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Os ensaístas Jurandir Freire Costa e Maria Rita Kehl discutem o livro "Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud", do professor de história da Universidade da Califórnia
Thomas Laqueur, que sairá nos próximos dias pela editora Relume-Dumará
O sexo segundo Laqueur
por Jurandir Freire Costa
Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a
Freud", de Thomas Laqueur, é um livro marcante
nas ciências humanas. O tema é a variação histórica
da idéia de sexo no pensamento médico, filosófico e
político do século 18 até nossos dias.
O argumento de Laqueur, em linhas gerais, é o seguinte. A medicina ocidental do século 18 não podia representar a sexualidade humana como dividida, originalmente e de forma bipolar, entre sexualidades masculina e feminina. O modelo científico dominante era o
modelo do sexo único. O modelo, inspirado na filosofia
neoplatônica de Galeno, via a mulher como um homem
invertido e inferior. Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Assim, o útero era o escroto, os ovários, os
testículos, a vagina, o pênis, e a vulva, o prepúcio. Inferior porque a mulher era concebida como um homem
imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do
calor vital, esse último responsável pela evolução do
corpo até a perfeição ontológica do macho.
Os médicos, portanto, notavam as diferenças anatômicas entre homens e mulheres, assim como distinguiam o masculino e o feminino. Mas não interpretavam o que viam como diferença de qualidade entre espécies naturais, e sim como diferença de graus em uma mesma espécie.
Ideais igualitários Nos fins do século 18, tudo
muda. Os revolucionários europeus -franceses, sobretudo- precisavam justificar a tradicional desigualdade
entre homens e mulheres, de modo a torná-la compatível com os ideais igualitários republicanos. Todos os
"homens" eram iguais, mas as mulheres eram mentalmente frágeis, infantis e, por conseguinte, estavam incapacitadas para exercer as tarefas intelectuais, científicas
e políticas dos homens. Não por serem "imperfeitas",
do ponto de vista ontológico, mas por serem diversas,
do ponto de vista biológico.
O sexo era a prova conclusiva da diferença "para menos". O modelo dos dois sexos, a partir daí, se torna hegemônico. Mulheres e homens passaram a ser comparados pelo padrão da descontinuidade/oposição e não
da continuidade/hierarquia, como na metafísica neoplatônica. O "sexo" deixou de ser sinônimo de aparelho
genito-urinário e reprodutor e veio a substituir seu similar neoplatônico, a "perfeição metafísica do corpo".
Em vez do "corpo perfeito e do calor vital únicos", a
abstração do "sexo" dividido, originalmente, em dois,
cada um com propriedades "naturais" específicas.
As propriedades foram, principalmente, definidas
por suas relações com os comportamentos morais. Homens e mulheres deviam ter um tipo de prazer sensual,
de conduta social e de vida emocional adequados à natureza biológica de "seus sexos". Do contrário, não seriam exemplares normais da espécie, e sim indivíduos
desviantes, anormais, doentios ou degenerados. Os sujeitos, até então avaliados moralmente por seus atos,
pensamentos e sentimentos religiosos ou pelos valores
da hierarquia aristocrática, passam a ser julgados pela
conformidade à finalidade sexual de suas supostas "naturezas biológicas". Na anatomia estava o destino psicológico-moral dos viciosos e virtuosos.
Thomas Laqueur nos permite ver essa ideologia à distância. Ele nem nega nossa capacidade para discriminar
fatos anatômicos diversos nem afirma que a realidade
física do corpo seja causalmente dependente de suas interpretações teóricas.
Sua intenção é mostrar que as noções de "diferença
biológica de sexo" e "diferença cultural de gêneros" não
são dados crus, que se impõem, de forma compulsória,
à consciência de leigos e cientistas. Tanto o "sexo biológico" quanto o "gênero cultural" são idéias informadas
por crenças científicas, políticas, filosóficas, religiosas
etc. sobre a "natureza do seres humanos".
Consequências éticas As consequências intelectuais e éticas do trabalho de Laqueur são enormes. Do
ângulo da teoria do conhecimento, o autor mostra que
"a realidade que conhecemos" é sempre "realidade sob
descrição". Podemos, é claro, ser afetados ou modificados no que somos e pensamos, por coisas e eventos que
não sabemos definir ou descrever. Mas, no momento
em que sabemos "que tipo de coisa ou evento nos afeta", estamos no terreno da descrição ou representação.
Nesse terreno, os argumentos, provas ou razões que
oferecemos para justificar nossas opiniões serão inevitavelmente marcados pelo selo do imaginário cultural, e
não por um pedaço da realidade bruta, que se destaca
do "mundo das coisas em si" para se encravar, de modo
indelével e eterno, em nossa consciência cognitiva.
O "fato em si", objeto de intermináveis disputas entre
relativistas e realistas metafísicos, importa pouco a Laqueur. Mais importante, a seu ver, é observar que a realidade do senso comum ou da ciência é um produto da
sensibilidade dos instrumentos científicos e da sensibilidade de nossas crenças, desejos e interesses culturais.
Ética e construção de identidades Do ângulo
da ética, o trabalho do autor realça a relação entre as
descrições observacionais e a avaliação moral dos fenômenos humanos investigados. A pergunta, aqui, é: podemos ou não descrever realidades humanas com um
vocabulário neutro do ponto de vista ético ou moral? É
possível, por exemplo, continuar a falar de "sexo e gênero" de forma moralmente indiferente?
Laqueur deixa a questão em aberto. Minha opinião é
outra. Em meu entender, valorizar a discussão de sexo e
gênero significa, "ipso facto", considerar o tema como
relevante para a construção das identidades pessoais ou
das liberdades individuais. Isso, no entanto, perpetua o
interesse por um tipo de identidade ou liberdade subjetivas que leva à sério as crenças dos ideólogos dos séculos 18 e 19, tão bem analisadas por Laqueur.
Por que, pergunto, conservar algo que deu origem a
preconceitos que ferem a dignidade humana? Por que
fazer de "diferença de sexo e gênero" suporte para a
criação de identidades pessoais com o peso moral que
têm hoje em dia? Por que creditar à realidade física de
nossos corpos a função de determinar o que queremos
ser, do ponto de vista ético?
Um dos maiores méritos de "Inventando o Sexo" é
nos convencer de que a obsessão por "sexo e gênero" é
irrelevante para reconhecer diferenças entre homens e
mulheres ou julgar, do ponto vista ético, os melhores e
os piores. Podemos, perfeitamente, privilegiar outros
atributos humanos, na construção da identidade e liberdade individuais, sem perda alguma para nossa vida
ética. Lendo Laqueur é mais fácil entender o que disse
Nietzsche, há mais de cem anos, sobre a sexualidade
ocidental. De tanto "demonizar" o sexo, disse ele, o catolicismo acabou por obter o efeito oposto. A tragédia
virou farsa.
O "diabo Eros", pouco a pouco, começou a "interessar mais os homens que os anjos e santos", com um
"exagero que seria incompreensível à Antiguidade e
que terminará, um dia, por cair no ridículo". O sexo, em
Laqueur, nem é deus nem diabo; é um bufão que o conformismo cultural e intelectual insiste em manter em
cartaz.
Em síntese, um livro obrigatório para os especialistas
em sexo e gênero; um livro obrigatório para os que relutam em fazer de sexo e gênero matrizes imaginárias de
identidades sociomorais.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros,
"Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos pela ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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