São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Livros

Em marcha lenta

Um dos grandes narradores da atualidade, Russell Banks fala do consumismo e sobre o fracasso das formas tradicionais de protesto

Frank Franklin 2º - 20.mar.2003/Associated Press
Manifestantes protestam contra invasão do Iraque pelos EUA, em Nova York


RAPHAÓLLE RÉROLLE

Um dos principais escritores norte-americanos vivos, Russell Banks (1940) é um crítico impiedoso do consumismo e do fundamentalismo religioso -que, segundo ele, permeiam hoje a sociedade dos EUA. Nascido em Massachusetts e criado na Nova Inglaterra em um meio operário, Banks escreveu poemas, ensaios e romances, como "O Divisor de Nuvens", "Temporada de Caça" e "O Doce Amanhã" (todos pela ed. Record).
Em "The Darling" (A Querida, ed. HarperCollins, 392 págs., US$ 26, R$ 54-, lançado em 2004 nos EUA, a protagonista é uma americana considerada subversiva nos anos 1970 que se refugia na África, envolvendo-se politicamente na guerra civil na Libéria. Com a vida arruinada, acaba por reavaliar sua posições e se arrepende de suas ações.
Na entrevista abaixo, Banks fala de escalada do consumo e da ascensão conservadora nos EUA, entre outros temas.

 

PERGUNTA - Como explica o formidável apetite dos romancistas norte-americanos pela ficção histórica?
RUSSELL BANKS
- Talvez porque nossa história não seja um assunto definitivamente fechado. Quando existe um consenso sobre a natureza do passado, os romancistas não sentem necessidade de tentar corrigi-lo. Nos EUA, temos os nativos americanos, os afro-americanos, os latino-americanos, os anglo-americanos, todos dotados de visões históricas sensivelmente diferenciadas. A maior parte deles não contesta os fatos, mas, sim, o significado que lhes é atribuído.
É por isso que os romancistas americanos se sentem tão tentados a se dedicar ao passado: porque seu sentido não está fechado, definido. Tomemos o abolicionista John Brown (1800-59): os negros o consideravam herói, enquanto os anglo-americanos o viam como pessoa talvez bem-intencionada, mas completamente louca.
Se eu optei por fazer dele o personagem principal de meu romance "O Divisor de Nuvens" foi porque uma distorção como essa permite reinterpretar os fatos, reimaginá-los, renová-los, ao adotar um ponto de vista externo às construções impostas, às idéias recebidas. É preciso igualmente levar em conta que a ficção norte-americana não cedeu às atrações do pós-modernismo, que seduziram tantos dos intelectuais europeus. Ela resistiu de maneira consciente e obstinada a uma intelectualização excessiva da narrativa.
O resultado é uma vitalidade talvez maior, mesmo que essa característica tenha também aspectos negativos: uma certa ingenuidade ou, talvez, até mesmo uma certa estupidez.

PERGUNTA - O senhor se considera subversivo?
BANKS
- Em determinados momentos, creio que sim; e em outros, não. Mas suponho que minha condição de escritor, o fato de que escrever seja minha vida, baste para me tornar subversivo. Desde sempre eu me senti marginalizado. Mesmo quando lecionava literatura na Universidade Princeton me sentia excluído. Evidentemente, aspiro a conquistar a maior audiência possível, mas não me interesso muito por me tornar altamente popular. Porque isso significaria que eu deveria me tornar seguro, confortável. Um escritor deve se colocar fora das convenções, dos preconceitos da sociedade. Sem isso, se torna muito difícil distinguir a estupidez, o sexismo, a injustiça.

PERGUNTA - O senhor faz parte de uma geração muito combativa, e o senhor mesmo foi militante de extrema esquerda na juventude. Considera que, de alguma maneira, continua a fazer parte da resistência?
BANKS
- Sim, acredito nisso, de certa maneira, porque resisto sempre à aceitação passiva das coisas como são. Não sou uma pessoa isolada, ao menos não no senso trágico do termo, digamos. Mas, para a maioria dos intelectuais e artistas dos EUA, é cada vez mais difícil se fazer entender, encobrir o ruído do consumismo, da cultura ditada pelo consumo. De modo geral, sou visto como radical. Em um dado momento, na metade dos anos 90, quando ainda lecionava, me dei conta de que os estudantes haviam se tornado mais conservadores que seus professores.
Eu tinha cabelos grisalhos e, no entanto, era a pessoa mais radical na sala de aula. Mas isso não se deve ao fato de que eu, pessoalmente, seja radical; na verdade, os EUA é que foram se tornando mais e mais conservadores.
O fato de que os jovens se sintam incapazes de mudar as coisas serve como explicação parcial. Eles estão sujeitos às manipulações do poder e não aprenderam a empregar nenhuma das ferramentas que permitiriam introduzir mudanças: marchas, manifestações, protestos etc. Minha geração acreditava que seria verdadeiramente capaz de influenciar a política, graças ao movimento dos direitos civis, aos movimentos de oposição à guerra.
Mas, depois do final dos anos 70, começo dos 80, isso se tornou mais e mais difícil. Não é que a juventude tenha hoje se tornado menos idealista (ainda que isso tenha acontecido em certa medida), mas as formas de ação que eram úteis no passado deixaram de sê-lo. Veja as manifestações que precederam a Guerra do Iraque, no começo de 2003, em todas as grandes cidades norte-americanas, com milhões de pessoas nas ruas.
E tudo isso para nada. As manifestações não foram levadas a sério pelo poder político, evidentemente, mas tampouco pela mídia, que optou por atenuar o impacto dos protestos. As táticas e formas de organização devem evoluir, se o objetivo é promover mudanças. Os EUA são como um gigantesco iceberg flutuando no mar: corrigir sua trajetória é um projeto muito difícil, muito lento.
Não se pode imaginar mais que mudanças graduais, por meio do emprego de técnicas bastante específicas. Hoje, as novas formas de organização devem passar pela internet.

PERGUNTA - "A Querida", seu romance mais recente, se encerra na véspera do 11 de Setembro. Será que esse é um assunto que o senhor poderia abordar diretamente?
BANKS
Creio que jamais escreverei diretamente sobre isso. Trata-se de um acontecimento melodramático ou, ao menos, é essa a maneira pela qual ele foi registrado em nossa imaginação. Um confronto entre o bem e o mal. Tornou-se parte daquele grupo de eventos sobre os quais é mais difícil escrever frontalmente, como o Holocausto.
É possível falar sobre o assunto de maneira indireta ou talvez em primeira pessoa, se você esteve envolvido. O que eu adoraria fazer seria eliminar o componente melodramático da situação, mas não faço idéia de como o conseguiria. Em "A Querida", eu me contentei em sugerir que a história de Hannah, a protagonista, não poderia ter sido a mesma depois do que aconteceu.

PERGUNTA - Quando começou sua vida de romancista, tinha a idéia de mudar o mundo com sua escrita?
BANKS
- Não, e tampouco tenho essa idéia hoje. Caso uma mudança aconteça, ótimo, mas não é porque eu a tenha causado. Creio, certamente, que a literatura pode mudar as pessoas -eu mesmo mudei por conta dela. Minha maneira de observar as mulheres, os negros, o mundo, a história do meu país foi alterada pela arte, pela poesia, pela ficção. Mas, isso posto, não considero que a maneira pela qual o presidente George W. Bush observa o mundo tenha sido influenciada pela arte. De modo geral, a transformação não se produz a partir do centro, mas das margens e, por definição, acontece lentamente. A arte só tem efeito sobre as margens, um leitor por vez.
Um indivíduo cuja visão de mundo pode ser modificada e, com isso, seu comportamento e, amanhã, o modo como tratará os demais seres humanos. É muito, muito raro que um livro provoque mudanças rápidas nas coisas e muito mais raro que um bom livro o faça. Não consigo recordar mais que alguns títulos na história dos EUA, como "A Cabana do Pai Tomás" [1852, da abolicionista Harriet Beecher Stowe], que alterou completamente a idéia que muitas pessoas faziam sobre a escravatura.
Trata-se de um gênero de propaganda muito eficaz! É preciso escolher. Para ter público de massa, é muitas vezes necessário renunciar a uma apresentação que leve em conta as nuanças e a complexidade da natureza humana, as ambigüidades da história, sua ironia e, em lugar disso, escrever histórias onde existam Deus e o Diabo e nada no meio.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: Com Hutton, 3ª Via ficou midiática
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.