São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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Os ensaístas Jurandir Freire Costa e Maria Rita Kehl discutem o livro "Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud", do professor de história da Universidade da Califórnia Thomas Laqueur, que sairá nos próximos dias pela editora Relume-Dumará

O sexo segundo Laqueur

por Jurandir Freire Costa

Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud", de Thomas Laqueur, é um livro marcante nas ciências humanas. O tema é a variação histórica da idéia de sexo no pensamento médico, filosófico e político do século 18 até nossos dias. O argumento de Laqueur, em linhas gerais, é o seguinte. A medicina ocidental do século 18 não podia representar a sexualidade humana como dividida, originalmente e de forma bipolar, entre sexualidades masculina e feminina. O modelo científico dominante era o modelo do sexo único. O modelo, inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, via a mulher como um homem invertido e inferior. Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Assim, o útero era o escroto, os ovários, os testículos, a vagina, o pênis, e a vulva, o prepúcio. Inferior porque a mulher era concebida como um homem imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do calor vital, esse último responsável pela evolução do corpo até a perfeição ontológica do macho.
Os médicos, portanto, notavam as diferenças anatômicas entre homens e mulheres, assim como distinguiam o masculino e o feminino. Mas não interpretavam o que viam como diferença de qualidade entre espécies naturais, e sim como diferença de graus em uma mesma espécie.

Ideais igualitários Nos fins do século 18, tudo muda. Os revolucionários europeus -franceses, sobretudo- precisavam justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, de modo a torná-la compatível com os ideais igualitários republicanos. Todos os "homens" eram iguais, mas as mulheres eram mentalmente frágeis, infantis e, por conseguinte, estavam incapacitadas para exercer as tarefas intelectuais, científicas e políticas dos homens. Não por serem "imperfeitas", do ponto de vista ontológico, mas por serem diversas, do ponto de vista biológico.
O sexo era a prova conclusiva da diferença "para menos". O modelo dos dois sexos, a partir daí, se torna hegemônico. Mulheres e homens passaram a ser comparados pelo padrão da descontinuidade/oposição e não da continuidade/hierarquia, como na metafísica neoplatônica. O "sexo" deixou de ser sinônimo de aparelho genito-urinário e reprodutor e veio a substituir seu similar neoplatônico, a "perfeição metafísica do corpo". Em vez do "corpo perfeito e do calor vital únicos", a abstração do "sexo" dividido, originalmente, em dois, cada um com propriedades "naturais" específicas.
As propriedades foram, principalmente, definidas por suas relações com os comportamentos morais. Homens e mulheres deviam ter um tipo de prazer sensual, de conduta social e de vida emocional adequados à natureza biológica de "seus sexos". Do contrário, não seriam exemplares normais da espécie, e sim indivíduos desviantes, anormais, doentios ou degenerados. Os sujeitos, até então avaliados moralmente por seus atos, pensamentos e sentimentos religiosos ou pelos valores da hierarquia aristocrática, passam a ser julgados pela conformidade à finalidade sexual de suas supostas "naturezas biológicas". Na anatomia estava o destino psicológico-moral dos viciosos e virtuosos.
Thomas Laqueur nos permite ver essa ideologia à distância. Ele nem nega nossa capacidade para discriminar fatos anatômicos diversos nem afirma que a realidade física do corpo seja causalmente dependente de suas interpretações teóricas.
Sua intenção é mostrar que as noções de "diferença biológica de sexo" e "diferença cultural de gêneros" não são dados crus, que se impõem, de forma compulsória, à consciência de leigos e cientistas. Tanto o "sexo biológico" quanto o "gênero cultural" são idéias informadas por crenças científicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. sobre a "natureza do seres humanos".

Consequências éticas As consequências intelectuais e éticas do trabalho de Laqueur são enormes. Do ângulo da teoria do conhecimento, o autor mostra que "a realidade que conhecemos" é sempre "realidade sob descrição". Podemos, é claro, ser afetados ou modificados no que somos e pensamos, por coisas e eventos que não sabemos definir ou descrever. Mas, no momento em que sabemos "que tipo de coisa ou evento nos afeta", estamos no terreno da descrição ou representação. Nesse terreno, os argumentos, provas ou razões que oferecemos para justificar nossas opiniões serão inevitavelmente marcados pelo selo do imaginário cultural, e não por um pedaço da realidade bruta, que se destaca do "mundo das coisas em si" para se encravar, de modo indelével e eterno, em nossa consciência cognitiva.
O "fato em si", objeto de intermináveis disputas entre relativistas e realistas metafísicos, importa pouco a Laqueur. Mais importante, a seu ver, é observar que a realidade do senso comum ou da ciência é um produto da sensibilidade dos instrumentos científicos e da sensibilidade de nossas crenças, desejos e interesses culturais.

Ética e construção de identidades Do ângulo da ética, o trabalho do autor realça a relação entre as descrições observacionais e a avaliação moral dos fenômenos humanos investigados. A pergunta, aqui, é: podemos ou não descrever realidades humanas com um vocabulário neutro do ponto de vista ético ou moral? É possível, por exemplo, continuar a falar de "sexo e gênero" de forma moralmente indiferente?
Laqueur deixa a questão em aberto. Minha opinião é outra. Em meu entender, valorizar a discussão de sexo e gênero significa, "ipso facto", considerar o tema como relevante para a construção das identidades pessoais ou das liberdades individuais. Isso, no entanto, perpetua o interesse por um tipo de identidade ou liberdade subjetivas que leva à sério as crenças dos ideólogos dos séculos 18 e 19, tão bem analisadas por Laqueur.
Por que, pergunto, conservar algo que deu origem a preconceitos que ferem a dignidade humana? Por que fazer de "diferença de sexo e gênero" suporte para a criação de identidades pessoais com o peso moral que têm hoje em dia? Por que creditar à realidade física de nossos corpos a função de determinar o que queremos ser, do ponto de vista ético?
Um dos maiores méritos de "Inventando o Sexo" é nos convencer de que a obsessão por "sexo e gênero" é irrelevante para reconhecer diferenças entre homens e mulheres ou julgar, do ponto vista ético, os melhores e os piores. Podemos, perfeitamente, privilegiar outros atributos humanos, na construção da identidade e liberdade individuais, sem perda alguma para nossa vida ética. Lendo Laqueur é mais fácil entender o que disse Nietzsche, há mais de cem anos, sobre a sexualidade ocidental. De tanto "demonizar" o sexo, disse ele, o catolicismo acabou por obter o efeito oposto. A tragédia virou farsa.
O "diabo Eros", pouco a pouco, começou a "interessar mais os homens que os anjos e santos", com um "exagero que seria incompreensível à Antiguidade e que terminará, um dia, por cair no ridículo". O sexo, em Laqueur, nem é deus nem diabo; é um bufão que o conformismo cultural e intelectual insiste em manter em cartaz.
Em síntese, um livro obrigatório para os especialistas em sexo e gênero; um livro obrigatório para os que relutam em fazer de sexo e gênero matrizes imaginárias de identidades sociomorais.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos pela ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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