha hoje se
tornado menos idealista (ainda
que isso tenha acontecido em
certa medida), mas as formas
de ação que eram úteis no passado deixaram de sê-lo.
Veja as manifestações que
precederam a Guerra do Iraque, no começo de 2003, em todas as grandes cidades norte-americanas, com milhões de
pessoas nas ruas.
E tudo isso para nada. As manifestações não foram levadas a
sério pelo poder político, evidentemente, mas tampouco
pela mídia, que optou por atenuar o impacto dos protestos.
As táticas e formas de organização devem evoluir, se o objetivo é promover mudanças. Os
EUA são como um gigantesco
iceberg flutuando no mar: corrigir sua trajetória é um projeto
muito difícil, muito lento.
Não se pode imaginar mais
que mudanças graduais, por
meio do emprego de técnicas
bastante específicas. Hoje, as
novas formas de organização
devem passar pela internet.
PERGUNTA - "A Querida", seu romance mais recente, se encerra na
véspera do 11 de Setembro. Será
que esse é um assunto que o senhor
poderia abordar diretamente?
BANKS Creio que jamais escreverei diretamente sobre isso. Trata-se de um acontecimento melodramático ou, ao
menos, é essa a maneira pela
qual ele foi registrado em nossa
imaginação. Um confronto entre o bem e o mal. Tornou-se
parte daquele grupo de eventos
sobre os quais é mais difícil escrever frontalmente, como o
Holocausto.
É possível falar sobre o assunto de maneira indireta ou
talvez em primeira pessoa, se
você esteve envolvido.
O que eu adoraria fazer seria
eliminar o componente melodramático da situação, mas não
faço idéia de como o conseguiria. Em "A Querida", eu me
contentei em sugerir que a história de Hannah, a protagonista, não poderia ter sido a mesma depois do que aconteceu.
PERGUNTA - Quando começou sua
vida de romancista, tinha a idéia de
mudar o mundo com sua escrita?
BANKS - Não, e tampouco tenho essa idéia hoje. Caso uma
mudança aconteça, ótimo, mas
não é porque eu a tenha causado. Creio, certamente, que a literatura pode mudar as pessoas
-eu mesmo mudei por conta
dela. Minha maneira de observar as mulheres, os negros, o
mundo, a história do meu país
foi alterada pela arte, pela poesia, pela ficção.
Mas, isso posto, não considero que a maneira pela qual o
presidente George W. Bush observa o mundo tenha sido influenciada pela arte.
De modo geral, a transformação não se produz a partir do
centro, mas das margens e, por
definição, acontece lentamente. A arte só tem efeito sobre as
margens, um leitor por vez.
Um indivíduo cuja visão de
mundo pode ser modificada e,
com isso, seu comportamento
e, amanhã, o modo como tratará os demais seres humanos.
É muito, muito raro que um
livro provoque mudanças rápidas nas coisas e muito mais raro que um bom livro o faça.
Não consigo recordar mais
que alguns títulos na história
dos EUA, como "A Cabana do
Pai Tomás" [1852, da abolicionista Harriet Beecher Stowe],
que alterou completamente a
idéia que muitas pessoas faziam sobre a escravatura.
Trata-se de um gênero de
propaganda muito eficaz!
É preciso escolher. Para ter
público de massa, é muitas vezes necessário renunciar a uma
apresentação que leve em conta as nuanças e a complexidade
da natureza humana, as ambigüidades da história, sua ironia
e, em lugar disso, escrever histórias onde existam Deus e o
Diabo e nada no meio.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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